“Mais dinheiro não trouxe mais reciclagem”. Sociedade Ponto Verde critica financiamento da recolha e pede mais concorrência

A Sociedade Ponto Verde questiona a eficácia do despacho que ditou um aumento do financiamento à recolha nos municípios. Defende antes a abertura a privados para colmatar os problemas na recolha.

Em janeiro de 2025, depois de oito anos sem sofrer qualquer alteração, o valor pago pelos embaladores e produtores para financiar a recolha de embalagens disparou, por ordem do Governo. Vários intervenientes do setor, desde o regulador dos resíduos até aos municípios, encaram o aumento como necessário. Contudo, a Sociedade Ponto Verde, que colhe o dinheiro para financiar estas operações junto dos produtores e embaladores, defende que o cálculo não está a ser feito de forma rigorosa, pelo que já o impugnou em tribunal. Além disso, olhando aos resultados da recolha no primeiro semestre do ano, acusa que a subida do financiamento não está a garantir um melhor serviço, e pede mais concorrência.

O encargo no centro da discórdia é o chamado valor de contrapartida. Este valor é definido pelo Estado e pago pela Sociedade Ponto Verde (SPV) aos sistemas de gestão de resíduos urbanos (SGRU), para que estes sistemas multimunicipais ou intermunicipais façam a recolha das embalagens. A SPV financia este sistema colhendo o chamado ‘ecovalor’ junto dos produtores e embaladores que, para suportarem este encargo, acabam por passar este custo ao consumidor, de cada vez que se compra um artigo com embalagem.

No início de 2025, os valores de contrapartida foram atualizados, na sequência de um despacho que foi publicado pelo Governo em outubro de 2024. Esta atualização foi a primeira após oito anos de congelamento, e o agravamento difere consoante o tipo de embalagem e o SGRU. No primeiro semestre, o valor entregue pela Sociedade Ponto Verde e restantes entidades gestoras no âmbito dos valores de contrapartida atingiu os 95 milhões de euros, mais 41 milhões que no mesmo período do ano anterior. Só a SPV entregou 68,5 milhões de euros, 39 milhões acima dos meses homólogos.

Apesar de, em meados do ano passado, a SPV ter defendido que um aumento dos valores de contrapartida seria “inevitável”, mostra-se agora insatisfeita na forma como este é calculado. Nesta linha, já em fevereiro deste ano, a SPV anunciou a decisão de impugnar o despacho, num processo que ainda corre na justiça. Entretanto, mostra-se também desapontada com os resultados obtidos até ao momento:O que nós vemos é que os serviços de recolha permanecem estagnados, que mais dinheiro não trouxe mais reciclagem, mais recolha de embalagens. Estamos a pagar mais ao sistema, mas o sistema estagnou”, afirma Ana Isabel Trigo Morais.

Estamos a pagar mais ao sistema, mas o sistema estagnou.

Ana Isabel Trigo Morais

CEO da Sociedade Ponto Verde

A SPV indica que esperava um “aumento significativo” das recolhas no primeiro semestre, e considera que está a demorar “demasiado tempo” a que o novo volume financeiro se traduza em mais reciclagem. Nesse sentido, defende uma “maior transparência” da aplicação dos fundos.

“A responsabilidade alargada do produtor diz que somos [SPV] responsáveis pelo custo real e eficiente desses serviços”, mas “não há um apuramento dos custos reais, efetivos e eficientes”, afirma Ana Isabel Trigo Morais, que acusa esses custos de “falta de fundamentação e transparência”.

Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, em entrevista ao ECO/Capital Verde - 08JUL24
Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, em entrevista ao ECO/Capital Verde, em julho de 2024Hugo Amaral/ECO

A atualização deste ano foi feita com base num estudo da Agência Portuguesa do Ambiente, o qual a SPV contesta por “insuficiências metodológicas e de dados”. Agora, a sociedade defende que deve ser feito um novo estudo. O mesmo está previsto em despacho.

SPV quer mais concorrência e entrar na recolha

Em paralelo, e tendo em conta os presentes resultados em termos de recolha, a SPV acredita que é necessário “trazer novos atores ao sistema de recolha”, abrindo esta atividade a operadores privados. A SPV afirma que poderia assumir também esse papel, e frisa que este é um modelo que está em vigor nos países com maiores taxas de reciclagem, como Alemanha e Áustria.

Precisamos de abrir o setor à concorrência”, remata Isabel Trigo de Morais. O programa de Governo, apresentado pelo atual executivo, está em linha com esta posição. Nele, lê-se como intenção “abrir a gestão de resíduos aos privados num regime de complementaridade, bem como na operação de circuitos de recolha porta-a-porta”.

A líder da SPV sublinha ainda que o objetivo da entidade que gere, e aquilo que está a ser posto em causa pelas ineficiências do sistema, é o cumprimento das metas de embalagens. A estagnação dos níveis de recolha pode ditar que, até ao final de 2025, o vidro, metais ferrosos e madeira não cumpram com as metas específicas, deixando essa conquista apenas para o plástico e para o papel e cartão. No cômputo geral, o país arrisca-se também a ficar aquém: no final de 2024 registou uma taxa de reciclagem de 57,8% para todas as embalagens, abaixo dos 65% que são exigidos em 2025.

Regulador, municípios e ambientalistas de acordo com aumento da ‘contrapartida’

A revisão dos valores de contrapartida e do respetivo modelo de cálculo, tal como aprovada pelo Governo em outubro de 2024, afigura-se justificada”, escreve a Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR), em resposta ao ECO/Capital Verde. A mesma indica que era necessária uma atualização dos valores “por já não se mostrarem adequados à evolução do setor dos últimos anos, e porque não garantiam o cumprimento das exigências legais”, isto é, das metas de recolha. Sobre os efeitos práticos que esse aumento está a ter, a ERSAR afirma que “não existe ainda informação que permita aferir o real impacto da aplicação”.

De acordo com as previsões da ERSAR, para um cabaz de bens essenciais, o valor das contrapartidas financeiras atualizadas pelo Despacho do Governo de 2024 poder-se-á refletir num aumento médio estimado de 0,4 pontos percentuais (p.p.) nos preços desses produtos (o que corresponde a um aumento inferior a 1 cêntimo em grande parte dos produtos).

Ismael Casotti, da Zero, entende que o impacto do aumento dos valores de contrapartida não pode ser aferido consoante a quantidade dos resíduos recolhidos. “Quem separa não é o sistema, é o cidadão. Sendo que o valor de contrapartida não influi no cidadão, não vai influenciar a decisão de reciclar”, conclui. Em paralelo, acredita que as decisões de investimento a nível municipal quanto a eventuais mudanças da recolha, que possam ser executadas com os novos valores de contrapartida, só serão tomadas pelos novos executivos, após as eleições autárquicas que estão marcadas para o próximo 12 de outubro.

Para Casotti, a forma indicada de promover a eficácia do aumento dos valores de contrapartida é haver mais capacitação de municípios e entidades, de forma a que saibam como gerir melhor a recolha.

A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) aprova o aumento, que considera “muito importante”, embora não esteja totalmente satisfeita: “apesar de ainda não suportar os custos reais da recolha seletiva e tratamento de resíduos de embalagens, pelo menos corrige a situação”, afirma, estimando que, a cada ano, os municípios perderam valores na ordem dos milhões de euros, na sequência do congelamento do preço. “Entendemos que não podem ser os municípios e o erário público a continuarem a suportar custos que devem ser da responsabilidade dos produtores de embalagens”, remata.

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