Fiscalização de contratos públicos pelo Tribunal de Contas só a posteriori. O que se faz na Europa?

Países como Espanha, Itália, França, Grécia, Alemanha e Inglaterra têm predominantemente uma fiscalização a posteriori, mas existem exceções e alguns mecanismos de controlo prévios.

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  • Comparação internacional e tendência atual. Em vários países europeus, o controlo prévio direto sobre contratos públicos tem vindo a ser reduzido ou substituído por modelos de auditoria posterior e responsabilização dos decisores, visando maior rapidez na execução dos contratos. Contudo, esta mudança só funciona bem quando existem mecanismos fortes e eficazes de responsabilização financeira.
  • Proposta do Governo português. O Governo pretende alinhar Portugal com essa tendência ao limitar ou eliminar o controlo prévio do Tribunal de Contas, defendendo que o Tribunal deve concentrar-se na sua função jurisdicional e não interferir com a função administrativa, o que permitiria maior celeridade na contratação pública.
  • Posição crítica do Tribunal de Contas. O Tribunal de Contas defende que o controlo prévio é essencial para prevenir perdas financeiras antes que ocorram, argumentando que o controlo concomitante ou posterior não consegue garantir a mesma proteção, sobretudo em contratos de elevado valor, colocando em risco o erário público.
Pontos-chave gerados por IA, com edição jornalística.

O Governo quer alterar a fiscalização prévia que o Tribunal de Contas (TdC) faz aos contratos públicos. Mas,se por um lado o ministro da Reforma do Estado, Gonçalo Saraiva Matias, entende que se deve dar primazia à fiscalização a posteriori, por outro o Tribunal de Contas diz que tal pode ter consequências nefastas para o erário público.

Nesta segunda-feira, a tensão entre as duas partes aumentou. Numa audição parlamentar, o ministro chegou a argumentar que “há muitos países que não têm TdC” e “aqueles que têm TdC não têm um modelo de visto prévio”. Já a presidente do TdC, Filipa Urbano Calvão, garantiu que “não é rigoroso que na Europa ou na União Europeia não haja formas de controlo prévio no contexto da contratação pública e da despesa pública”, defendendo que é um modelo jurisdicional híbrido, exemplificando com o caso de Itália ou de França.

Mas, afinal, como funciona o processo de fiscalização aos contratos públicos no resto da Europa? Países como Espanha, Itália, França, Grécia, Alemanha e Inglaterra têm predominantemente uma fiscalização a posteriori, mas existem exceções e alguns mecanismos de controlo prévios.

De Espanha a Inglaterra, fiscalização é idêntica

No país vizinho, em Espanha, o regime é predominantemente a posteriori. Ou seja, o “Tribunal de Cuentas” espanhol fiscaliza e valida as contas e contratações após as mesmas serem realizadas através de auditorias e relatórios.

Mas há exceções. Em Espanha existem também mecanismos de fiscalização administrativa prévios sobre os procedimentos contratuais exercidos por órgãos como a Intervención General de la Administración del Estado (IGAE) e pelo regime de Control Financiero Permanente que está previsto na Ley General Presupuestaria (Ley 47/2003). Ou seja, Espanha combina o controlo administrativo prévio, através da intervenção destes órgãos, com a fiscalização a posteriori do Tribunal de Contas.

Mais a norte, em França, tanto a Cour des comptes, o tribunal de contas francês, como as Chambres régionales des comptes, as câmara regionais de contas, fazem uma fiscalização a posteriori. Esse controlo é feito através de auditorias, julgamentos das contas e relatórios sobre a legalidade, regularidade e eficiência dos contratos, segundo o Code des juridictions financières.

No sistema francês existe também um controlo prévio administrativo, mas que se realiza antes do pagamento. Ou seja, os comptables publics, em português os contabilistas que gerem os fundos públicos, controlam a disponibilidade orçamental e a conformidade no momento do pagamento. Este mecanismo administrativo impede que haja pagamentos irregulares.

Por outro lado, em Itália, existe a combinação dos dois tipos de fiscalização: uma a posteriori, quase nos mesmo moldes que os exemplos anteriores, e outra preventiva, que é limitada a certos atos e tipos de contratos, não sendo generalizada.

A Corte dei Conti tem assim, segundo a constituição, um papel central na fiscalização posteriormente aos atos, efetuando fiscalizações e relatórios sobre contratos e gestão pública. Mas o tribunal de contas italiano exerce ainda um controlo preventivo que é restrito a certos atos e contratos “sensíveis”, não se aplicando automaticamente a todos os contratos públicos. A supervisão também envolve a ANAC, a autoridade nacional anticorrupção.

Na maior economia da Europa, na Alemanha, a função dos Rechnungshöfe também se cinge a auditar a execução orçamental e a gestão financeira de forma a posteriori. Ou seja, não existe uma fiscalização prévia dos contratos públicos antes da sua assinatura.

Contudo, existe um tipo de controlo prévio, que não é feito pelo tribunal de contas alemão, mas antes por mecanismos internos ao nível orçamental e administrativo e por instâncias próprias de revisão de contratação, por exemplo através da lei federal do orçamento, a Bundeshaushaltsordnung. A revisão dos contratos é feita por organismos próprios e ministérios.

Mais a este da Europa, na Grécia, o tribunal de contas, o Hellenic Court of Audit, exerce tanto um controlo prévio como a posteriori. O país possui um mecanismo legal de pré-verificação de certos contratos de grande valor económico e de categorias previstas por lei e realiza auditorias posteriormente sobre as contas e responsabilidade civil por prejuízo ao erário.

A constituição grega legitima assim o tribunal de contas grego a um controlo jurisdicional quanto ao controlo pré-contratual regulamentar – que caso não seja feito a lei prevê como consequência a nulidade do contrato, em casos específicos -, mas esse controlo é apenas para contratos de grande valor económico ou para contratos financiados por determinados fundos e de obras públicas acima de limiares estabelecidos. A posteriori, o tribunal realiza as habituais auditorias.

Por fim, outro dos países europeus com um sistema de fiscalização a posteriori é Inglaterra. O National Audit Office e o Comptroller & Auditor General auditam e fazem relatórios após a celebração/execução dos contratos.

A verificação prévia é feita por mecanismos administrativos internos e pela autorização de pagamentos do Consolidated Fund. Existem instrumentos processuais que permitem impugnações que podem suspender a execução, mas não há uma fiscalização prévia generalizada do National Audit Office sobre todos os contratos.

A ‘tensão’ entre Governo e Tribunal de Contas agudiza-se

A tensão na ‘batalha’ de argumentos registou na segunda-feira um novo pico, com a presença dos representantes dos dois lados em audições parlamentares autónomas: pelo Executivo, falou o ministro da Reforma do Estado, Gonçalo Saraiva Matias; pelo Tribunal de Contas, teve voz a sua presidente, Filipa Urbano Calvão. E esta, pela primeira vez e em público, mostrou-se incisiva sobre o tema.

O ministro Adjunto e da Reforma do Estado, Gonçalo Matias, durante a audição na Comissão da Reforma do Estado e Poder Local na Assembleia da República, em Lisboa, 14 de outubro de 2025. MANUEL DE ALMEIDA/LUSAMANUEL DE ALMEIDA/LUSA

O tema tem vindo a ganhar destaque no debate político desde que, no final de julho, o ministro da Reforma do Estado anunciou que o Governo iria avançar com alterações legislativas à organização e funcionamento do Tribunal de Contas, tal como consta do Programa de Governo. O ECO questionou na altura o Ministério tutelado por Gonçalo Saraiva Matias sobre esta matéria, mas não obteve resposta.

Mais tarde, no início de outubro, o governante revelou que as alterações iriam abranger a legislação que impõe o visto prévio do Tribunal de Contas, designadamente quanto a concursos públicos e licenciamentos, passando o crivo dos juízes para uma fase a posteriori das decisões. Uns dias mais tarde, no Parlamento, Gonçalo Saraiva Matias defendeu que as alterações visavam simplificar ou diminuir o visto prévio no sentido de acelerar decisões e evitar a “confusão” entre a função de julgar e a de administrar.

O advogado socorreu-se do argumento de que “há muitos países que não têm Tribunal de Contas” e “aqueles que têm Tribunal de Contas não têm um modelo de visto prévio” como o português. “Não existe paralelo na Europa nenhum sistema deste tipo e que é altamente complexo e inibidor da decisão. Portanto, um tribunal serve para verificar a legalidade dos atos praticados. Um tribunal não serve para se substituir ao decisor político, ao decisor administrativo“, argumentou.

Neste sentido, reforçou que o Governo pretende que “o Tribunal funcione de acordo com a sua função jurisdicional”, apontando a “uma revisão da responsabilidade financeira para garantir que quem tem que decidir, decide consoante as competências que lhe são atribuídas com a função política, para que não haja violação da separação de poderes”. Ou seja, de forma a assegurar que “não há uma confusão entre a função de julgar e a função de administrar”. De referir que um dos principais argumentos para esta mudança é a procura de uma maior celeridade na execução dos contratos públicos, eliminando ou limitando uma fase prévia.

Uma posição tudo menos pacífica para o Tribunal de Contas, que pode ver assim esvaziada uma das suas competências. De uma forma mais global, recentemente, no dia 21 de outubro, as mudanças que o Governo quer implementar e que passam também por alterações no código da contratação pública, foram abordadas entre representantes do Tribunal de Contas, da Inspeção-Geral das Finanças (IGF), do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, na reunião semestral de representantes destas instituições.

A alteração anunciada por Gonçalo Matias significa pôr fim a uma prática que resultou da alteração, em 2011 – durante a intervenção da Troika –, à lei orgânica do Tribunal de Contas com o objetivo precisamente de maiores restrições na contratação pública. Mas a instituição presidida por Filipa Urbano Calvão já se fez ouvir. “É a intervenção do Tribunal que garante a credibilidade financeira do Estado português“, disse a responsável numa audição parlamentar no âmbito da apreciação na especialidade do Orçamento do Estado para 2026 (OE2026).

O controlo prévio tem uma vantagem significativa relativamente às outras formas de controlo: é que previne um prejuízo efetivo para o erário público“, argumentou a presidente do Tribunal de Contas, explicando que, com este modelo, no caso de ilegalidade “ainda é possível evitar um prejuízo para o erário público que o controlo concomitante e o controle sucessivo podem não garantir, porque nem sempre o concomitante permite fazer correções atempadas de eventuais ilegalidades”.

Acima de um determinado valor é muito difícil que um titular de um cargo público, um gestor público, consiga reintegrar o Estado nesse montante”, advogou, acrescentando que desconhece qual vai ser a mais-valia que, no final, a alteração vai significar.

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