O impulso de exprimir o seu pensamento e opinião é intrínseco ao Homem. João Paulo Castro Silva Barbosa foi premiado com um 3º lugar no concurso de ensaios do + Liberdade sobre Liberdade de Expressão.
“Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria por um momento em preferir esta última”. Thomas Jefferson, 1787
Já em 1776, na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, a liberdade era assumida como um direito inalienável. Todavia, o conceito de liberdade não é uno, de tal forma que este ensaio se centrará apenas numa análise crítica sobre a liberdade de expressão e a existência de eventuais limites, bem como o seu papel crucial para o cumprimento de uma democracia.
Diz o artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 1948, que “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
De forma análoga, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000) afirma que “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras” e “São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social” (artigo 11º). Neste sentido, é de notar a importância atribuída pelas democracias liberais atuais à liberdade de expressão. Contudo, um olhar atento pela História do Homem revela que nem sempre foi esse o padrão.
Abordar este tema implica, forçosamente, abordar o século XX, marcado pelos regimes totalitários e consequente supressão das liberdades de expressão ou de imprensa. Importa, por isso, desde já, recordar o resultado do crescimento destes regimes fundamentalmente caracterizados pela opressão – a destruição massiva de vidas humanas.
A evolução humana é um conceito absolutamente indissociável da liberdade de cada indivíduo exprimir o seu pensamento e a sua opinião e que a História mostra que é um erro incutir nas sociedades ideias pré-concebidas que não sejam sujeitas ao confronto com ideias opostas.
No século anterior, Stuart Mill afirmara que “a livre discussão das ideias concorre para a evolução das sociedades humanas”. Neste sentido, o século XX provou que a ausência e supressão dessa discussão promovem, precisamente, o oposto de uma evolução do Homem enquanto ser social – a perda da dignidade humana. Na verdade, e concordando com a posição de Mill, é a existência de ideias discrepantes, juntamente com a liberdade para as expor, que impulsiona o diálogo, a argumentação e, consequentemente, o aprimorar dessas mesmas ideias.
Deste modo, “Aquele que nega ao outro este direito [à liberdade de expressão], faz-se escravo da sua opinião atual, porque se opõe ao direito de mudá-la” (Thomas Paine). É, por este motivo, de salientar que a evolução humana é um conceito absolutamente indissociável da liberdade de cada indivíduo exprimir o seu pensamento e a sua opinião e que a História mostra que é um erro incutir nas sociedades ideias pré-concebidas que não sejam sujeitas ao confronto com ideias opostas. É, também, por esse motivo, que a atual situação política e social na Rússia deve preocupar o resto do mundo, uma vez que a recente invasão russa ao território ucraniano, não só foi um atentado ao direito de autodeterminação do povo ucraniano, como também tornou clara a ausência de liberdade dos próprios russos, que têm sido oprimidos e até detidos por protestar contra essa mesma invasão, em cidades como São Petersburgo.
Fica claro, então, que mesmo na atualidade, existem governos que não cumprem as funções cujos modelos democráticos lhes atribuem – a garantia do bem-estar de cada cidadão e dos seus direitos – e a existência desses governos e desses regimes ditatoriais é uma das maiores ameaças à construção de um “mundo livre” universal e deve, por isso, ser uma preocupação de todos, por mais longínqua (ou não) que nos pareça essa realidade. Não existirá, certamente, luta mais digna e necessária do que a luta pela liberdade de cada cidadão, pois um governo será sempre inútil sem a garantia da liberdade individual e, consequentemente, de imprensa – como destacou Thomas Jefferson com a afirmação acima citada.
Destacado o papel primordial da liberdade de expressão enquanto parte integrante da condição humana, importa definir quais os seus limites legais, se se justificar a sua existência. Deve este ser um direito absoluto, não tornando ilegítimos, do ponto de vista legal, discursos de ódio, por exemplo; ou é de forma mais eficaz garantido esse direito e o cumprimento de uma democracia através da imposição de determinados limites?
O conceito de liberdade de expressão é, não só abrangente, mas também bastante complexo, algo que dificulta uma análise objetiva a este tema. Ainda assim, parece evidente que qualquer “linha vermelha” imposta em termos legais seria de muito difícil definição, pelo que a sua ambiguidade poderia inviabilizar a sua eficácia.
No entanto, também parece evidente que discurso calunioso, por exemplo, não pode ser tolerado, na medida em que se trata não da expressão de um pensamento individual, mas sim de uma proposição falsa, daí que, em Portugal e na generalidade dos países a nível mundial, acusar publicamente outro sujeito de algo que não corresponda à verdade seja, também, punível por lei. Deste ponto de vista, a divulgação de “fake news” poderia, de igual modo, ser considerado crime.
A dificuldade ou, até, impossibilidade, no contexto português, da criação de um organismo claramente independente e imparcial que cumpra a função de verificação de factos comprova a complexidade do tema, tornando pouco clara a distinção entre “verificação de factos” e censura, e expondo, assim, a falibilidade de eventuais limites objetivos legais à liberdade de imprensa.
Não obstante, importa questionar quem avaliaria a veracidade (e, assim, legitimidade) destas notícias, de modo a não gerar conflitos de interesses que corrompam esse processo. Tomemos como exemplo o Artigo 6º da Carta dos Direitos Digitais portuguesa, que prevê a “criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados” e “a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas”.
A dificuldade ou, até, impossibilidade, no contexto português, da criação de um organismo claramente independente e imparcial que cumpra a função de verificação de factos comprova a complexidade do tema, tornando pouco clara a distinção entre “verificação de factos” e censura, e expondo, assim, a falibilidade de eventuais limites objetivos legais à liberdade de imprensa. Na prática, não só é árduo definir limites legais à liberdade de expressão, como também seria praticamente impossível implementá-los. Assim, é no cidadão que reside o poder da expressão da sua liberdade, sem comprometer a dos restantes indivíduos. Isto significa, então, que, como é a liberdade de opinião que promove, numa análise mais simplista, a evolução humana, essa evolução enquanto espécie é da responsabilidade de cada sujeito, individualmente. Como afirmou
George Orwell, “Se muitas pessoas se interessam pela liberdade de expressão, ela existirá mesmo que a lei proíba. Se o povo for inerte, minorias serão perseguidas, mesmo que a lei as proteja”.
No que toca à relação do assunto em análise com o bom funcionamento dos regimes democráticos, importa ressalvar que a não imposição de limites legais à liberdade de expressão não fragiliza, de forma alguma, a democracia. É, aliás, uma demonstração do poder da mesma. Se, por um lado, não seria proibido, em termos legais, a defesa de ideologias extremistas como o nazifascismo ou o estalinismo, apostar-se-ia, em força, no poder da palavra e do debate democrático. Na realidade, o apelo à proibição de uma determinada ideologia extremista apenas promove o seu crescimento, assente numa ilusória luta contra um sistema perseguidor das suas ideias e numa criação de “mártires”, posteriormente exaltados. Este fenómeno, que inclusive tem ocorrido com a extrema-direita portuguesa nos últimos anos, permite até que as evidentes e inequívocas limitações destas ideologias sejam esquecidas e escapem ao escrutínio do debate democrático, isto é, é a preocupação e a busca incessante (e inútil) pela definição de limites à liberdade de expressão que, não só impulsiona o crescimento de ideias totalitárias, como também desvirtua o próprio regime democrático.
Em contrapartida, a liberdade de expressão plena defendida neste ensaio não deixa de apresentar um limite derradeiro e inquestionável – a incitação à violência. Ao contrário de outros eventuais limites que poderiam ser discutidos, este limite é claro e objetivo. Mesmo que essa incitação à violência seja feita de forma indireta, deve ser considerada como ação criminosa, tornando-se mais do que um limite moral, um limite legal. Ao defender que até as ideias mais extremistas devem ser combatidas pelo diálogo, com a crença profunda de que serão derrotadas democraticamente, torna-se inconcebível que a violência seja considerada uma solução para qualquer problema ou discrepância.
É por isso que nem aos humoristas devem ser impostos limites à liberdade de expressão, uma vez que não impor estes limites é, inegavelmente, diferente de impor que todos os indivíduos assistam ou sigam humor que, eventualmente, desafie os hipotéticos limites. Na verdade, ter a liberdade de fazer ou de ser, é também ter a liberdade de não fazer ou de não ser – uma ideia também defendida pelo próprio Bruno Nogueira, num texto (cuja censura prova que ainda existe um largo caminho a percorrer em defesa da liberdade de expressão) acerca, no caso, da eutanásia:
Finalmente, o debate acerca dos limites da liberdade de expressão está, não raras vezes, associado ao humor. Contudo, há que realçar o frequente papel pedagógico do humor, no sentido de, através da ridicularização de situações ou de um ou vários indivíduos, promover a reflexão interior, a correção de determinadas atitudes e, mais uma vez, em última análise, a evolução do Homem. Através de um olhar atento sob a história, nomeadamente a história literária portuguesa com Gil Vicente, comprova-se o caráter fundamental do humor para possibilitar a identificação de aspetos a corrigir pela sociedade. Além disso, e como nomeadamente Bruno Nogueira tem provado recentemente, é possível rir até sobre as mais duras realidades da condição humana, como doenças terminais.
É por isso que nem aos humoristas devem ser impostos limites à liberdade de expressão, uma vez que não impor estes limites é, inegavelmente, diferente de impor que todos os indivíduos assistam ou sigam humor que, eventualmente, desafie os hipotéticos limites. Na verdade, ter a liberdade de fazer ou de ser, é também ter a liberdade de não fazer ou de não ser – uma ideia também defendida pelo próprio Bruno Nogueira, num texto (cuja censura prova que ainda existe um largo caminho a percorrer em defesa da liberdade de expressão) acerca, no caso, da eutanásia: “É uma lei bonita em que ninguém sai a perder, e é isso que custa a entender nos adeptos fervorosos do não: a incapacidade de perceberem que o melhor para eles não serve toda a gente. Que a vitória do sim não os obriga a escolherem a eutanásia como solução final”.
Porém, a ineficiência de eventuais limites legais à liberdade de expressão não invalida a existência de limites morais à mesma. Veja-se, concretamente, o caso de crenças religiosas, no qual é imperativo que reine a tolerância e o respeito pelo próximo, ainda que, em termos jurídicos, seja impossível traçar a “linha vermelha” do aceitável. Na realidade, a liberdade é a mais fundamental das religiões, aquela na qual todos acreditamos e a qual todos desejamos ser praticantes. Nas palavras de Miguel Torga, “Liberdade, que estais em mim, / santificado seja o vosso nome”.
Após esta análise, conclui-se que o impulso de exprimir o seu pensamento e a sua opinião é intrínseco ao Homem, daí que esse direito seja salvaguardado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e que pareça inviável a imposição de limites legais à liberdade de expressão, à exceção, claro, da incitação à violência. Desta forma, a resposta a este eventual problema deve ser o debate e argumentação de ideias, que impulsionam a (re)construção constante do pensamento humano, com a esperança de que o Homem evolua, um dia, para uma sociedade onde cada indivíduo seja “religiosamente livre”.
Bibliografia – última consulta a 10 de abril 2022
- https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript
- https://www.ohchr.org/sites/default/files/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf
- https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT
- https://www.adamsmith.org/blog/tag/freedom+of+speech
- https://www.acordacidade.com.br/noticias/224934/a-licao-de-john-stuart-mill-sobre-liberdade-de-expressao.html
- https://fabiomesquita.wordpress.com/2015/04/02/liberdade-de-expressao/
- https://www.institutoliberal.org.br/blog/a-sabedoria-de-thomas-paine/
- https://www.msn.com/pt-pt/noticias/mundo/protestos-na-r-c3-bassia-contra-invas-c3-a3o-da-ucr-c3-a2nia/ar-AAVMWIH?ocid=BingNewsSearch
- https://citador.pt/poemas/liberdade-miguel-torga
- https://www.noticiasaominuto.com/fama/1419175/texto-emotivo-de-bruno-nogueira-sobre-eutanasia-censurado-por-facebook
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