Só um Ronaldo na saúde não chega

O (suposto) novo director executivo do SNS, sem desprimor pelo seu percurso, já passou pelo Ministério da Saúde, não foi assim há tanto tempo, e não consta que tenha marcado a diferença.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) terá em breve um director executivo – o CEO [Chief Executive Officer] da saúde como a imprensa lhe tem chamado. Para o cargo é esperada a designação do presidente do conselho de administração do Hospital de São João no Porto, o Professor Doutor Fernando Araújo, uma pessoa de elevada reputação no sector. O Porto, diz o primeiro-ministro, tem muito a ensinar a Lisboa em matéria de gestão de serviços de saúde. A expectativa é grande porque, como o próprio primeiro-ministro referia há dias, ao Governo cabe a responsabilidade de definir a política de saúde, mas não a gestão do dia a dia nos estabelecimentos de saúde. Infelizmente é isso que tem acontecido na prática. Os hospitais do SNS, apesar de dotados de autonomia administrativa, não fazem uso da autonomia de gestão que a lei lhes confere, deixando ao Governo uma tarefa para a qual este não revela competência.

Portugal continua a apreciar os seus homens messiânicos. Mas Ronaldo só há um e está em final de carreira. Além disso, a reforma da saúde em Portugal não vai lá com um homem só. É preciso mais. O SNS é um navio de grande dimensão que não inverte a marcha de um momento para o outro. O próprio CEO, confirmando-se a designação antecipada nos últimos dias, saberá disso.

À frente do Hospital de São João no Porto desde 2019, a sua administração acumulou prejuízos superiores a 100 milhões de euros desde então (vide relatórios e contas da instituição). É certo que a instituição não se encontra em situação de falência técnica como o irmão Santa Maria em Lisboa, onde o passivo total no final de 2021 era superior ao activo total, mas as contas do São João não o livram do artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais. Mais ainda, fosse a entidade privada e as reservas levantadas pelo auditor às contas de 2021 seriam de arrancar o cabelo. (Como é do Estado não há problema!)

Gerir um hospital, e um hospital público em particular, não há de ser fácil. Gerir um conjunto de hospitais menos ainda. A tarefa é hercúlea, por isso, seria importante definir prioridades. Uma primeira prioridade reside em rever o modelo de financiamento dos hospitais do SNS, que são financiados através de contratos-programa estabelecidos com o Estado mas cuja execução é um pesadelo. Não é aceitável, por exemplo, que no Hospital de São João, no final de 2021, persistissem divergências entre o Estado e o Hospital sobre a produção realizada desde 2013 (!). Também não é aceitável que a conta de “outras contas a receber”, uma conta do activo corrente que deveria ser residual no conjunto do activo, represente no balanço do São João entre 35% e 40% do activo total – no Santa Maria a situação é idêntica. Trata-se aqui, sobretudo, de pagamentos não realizados pelo cliente Estado, enquanto se discutem divergências entre duas entidades…do Estado. Conhecerão ainda o que está em discussão?

Os hospitais do SNS deveriam procurar inspiração nas antigas parcerias público-privadas na saúde. Como o Tribunal de Contas apontou no passado, a saudosa PPP de Braga apresentava custos por doente padrão mais baixos do que hospitais equivalentes no SNS e, acima de tudo, palavras do Tribunal de Contas novamente, ela era sujeita a um escrutínio muito maior por parte do regulador Estado no controlo da produção realizada. Melhor ainda, eliminada a pressão do Bloco de Esquerda, seria de recuperar o modelo de PPP na saúde e aliviar o SNS dos hospitais mais ineficientes. Todavia, é provável que exista também um problema de subfinanciamento público da saúde em Portugal, que se observa no SNS e que também prejudicou as PPP. De acordo com o relatório “Health at a Glance 2021” da OCDE (p.197), a nossa despesa pública com saúde em percentagem da despesa pública total (14%) é inferior à média dos países da OCDE (15%) e muito inferior à de países com demografia semelhante à nossa como a Alemanha (20%).

À falta de gestão e de recursos, junta-se um terceiro problema: A falta de médicos e o envelhecimento dos que estão registados junto da Ordem dos Médicos (OM). O número de médicos em exercício é um tema polémico. No referido relatório da OCDE, Portugal parece bem posicionado, mas os números são enganadores. Desde 2016 que a OCDE tem vindo a incluir no relatório uma ressalva sobre os números da OM, apontando-lhes uma sobrestimação de 30%.

Na edição de 2021 (p.213), na nota de rodapé em inglês, escreveu-se o seguinte: “1. Data refer to all doctors licensed to practise, resulting in a large overestimation of the number of practising doctors (e.g. of around 30% in Portugal)”. Retirando o excesso de 30%, Portugal baixa para a média da OCDE, não obstante uma pior demografia por comparação com os países da OCDE, encontrando-se também abaixo de vários países europeus. O número de médicos em exercício é prejudicado pela distribuição etária dos mesmos e também pela sua categoria profissional.

Os dados da OM indicam claramente o envelhecimento dos médicos especialistas e uma elevada percentagem de médicos não especialistas. Conforme se observa no gráfico (abaixo), cerca de 35% dos médicos especialistas têm mais de 65 anos de idade. Os poucos que ainda estarão no activo, possivelmente em consultórios particulares, ou que mantêm a inscrição na OM para se manterem próximos da profissão, encontram-se dispensados de fazer serviço de urgência (o que se compreende). A dispensa de serviço de urgência aplica-se aliás a todos os médicos que têm mais de 55 anos de idade. Assim, considerando todos aqueles que estão inscritos na OM, temos que 57,8% do total de médicos especialistas estão dispensados de fazer serviço de urgência. O caso de Ginecologia-Obstetrícia, onde a situação é ainda mais aguda do que a média, está longe de ser único. Há um desequilíbrio geracional na distribuição de especialistas que é transversal.

Distribuição etária de médicos especialistas inscritos na OM

Fonte: Ordem dos Médicos, Estatísticas Nacionais.

Resta ainda acrescentar que, do total de médicos inscritos na OM, 34,7% do total são médicos “não especialistas”, incluindo aqueles que nunca fizeram especialidade, os que se encontram ainda a fazer a especialidade e aqueles a quem não foi concedida vaga de especialidade.

É aqui que entra o garrote da formação médica. Desde 2016 que deixou de ser proporcionada vaga de especialidade a todos aqueles que terminam o ano de internato comum, que ocorre depois de concluída a licenciatura e antes de iniciada a formação de especialidade. A opção é altamente discutível. Por um lado, ela vai contribuir para engrossar o número de “não especialistas”.

Por outro lado, a opção vai contra a evidência no terreno que dá conta da procura por especialistas, não só a jusante (utentes), mas também a montante (instituições do SNS). Segundo o relatório de “Auditoria externa ao processo de avaliação da idoneidade e capacidades formativas – internato médico” (EY, 2019), o total de vagas de especialidade abertas entre 2006 e 2018 pelo Estado, que nesta matéria é assessorado pela OM, foi inferior em 30% ao número de internos requeridos pelas instituições do SNS. Há que aliviar o garrote, até porque, mais a montante ainda, no acesso às licenciaturas de medicina também não há sinais de redução da procura.

O (suposto) novo director executivo do SNS, sem desprimor pelo seu percurso, já passou pelo Ministério da Saúde, não foi assim há tanto tempo, e não consta que tenha marcado a diferença. Pode ser que agora venha a ser diferente. O Ronaldo (o verdadeiro) também não está em grande forma, mas todos esperamos que ainda vá a tempo de fazer um bom Mundial.

O CEO da saúde faria bem em definir como prioridades as seguintes:

  1. A revisão do modelo de contratação e de monitorização da prestação de cuidados de saúde;
  2. O aumento do financiamento público da prestação pública ou privada de cuidados de saúde;
  3. O reforço da formação de médicos especialistas. Há também problemas do dia a dia, como a partidarização das administrações hospitalares, o absentismo crónico, ou a ausência calamitosa de informatização em tempo real das unidades do SNS e articulação entre as mesmas (uma falha clamorosa e inconcebível na era da digitalização e do pós-pandemia), cuja resolução se afigura chave para melhorar a resposta do sector em Portugal. Enfim, boa sorte. Não será missão fácil.

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