Subir preços e abandonar negócios sem rentabilidade são receita para enfrentar a crise, diz Tera Allas

Tera Allas, diretora de research and economics da McKinsey no Reino Unido e Irlanda, antecipa várias vagas de inflação até a economia regressar a uma situação normal.

Tera Allas, diretora de research and economics da McKinsey no Reino Unido e Irlanda, recomenda que as empresas mantenham o foco na estratégia de longo prazo para não perderem competitividade no futuro. O curto prazo exige, no entanto, medidas. A responsável recomenda aos CEO que subam os preços dos bens e serviços, para não entrarem “numa posição de caixa negativa”, e abandonem atividades e mercados sem rentabilidade.

A partner da consultora norte-americana antecipa que “teremos várias vagas de inflação antes de podermos chegar a um ponto em que podemos considerar que regressámos ao normal“. Um cenário que ocorreu também nos anos 70. Tera Allas afirma, no entanto, que a economia é hoje mais flexível e capaz de gerir choques.

Os preços da energia deverão permanecer muito elevados, as taxas de juro estão a subir rapidamente e a Europa parece estar a beira de uma recessão. Como é que os CEO devem lidar com este contexto?

A primeira boa notícia é que eles já tiveram de lidar com recessões e inflação no passado. A Covid-19 foi um teste e mostrou como os negócios podem agir. Depende dos setores, quanto o negócio está a ser afetado e quais as condições do mercado de trabalho. De uma forma geral, deixar-se distrair por acontecimentos de curto prazo não é uma boa ideia, já que, para garantir a competitividade no longo prazo, é preciso continuar a investir em investigação e desenvolvimento, em tecnologia, nas pessoas… Mas também são necessárias algumas medidas de curto prazo para robustecer o balanço.

Uma alavanca-chave num ambiente inflacionário é olhar para a estrutura de preços, para ter a certeza que reflete o valor que o produto tem para o consumidor.

Que tipo de medidas?

Depende muito dos negócios, mas uma alavanca-chave num ambiente inflacionário é olhar para a estrutura de preços, para ter a certeza que reflete o valor que o produto tem para o consumidor. Isso pode ser uma grande alavanca com a inflação a 10%. Se não se alterar os preços, em breve estará numa posição de caixa negativa. A segunda questão é focar nas áreas do negócio que estão a crescer. Podem ser países, podem ser segmentos de cliente, um produto particular ou categoria de serviço. Alguns setores estão mais expostos aos choques do preço da energia e das matérias-primas do que outros. É uma questão de encontrar os segmentos do negócio que são mais resilientes e estão a crescer. Em alguns casos, será necessário levar a cabo reestruturações, traçar uma linha em alguma diversificação.

Fechar ou alienar áreas que não são rentáveis ou são menos rentáveis?

Isso seria uma coisa natural a fazer. Nós não temos uma bola de cristal sobre o longo prazo. Os preços da energia deverão permanecer elevados, mas quão elevados e por quanto tempo? A inflação está muito elevada neste momento, mas por quanto tempo? Se houver uma recessão, a maioria está a antecipar que seja ligeira. Não é uma coisa de tal forma entrincheirada de que nunca vamos sair dela. É importante manter um olhar sobre o curto prazo, mas também sobre o longo prazo em termos estratégicos.

O nosso instinto é que teremos várias vagas de inflação antes de podermos chegar a um ponto em que podemos considerar que regressámos ao normal.

A McKinsey tem um outlook sobre até quando terá de durar este combate dos bancos centrais contra a inflação. Poderá prolongar-se até 2024?

Fazemos projeções e temos modelos para perceber os diferentes cenários. A verdade é que é impossível saber com certeza, porque há muita incerteza. Há a incerteza em redor da guerra, sobre quanto tempo será necessário para as cadeias de abastecimento se restabelecerem, de como o mercado de trabalho irá reagir… Se juntarmos todos estes fatores, o nosso instinto é que teremos várias vagas de inflação antes de podermos chegar a um ponto em que podemos considerar que regressámos ao normal. O que quer que isso signifique porque, já agora, provavelmente não será o mesmo normal que deixámos antes.

As pressões inflacionistas ainda vão perdurar.

Preços da energia a subir significam que há cotações das matérias-primas a subir, que há uma subida dos preços dos petroquímicos, dos plásticos, das embalagens…

Há um efeito cascata.

Exatamente, há um efeito cascata e isso leva tempo. Claro que não temos uma bola de cristal para saber o que os bancos centrais vão fazer. Os mercados estão à espera que subam as taxas de juro de forma rápida e agressiva e isso de alguma forma irá limitar a inflação e a atividade económica. Podemos olhar para os anos 70 e tentar ter uma ideia do que aconteceu, mas estamos numa economia muito diferente, menos dependente da energia, devido ao peso dos serviços, mais dependente do trabalho, novamente por causa dos serviços, e muito mais globalizada e internacional. Em teoria, a economia estará mais flexível e capaz de gerir choques.

É difícil, ainda assim, ter um cenário claro.

Consigo ver um cenário em que a inflação e as taxas de juro descem muito rapidamente, porque são os preços elevados da energia que provocam a inflação. Se estabilizarem a um nível elevado, dentro de um ano ou dois terão chegado a todo o sistema. Mas também consigo ver um cenário em que começamos a ter espirais. Os salários de momento estão muito atrás da inflação.

Os salários vão acabar por aumentar.

Podemos pensar que a dado momento terá de haver uma aproximação, com a inflação a começar a descer e os salários a continuarem a subir. O que depois tem repercussões nos preços. A razão porque poderá não ser tão mau como parece é porque os custos de trabalho, dependendo do país e do setor, representam um terço a dois terços do preço de um produto. Provavelmente menos, já com os impostos. Mesmo que os custos do trabalho duplicassem, não mexem no preço dos produtos finais com a mesma intensidade. Depende muito dos setores. Se estiver a falar de um setor intensivo em trabalho, como turismo, hotelaria e restauração, retalho, o impacto dos custos do trabalho não pode ser significativo. Se estivermos a falar de indústria, onde já há muita robótica e automação, o impacto é menor.

Outro aspeto que está a tirar o sono aos gestores são os problemas nas cadeias de abastecimento. É de esperar que o alívio nos constrangimentos continue no próximo ano?

O nosso cenário central é que os constrangimentos continuem a aliviar, por várias razões. Uma delas é o tempo. É preciso tempo para que algo que foi transformado durante a Covid-19 se restabeleça. A segunda é que se houver um abrandamento da economia, haverá mais folga no sistema e é mais fácil pôr uma coisa a funcionar bem quando há margem. Esse é o cenário central, mas não sabemos o que vai acontecer na China com as políticas de Covid Zero. Se isso trouxer mais confinamentos em partes significativas do país com implicações logísticas então pode causar disrupções nas cadeias de abastecimento. O mundo é incrivelmente interligado hoje em dia. Basta uma disrupção num componente e tudo o resto tem de esperar por que esse componente chegue. Continuam a existir riscos à volta das cadeias de abastecimento, mas em termos de importância relativa na cabeça dos CEO, o que os preocupa, está a recuar relativamente aos preços da energia, uma travagem da economia ou a subida das taxas de juro.

Há uma discussão sobre se estamos a atravessar um período de desglobalização ou se estamos a ter uma globalização diferente. Como vê esta questão?

Acho que depende do período. A nossa análise sobre o que está a acontecer nas cadeias de abastecimento globais, antes da Covid, durante a Covid e agora no pós-Covid, é uma mudança na forma da globalização. Algumas rotas estão a ser alteradas, alguns acordos de abastecimento estão a ser alterados, os negócios estão a construir uma maior resiliência das suas cadeias de abastecimento. Não a 100% porque isso seria demasiado caro, mas o suficiente para não dependerem apenas de um fornecedor.

A grande tendência, que é fascinante, é que o comércio de serviços está a crescer muito mais rapidamente do que o comércio de bens. Pode-se dizer que o comércio de serviços está, de alguma forma, saturado.

Será uma globalização mais organizada em blocos regionais?

As forças fundamentais mantêm-se, mas depende de setor para setor. Por exemplo, os serviços de software. É possível entregar 80% dos serviços de software de forma remota. Pode ser em qualquer lugar do mundo. Claro que há a barreira linguística, há a diferença de fuso horário, etc., mas é muito móvel.

Se estivermos a falar de bens industriais é diferente.

Exatamente. Há setores como os materiais de construção ou o ferro, cuja expedição é muito cara. Tendem a ser mais regionalizados, porque sai mais barato. E há setores que são menos globalizados devido às regulamentações diferentes. A grande tendência, que é fascinante, é que o comércio de serviços está a crescer muito mais rapidamente do que o comércio de bens. Pode-se dizer que o comércio de serviços está, de alguma forma, saturado. Cresceu devido à arbitragem com os custos do trabalho. Comprávamos produtos da Ásia Oriental porque os trabalhadores do têxtil ou na indústria automóvel ou dos brinquedos eram mais baratos. Mas essa arbitragem está a desaparecer. Há também razões que se prendem com a China e a Índia, que serão capazes de produzir mais do que consomem. São economias enormes por direito próprio e de um ponto de vista do peso relativo é de esperar que empurrem para baixo a globalização.

Tornam-se mais autossuficientes.

Sim, mais do que no passado. Não interpretaria isso como uma desglobalização como tal. É só porque esses países estão a ganhar peso na economia global.

Vamos assistir a um maior isolamento da China, sobretudo em relação ao Ocidente?

Sendo realistas, estamos tão interligados, que acho que não pode ser desfeito. Também não acredito que alguém queira que seja desfeito. O que é mais provável é que em alguns setores e produtos específicos poderá haver um comportamento protecionista. Que sempre tivemos, mas que se poderá tornar mais pronunciado. Haverá mais barreiras comerciais, tarifárias ou regulamentares, mas não vejo isto a acontecer em toda a economia. As empresas estão também mais conscientes destas preocupações geopolíticas e estão apenas a construir mais opções para as suas cadeias de abastecimento e a pensar de forma estratégica. Se não pudermos importar este componente da China, quanto custaria ter uma alternativa. Estão a introduzir mais flexibilidade no planeamento.

Tivemos a pandemia, agora a guerra na Ucrânia e os seus impactos. Além do que já falámos, vê outras tendências a emergir?

Algumas tendências já existiam e ou foram aceleradas ou paradas. Quais as mudanças estruturais. Uma mudança estrutural provocada pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia é a mudança no mix energético. Pode também representar uma mudança significativa na eficiência energética, se as pessoas responderem a estes preços elevados alterando as suas casas e fábricas.

Assistimos também a uma mudança no mercado de trabalho

Outra mudança estrutural é o mercado de trabalho. Já íamos ter uma falta de pessoal maior porque mais pessoas querem reformar-se e menos estão a entrar no mercado de trabalho, mas com a Covid houve uma aceleração. Para as 30% de pessoas que podem trabalhar remotamente ocorreu uma mudança significativa. Em todos os países onde fizemos inquéritos, as intenções dos trabalhadores e dos empregados é que esses 30% que podem trabalhar remotamente possam fazê-lo num sistema híbrido. Nunca o teríamos testado desta forma extrema se não tivéssemos a Covid e acho que veio para ficar.

Metade de todas as tarefas feitas pelos trabalhadores podem ser automatizadas com a tecnologia que já existe atualmente.

Muitas empresas em muitos setores queixam-se da incapacidade em preencher vagas de trabalho. É um problema conjuntural que vai aliviar ou estrutural?

É difícil dizer. Se tivermos uma grande recessão, então por definição irá aliviar. Mas se excluirmos os fatores cíclicos, o envelhecimento da população é um problema estrutural de longo prazo. É como um iceberg, vai continuar a movimentar-se na mesma direção. Por outro lado, a automação está lá. Metade de todas as tarefas feitas pelos trabalhadores podem ser automatizadas com a tecnologia que já existe atualmente. A nossa projeção é que, até 2030, qualquer coisa como 20 milhões de empregos, ou seja 20% da força de trabalho na Europa, pode ser automatizada. Mas há empregos que vão aparecer noutras áreas.

Qual é o efeito líquido?

O efeito líquido é positivo, porque se pensarmos em tendências de muito longo prazo a procura por serviços vai aumentar e os serviços são muito mais intensivos em trabalho. Muitas das coisas que fazemos no serviço a clientes, na saúde, na educação, nos serviços sociais, o trabalho com idosos, são tarefas humanas, exigem competências sociais que os robôs não têm. Há muitas competências humanas que serão necessárias no futuro.

A União Europeia quer introduzir limites de preços na eletricidade, uma taxa sobre lucros inesperados. Como olha para estas medidas. São necessárias agora, mas podem ter efeitos indesejados no longo prazo?

Os políticos estão a andar numa corda bamba. Todas essas medidas têm sempre pontos contra e pontos a favor e é difícil dizer qual a resposta correta. Há uma desvantagem em relação aos limites nos preços que é retirar o incentivo mais forte para melhorar a eficiência energética. Mas tendo em conta os outros fatores, e o facto de os preços grossistas do gás natural estarem dez vezes mais elevados, é demasiado alto para a maioria das famílias na Europa. Uma moderação é provavelmente necessária. É mais uma questão de saber a que nível se fixa e que outros incentivos se cria para as pessoas ainda quererem poupar energia. Em relação à taxação dos lucros inesperados, a guerra na Ucrânia não tem precedente e os preços não têm precedente e não é inédito querer redistribuir parte do dinheiro que está a ser ganho pelos produtores de energia para o resto da sociedade. Suscita também uma série de considerações sobre o impacto nos incentivos para o futuro. É uma questão de matiz. É possível fazê-lo de uma forma que não destrói os incentivos futuros? É possível fixar um nível que seja razoável para as empresas de energia. Provavelmente passa por ter um diálogo de qualidade entre todas as partes.

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