Portugal: uma democracia pouco liberal

A verdadeira razão de existir do Estado consiste na defesa de valores como a confiança e a verdade. Como o governo faz o que não deveria fazer, não de admirar que continue a cultivar a suspeita.

O que é que o défice de 2016, a recapitalização da CGD e, porventura, a venda do Novo Banco têm em comum? Todos têm em comum maus processos de actuação do Governo. A este respeito, dir-se-á: antes bons resultados que maus, e entre bons resultados e maus processos antes os primeiros que os segundos. Ora acontece que, tratando-se de acção governamental, não é necessariamente assim.

Os resultados obtidos pelo Governo são evidentemente importantes, ninguém de bom senso o poderá negar, mas os processos através dos quais aqueles são atingidos não o são menos. Sobre isto, a literatura da administração pública é extensa no elencar de diferenças entre a gestão de uma organização privada e a de uma instituição pública. Uma e outra são distintas.

Na administração pública, a busca de eficiência não é asséptica, como no sector privado. No Estado, há valores éticos que devem ser observados pelos cidadãos-governantes como contrapartida do seu monopólio no uso da coerção sobre os seus restantes concidadãos.

Obviamente, daqui não decorre que, ao contrário do sector público, tudo possa valer no sector privado. Não. As empresas privadas têm todo o interesse em mover-se através de sólidos princípios éticos, porque se não o fizerem a sua viabilidade futura acabará comprometida. No entanto, há no Estado uma noção de perenidade que nas empresas privadas não existe necessariamente, e é devido a esta noção de perenidade que a intervenção pública não pode ser imoral.

Diversos autores têm sublinhado a importância processual do exercício democrático da administração pública. A democracia é, ela própria, um processo e não um fim. É um processo de formação de opinião, de tomada de decisão e de produção legislativa. Porém, a decisão democrática por maioria, constituindo a menos má das alternativas, não impede que a qualquer momento possam ser tomadas más decisões por parte da maioria.

A este propósito, bastará recordar que Hitler foi eleito democraticamente. O economista Friedrich Hayek, prémio Nobel da Economia em 1974 e um dos mais brilhantes pensadores do nosso tempo, resume a Democracia da seguinte forma em “The Constitution of Liberty”: “If Democracy is a means rather than an end, its limits must be determined in the light of the purpose we want it to serve (…) And once it is generally accepted that majority decisions can merely indicate ends and that the pursuit of them is to be left to the discretion of administrators, it will soon be believed also that almost any means to achieve those ends are legitimate”.

Infelizmente, é isto que vai sucedendo na governação portuguesa. O exercício orçamental de 2016, sobre o qual já aqui escrevi no ECO (em “Como fabricar um défice”), é um exemplo paradigmático: bom resultado, péssimo processo. Já a recapitalização da CGD ficou-se apenas pelo péssimo processo, como ainda na semana passada aqui dei conta (em “De Atouguia a Teixoso”). Quanto à venda do Novo Banco, logo veremos, porque uma coisa é o Estado ficar com 25% do banco, outra é ser o Fundo de Resolução (que é financiado pelos restantes bancos do sistema, que não foram nem tidos nem achados no processo).

Costuma-se defender que a razão de existir do Estado reside na produção de bens públicos, que decorrem das chamadas falhas de mercado. Sendo certo que sob este argumento podemos indiscutivelmente encontrar justificação para a intervenção pública, parece-me que esta é uma razão sobretudo subsidiária. Que, ademais, tende a desvalorizar os fracassos de governo, tão ou mais frequentes que os de mercado.

Assim, na minha opinião, a verdadeira razão de existir do Estado consiste na defesa e na promoção de valores como a confiança e a verdade, valores aos quais o recém-falecido Kenneth Arrow (Nobel da Economia em 1972) um dia chamou de instituições invisíveis (“trust is an important lubricant of a social system. It is extremely efficient; it saves a lot of trouble to have a fair degree of reliance on other people’s word”, escreve Arrow em “The Limits of Organization”).

Ao invés, ao afirmar-se por determinados princípios, mas actuando ao contrário do que seria de supor (e.g., um orçamento votado na AR com determinadas orientações, mas que é metido na gaveta e é virado do avesso; uma CGD que se diz garantir pública, mas que é gerida como privada e é opacamente capitalizada), o Governo faz o que não deveria fazer. Não é, portanto, de admirar que continue a cultivar a suspeita. Quer daqueles que para ele olham do exterior, como também daqueles que o observam criticamente dentro de portas. Porque, como afirma Hayek, “Though Democracy is probably the best form of limited government, it becomes an absurdity if it turns into unlimited government”.

Fica assim aberto o caminho para uma cultura de súbditos e de soberanos, uma cultura iliberal.

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