• Especial por:
  • Instituto +Liberdade

DesCentralização na Saúde: A reanimação dos cuidados primários de saúde

O ensaio "DesCentralização na Saúde: A reanimação dos cuidados primários de saúde" foi premiado no 2º lugar na iniciativa "Campus da Liberdade", do instituto +Liberdade.

A criação de Unidades de Saúde Familiares (USF) de Modelos de tipo C contribui para melhoria no acesso aos cuidados de saúde primários e melhoria da prestação de cuidados de saúde.

ACESSO AOS CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS EM PORTUGAL

A saúde deve ser geral, universal e gratuita, segundo a constituição portuguesa. O acesso à saúde deve começar nos cuidados primários, que constituem uma abordagem à saúde e bem-estar, centrada nas necessidades e preferências das pessoas, famílias e comunidades. Estes cuidados abordam os diversos determinantes da saúde e incidem holisticamente sobre os vários aspetos da saúde física, mental e social. Devem ainda assegurar que as pessoas recebem cuidados completos, desde a promoção e prevenção ao tratamento, reabilitação e cuidados paliativos, tão perto quanto possível do seu ambiente diário.

Em Portugal, no final de 2021, mais de um milhão de utentes não tinha médico de família atribuído. O problema terá tendência a piorar já que, este ano, 1.000 médicos atingem a idade da reforma, e os próximos anos não são mais otimistas. O bastonário da Ordem dos Médicos alerta para a possível reforma de 400 médicos em 2023 e quase 300 em 2024. A formação de mais profissionais não será a melhor solução, uma vez que todos anos se formam cerca de 500 recém-especialistas em Medicina Geral e Familiar. Destes, 60% a 70% opta pelo serviço privado ou pela emigração. A falta de progressão na carreira, salários baixos, unidades mal equipadas, a falta de tempo para dedicar a atividades de investigação e a centralização das competências são apontadas como algumas das principais causas para este problema.

Em Portugal, no final de 2021, mais de um milhão de utentes não tinha médico de família atribuído. O problema terá tendência a piorar já que, este ano, 1.000 médicos atingem a idade da reforma, e os próximos anos não são mais otimistas.

O panorama não melhora quando se analisam outros dados, designadamente a falta de cobertura do sistema público. Dados do relatório Health at a Glance Europe 2021 da OCDE colocam Portugal no topo da UE com o valor mais elevado de pagamentos diretos em percentagem do consumo das famílias, sendo que mais dos 10% dos agregados familiares portugueses tiveram despesas de saúde catastróficas, isto é, tiveram que optar entre a saúde e as despesas básicas familiares (e.g. comida, rendas ou empréstimos à habitação, água, luz, gás), em comparação com 6,5%, em média, na UE. Em teoria, toda a população portuguesa tem acesso a cuidados de saúde através do serviço público de saúde, contudo, o mesmo relatório evidencia que 28% da população opta voluntariamente por aderir a uma cobertura dupla por seguros privados, excluindo beneficiários da ADSE ou outros subsistemas. O facto é que Portugal apresenta carências no que respeita ao acesso a cuidados de saúde superiores à média da União Europeia e as famílias com menor rendimento são as mais penalizadas, contribuindo para o ciclo de empobrecimento. Atualmente não é possível garantir o acesso à saúde a toda a população, pelo que o princípio da universalidade do SNS está em causa. Independentemente da natureza do prestador de serviço, urge colocar o utente no centro do sistema.

Aos problemas apresentados, soma-se a evidência de que cerca de 40% dos episódios de urgência poderiam ter sido resolvidos nos cuidados de saúde primários. Assim, uma melhor prestação das USFs (Unidades de Saúde Familiar), juntamente com uma promoção de campanhas de informação e consciencialização da população, também traria ganhos ao funcionamento dos cuidados de saúde em Portugal, reduzindo custos e tempos de espera.

UNIDADES DE SAÚDE FAMILIAR EM MODELO C, DO PAPEL À PRÁTICA

Em Portugal, em 2020, apenas 63.2% da população esteve coberta por USFs. Tal constitui um grave problema de saúde pública com efeitos negativos na sustentabilidade do sistema de saúde. Assim, torna-se clara a necessidade de inovar para um novo formato de prestação de cuidados de saúde primários: o modelo C.

Por definição, uma USF é uma “…célula organizacional e elementar de prestação de cuidados de saúde individuais e familiares, constituída por uma equipa multiprofissional, com autonomia organizativa, funcional e técnica, e integrada em rede com outras unidades funcionais do centro de saúde.” Normativo n.o 9 (2006: 1256). São previstas três modalidades de USF: modelo A, B e C. Estas modalidades diferenciam-se com base no grau de autonomia, modelo retributivo e modelo de financiamento/estatuto jurídico, tendo também uma lógica de progressão e aprendizagem. O modelo C teria como objetivo criar USFs com capacidade de complementar serviços ou falhas registadas no SNS. Aqui, as USFs podem ser criadas por setores privados ou sociais, podendo trabalhar em conjunto com um Centro de Saúde, sem que deste dependam.

VANTAGENS E DESAFIOS DAS USF-C

O modelo C apresenta-se, assim, como uma solução que pretende devolver ao utente a possibilidade de escolha, num mecanismo mais autónomo, próximo e que estimula a relação de confiança entre o utente e o médico. Além disso, este modelo atua na prevenção, o que permite ganhos na saúde a longo prazo. Neste modelo, os médicos (e demais trabalhadores clínicos) associam-se livremente para concorrer à USF. O modelo C beneficiaria da capacidade instalada já existente – infraestruturas e profissionais de saúde – só se alterando a autonomia organizacional e financeira, com um contrato programa com as ARS (Administração Regional de Saúde).

Uma das grandes vantagens do modelo C é a maior autonomia nas contratações e, consequentemente, o previsível aumento da atratividade para médicos de família. Nas USF (sobretudo nas de modelo C) os contratos de trabalho seguem as regras privadas de contratação. Há assim mais flexibilidade e mecanismos de melhor compensação salarial, o que poderá reforçar a atratividade do serviço público para os profissionais de saúde.

Apesar de este modelo apresentar desafios no que respeita aos custos mais elevados com pessoal, é preciso ter em conta os ganhos em saúde conseguidos pela melhoria da prestação de serviços. Ganhos estes que de outra forma ficariam escondidos sob a forma de custo de oportunidade (carga de doença), e se refletiriam em perdas geradas por agravamento do estado saúde: absentismo laboral e perda de anos com qualidade de vida (QALY).

Uma das grandes vantagens do modelo C é a maior autonomia nas contratações e, consequentemente, o previsível aumento da atratividade para médicos de família. Nas USF (sobretudo nas de modelo C) os contratos de trabalho seguem as regras privadas de contratação.

Entre outras desvantagens, a implementação deste modelo poderá estar condicionada pela perceção deste como uma privatização da prestação de cuidados de saúde no SNS. Mas é importante fazer notar que o financiamento da USF-C continuaria a estar dependente do contrato que esta tem com o Estado, o que garante que o foco será sempre o bem-estar do utente, sendo que, na prática, o valor a pagar pelo utente será o definido pelo Estado como taxa moderadora para o ato em questão.

Uma vez que o financiamento é por utente, em meios rurais pode haver subfinanciamento por haver menor densidade populacional. Isto deve-se à existência de custos fixos, que são pouco flexíveis para se moldarem à realidade geográfica da região, sendo, portanto, superior o custo per capita de cada paciente. Nestes casos, deve ter sido em conta um valor de financiamento ajustado por intervalos de densidade populacional para ter em conta a rigidez dos custos fixos.

Este modelo pressupõe uma maior preocupação em prestar um bom serviço para que o utente não mude de USF e leve consigo a receita clínica per capita.

CASO DE SUCESSO

Internacionalmente, temos exemplos do sucesso da descentralização, autonomia e flexibilidade da gestão dos cuidados primários da saúde, como é o caso da Noruega. Apesar de ter um sistema de saúde nacional semelhante a Portugal, são os municípios que asseguram e regulam o acesso a cuidados de saúde primários com a contratação de clínicas privadas de gestão autónoma. Como consequência, este país destaca-se pelos seus ganhos em saúde, como por exemplo, ter uma das menores taxas de mortes por causas tratáveis e preveníveis da Europa e o menor excesso de mortalidade de toda a OCDE.

Portugal precisa não só de maior investimento no setor da saúde, como também de inovar na gestão de recursos. Esta inovação deve assumir o interesse do utente como prioritário, oferecendo maior autonomia aos profissionais de saúde de forma que estes tenham acesso às ferramentas que permitem mitigar as necessidades de saúde específicas de cada comunidade. Para além disso, são necessários mecanismos de avaliação para qualificar o desempenho e comparar a efetividade deste modelo, de forma a assegurar a melhoria contínua.

Referências

Serviço Nacional de Saúde.«Cuidados de Saúde Primários». Acedido 10.09.2022.https://www.ulsm.min-saude.pt/category/servicos/cuidados-de-saude- primarios/

World Health Organization.«Cuidados de saúde primários». Acedido 10.09.2022. https://www.who.int/world-health-day/world-health-day-2019/fact- sheets/details/primary-health-care

FFMS.«Óbitos por algumas causas de morte (%)».(Portugal: PORDATA, 2022), https://www.pordata.pt/Municipios/%C3%93bitos+por+algumas+causas+de+morte+(pe rcentagem)-373

OECD/European Observatory on Health Systems and Policies (2021), Norway: Country Health Profile 2021, State of Health in the EU, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/6871e6c4-en.

Larrue,Philippe; Schwaag Serger,Sylvia;Smith,Carthage. Research and innovation in health and care in Norway Case study – Innovation Policy Review of Norway. Paris, Organisation for Economic Co-operation and Development, 2017.https://www.oecd.org/norway/research-and-innovation-in-heath-and-care-in- norway.pdf.

Ministério da Saúde. 2007. “Decreto-Lei n.o 298/2007”. Diário da República 1a série, 161 (agosto):5875-96. https://files.dre.pt/1s/2007/08/16100/0558705596.pdf

Ministério da Saúde. 2017. “Decreto-Lei n.o 73/2017”. Diário da República 1a série, 118 (junho):3128-3140. https://data.dre.pt/eli/dec-lei/73/2017/06/21/p/dre/pt/html

Branco, A.,Ramos, V,. 2001. «Cuidados de saúde primários em Portugal». REVISTA PORTUGUESA DE SAÚDE ,PÚBLICA VOLUME TEMÁTICO: 2, 2001:5-12. https://run.unl.pt/bitstream/10362/101321/1/RUN%20-%20RPSP%20-%202001%20- %20vol%20tematico2a01%20-%20p5-12.pdf

Magalhães, N. 2013. «Unidades de saúde familiar : o seu papel na reforma dos cuidados de saúde primários». Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra.http://hdl.handle.net/10316/85679.

OECD. “Health policy in Norway”.https://www.oecd.org/norway/Health-Policy-in-Norway- February-2016.pdf

OECD. «Mortality (by week): COVID deaths by week, 2020-2022».(OECD Stat,2022). Acedido 10.09.2022. https://stats.oecd.org/Index.aspx?QueryId=104975

Böhm, K. Schmid, A., Götze, R., Landwehr, C., Rothgang, H., Classifying OECD healthcare systems: A deductive approach, TranState Working Papers, No. 165 (2012)

OECD. «Mortality (by week): Excess deaths by week, 2020-2022».(OECD Stat,2022). Acedido 10.09.2022. https://stats.oecd.org/index.aspx?queryid=104676

OECD (2021), Health at a Glance 2021: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ae3016b9-en.

OECD. “Excess mortality since January 2020”.https://www.oecd.org/coronavirus/en/data-insights/excess-mortality-since- january-2020

OECD. “Country Health Profiles 2021”.https://www.oecd.org/health/country-health- profiles-eu.htm

OECD/Eurostat (2019), “Avoidable mortality: OECD/Eurostat lists of preventable and treatable causes of death”, http://www.oecd.org/health/health-systems/Avoidable- mortality-2019-Joint-OECD-Eurostat-List-preventable-treatable-causes-of-death.pdf.

Eurostat. Junho 2022. «Preventable and treatable mortality statistics». https://ec.europa.eu/eurostat/statistics- explained/index.php?title=Preventable_and_treatable_mortality_statistics&oldid=56918 8

Ministério da Saúde.2016.«Relatório Anual ACESSO A CUIDADOS DE SAÚDE». https://www.chts.min-saude.pt/wp- content/uploads/sites/4/2017/07/Relatorioanualsobreacessoacuidadosdesaude_CHTS _2015.pdf

MAIA, Carlos (2021) – Caracterização dos utilizadores dos serviços de urgência da unidade local de saúde do Norte alentejano, durante o estado de emergência devido à covid-19. Higeia: Revista Científica da Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias. ISSN 2184-5565. Número especial, p. 37-44

Conselho das Finanças públicas.2021.«EVOLUÇÃO DO DESEMPENHO DO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE EM 2020».https://www.cfp.pt/uploads/publicacoes_ficheiros/cfp-rel-06-2021.pdf

Ramalho, Luísa Dias Quintino Guerreiro. 2021. «Acesso aos cuidados de saúde primários em Portugal: condicionantes e estratégias». Dissertação de Mestrado, ISCTE.https://www.iscte-iul.pt/tese/11661.

Autores

Bernardo Macieira
Disa Palma
Francisco Lopes
Manuel Ferreira
Natacha Viana
Sandra Barnabé
Sofia Cruz
Francisca Figueiredo (mentora)

  • Instituto +Liberdade
  • Instituto +Liberdade

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

DesCentralização na Saúde: A reanimação dos cuidados primários de saúde

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião