Canibalização na produção solar, uma barreira ou uma oportunidade?

  • Ricardo Nunes
  • 9 Março 2023

A canibalização de preços já é certamente uma das preocupações no médio e longo prazo para o sistema.

Na Europa, e em particular na Península Ibérica, o uso de fontes de energia renovável tem crescido exponencialmente nos últimos anos. Esta alteração de paradigma, provocado e estrutural, tem vantagens e desvantagens. Existem, por isso, diversas dinâmicas de análise que devem ser analisadas em todo o processo.

Fazendo nós parte de um mercado ibérico perfeitamente interligado, com o preço de eletricidade igual nos dois países em mais de 95% das horas, e para enquadramento, importa referir as metas de produção fotovoltaica dos dois lados da fronteira. Em Portugal o objetivo passa por alcançar 9 GW de capacidade instalada de energia solar até 2030 (2,6 GW em 2022). Em Espanha, a meta é ainda mais ambiciosa, apontando aos 36 GW de capacidade instalada de energia solar em 2030.

Embora essa mudança seja vista como uma forma de reduzir a dependência de combustíveis fósseis e mitigar os impactos ambientais negativos da produção de energia, o uso excessivo de energias renováveis de perfil semelhante, neste caso do solar, pode apresentar alguns riscos, incluindo a denominada canibalização de preços na produção.

Significa isto que, se toda a energia solar prevista para 2030 na Península Ibérica fosse utilizada apenas para produção de eletricidade, no período de exposição solar poderíamos chegar a um patamar em que o excesso de oferta, obrigaria os produtores a oferecer energia a preço zero, ou no limite até a pagar para produzir, de forma a conseguirem transacionar a sua energia em mercado.

A título de exemplo, considerando apenas a matriz energética de Portugal em períodos de elevada produção fotovoltaica, e tendo em conta um previsível aumento do consumo de eletricidade de 20% (por via da mobilidade elétrica, hidrogénio, digitalização, entre outros), e um aumento de 10% no rácio do consumo em horas de Sol (e.g., demand response), poderemos antever que os 8-9 GW solares a produzir em pico, para uma média de consumo horário na ordem dos 7-8 GW, geraria, num mês como agosto, uma produção excedentária. Este fenómeno será similar, naturalmente com outros números, em Espanha.

Esta situação seria naturalmente insustentável, pois além de provocar desinteresse nos produtores renováveis, de criar instabilidade nos seus modelos de negócio, provocaria falta de concorrência, o que limitaria o investimento em inovação e eficiência de novas soluções.

Mesmo os investidores de algumas tecnologias de transição, como o gás natural ou nuclear, sentir-se-iam desincentivados a investir em novas soluções mais sustentáveis, devido à perceção de risco preço e quantidade associado a esta distorção de mercado.

A par com questões de segurança de abastecimento, ou de sustentabilidade financeira das diferentes opções, esta canibalização de preços já é certamente uma das preocupações no médio e longo prazo para o sistema.

Como se pode eliminar, ou pelo menos mitigar este efeito nocivo sobre o mercado de eletricidade?

  • Reforçar Interligações de Espanha com Resto da Europa

Nas últimas décadas, este é provavelmente o tema que reúne maior consenso entre os stakeholders do setor na península ibérica. A interligação elétrica entre Espanha e França é de cerca de 2.900 MW, valor manifestamente baixo para a dimensão dos territórios que interliga. São incontáveis as vezes que este reforço foi prometido, negociado e até assinado por Portugal, Espanha e França. No entanto, e com diferentes atores, nunca passou do “papel ao terreno”. Os reforços destas interligações são essenciais para o combate à canibalização da produção solar, pois permitiriam que, em alturas de maior produção solar em Portugal e Espanha (países com mais potencial solar), o excesso de produção seja exportado para o resto da Europa. Simultaneamente, em períodos de menor produção solar poderíamos importar energia e assim beneficiar de mais consistência e das melhores condições europeias. As interligações funcionariam como uma espécie de “bateria gigante”, que permitiriam também mais e melhor segurança de abastecimento.

  • Armazenamento e Demand Response

Urge continuar a apostar na inovação e desenvolvimento do armazenamento para os ciclos curtos. Isto é, conseguirmos armazenar o excesso de produção durante o período solar para consumir à noite ou no dia seguinte. Atualmente, as soluções existentes ainda são financeiramente muito exigentes e de eficácia reduzida, mas deve ser uma aposta para que no futuro o armazenamento possa ser um game changer do setor, e limite fortemente este efeito de canibalização.

Adicionalmente, será necessária uma maior aposta na otimização da utilização de energia por via de uma melhor gestão do equilíbrio entre a oferta e a procura (i.e., demand response), especificamente tendo em conta a alteração de paradigma a que já se assiste em termos de consumo de eletricidade: eletrificação de consumos no setor industrial e dos edifícios, bem como transição para a mobilidade elétrica.

No médio-longo prazo, tal permitirá, simultaneamente, garantir uma melhor gestão das infraestruturas de rede existentes, evitando-se também um avultado investimento associado ao acréscimo da disponibilidade de potência se tal não for considerado.

  • Desenvolvimento do Hidrogénio verde

A ideia está definida, falta avançar e concretizar. O excesso de energia renovável em algumas horas do dia pode ser desviado para alimentar os eletrolisadores, que são necessários para a produção de hidrogénio (H2) verde.

Existe, contudo, um risco que tem sido bastante debatido a nível europeu nas últimas semanas. Se a UE definir também como verde ou renovável, o H2 que utiliza energia nuclear para alimentar o eletrolisador, então aumenta o desafio de obtermos H2 proveniente de tecnologia solar a um preço competitivo. Nesse caso, também aqui, o armazenamento ou soluções híbridas em termos de tecnologia renovável serão decisivas.

  • Mercados a prazo e os Power Purchase Agreements (PPAs)

A volatilidade é uma característica dos mercados diários, sendo que a canibalização só acontecerá em períodos de grande concentração de produção de uma única tecnologia. Assim, toda e qualquer solução que permita aos compradores, ou aos produtores de energia, alisar a volatilidade e estabilizar preços no médio e longo prazo, será um instrumento fundamental para atacar fenómenos, mesmo que pontuais, da canibalização de preços. Com uma gestão adequada da componente preço no médio e longo prazo, as expectativas financeiras dos promotores alinham-se com as exigências das entidades financeiras, e permitirão um investimento mais consistente em tecnologias renováveis. A profundidade e liquidez dos mercados a prazo são uma arma essencial para dar previsibilidade e consistência aos investidores em tecnologias renováveis.

Em todo este processo, os comercializadores de energia, pela sua proximidade com o consumidor final, e porque a grande maioria já oferece serviços e produtos inovadores na eficiência energética, no trading de produtos a prazo, na gestão do excedente e até em soluções de H2, terão um papel absolutamente crucial para que consigamos evitar, ou pelo menos restringir, os efeitos nefastos da canibalização.

Em resumo, o excesso de energia renovável apresenta alguns riscos, incluindo a canibalização de preços na produção solar. Para garantir que a transição para energias renováveis seja bem-sucedida, além da essencial aposta num mix energético diversificado e financeiramente sustentável, será igualmente necessário encontrar soluções para gerir o excesso de energia e garantir que a oferta e a procura de eletricidade sejam equilibradas com eficácia.

  • Ricardo Nunes
  • Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes

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