EUA e China. Um recomeço
Depois de descerem para o nível mais baixo em quatro décadas, as relações entre os dois países têm um nova oportunidade.
Enquanto Portugal fervilhava com casos de justiça e eleições antecipadas, algo bem mais relevante para o nosso destino coletivo acontecia em solo americano: a primeira visita de Xi Jinping aos EUA em seis anos.
O encontro permitiu desanuviar um dos dramas geopolíticos que amedrontam o mundo. O tom das declarações fala por si.
“Estamos numa relação competitiva, mas a minha responsabilidade é tornar isto racional e gerível para que não resulte num conflito. É nisso que estou empenhado”, disse o Presidente dos EUA, depois de um encontro à margem da cimeira da Cooperação Económica da Ásia-Pacífico. Biden sublinhou ainda que foram as conversações mais produtivas que teve com Xi Jinping.
O Presidente chinês foi ainda mais conciliador. “A China não irá travar uma guerra fria ou uma guerra quente com ninguém”, garantiu, acrescentando que o país “nunca aposta contra os EUA e nunca interfere nos seus assuntos internos”. Também “não tem intenção de desafiar os EUA e de ocupar o seu lugar”.
Os dois países acordaram o reatamento dos canais de comunicação militar, que tinham sido interrompidos depois da visita da antiga líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, a Taiwan em agosto do ano passado. Um passo fundamental para evitar que um incidente militar possa evoluir para um conflito grave. “Acordámos que cada um de nós pode pegar no telefone e ligar diretamente e seremos ouvidos imediatamente“, disse Biden.
Taiwan foi um dos temas centrais da conversa de quatro horas entre os dois chefes de Estado. Segundo o relato das agências, Xi Jinping sublinhou que o estatuto da ilha era a discórdia mais grave entre os países, mas que não estava a preparar uma invasão e tinha preferência por uma reunificação pacífica. Biden respondeu com a determinação dos EUA em manter a paz e a estabilidade na região. Em suma, as respetivas posições não mudaram, mas ninguém deseja um conflito por causa do território no mar do Sul da China.
Acresce que a política interna em Taiwan pode em breve mudar a favor do Presidente chinês. Os partidos da oposição decidiram esta semana unir-se para as eleições em janeiro, aumentando a possibilidade de derrotarem o partido independentista no poder. Se forem bem-sucedidos, Taipei passará a ter um governo mais alinhado com Pequim.
O encontro serviu também os interesses de cada um na política interna. A ameaça chinesa tornou-se um dos temas centrais do debate político nos EUA. Ainda que a visão genérica seja idêntica dos dois lados do Congresso, o Partido Republicano tem acusado Biden de ser demasiado frouxo na forma como lida quem Xi Jiping e o seu país.
Ao vir a São Francisco encontrar-se com Biden, jantar com empresários e CEO de grandes empresas e passar uma mensagem de cordialidade nas relações, o presidente chinês contribui para baixar a histeria. Sem ela, os argumentos republicanos perdem força, o que ajuda o presidente norte-americano. O Presidente chinês preferirá ter de lidar com um segundo mandato do atual inquilino da Casa Branca do que com Donald Trump, que em 2018 iniciou a ofensiva com o aumento das tarifas aduaneiras.
O compromisso assumido por Xi Jinping para travar o comércio ilegal de químicos usados no fabrico de fentanil, uma droga que chega a ser 50 vezes mais forte do que a heroína e se tornou um flagelo nos EUA, serve o mesmo propósito. Morrem dezenas de milhares de pessoas no país todos os anos devido às drogas sintéticas.
Para o Presidente chinês, cuja economia se ressente das consequências da crise no imobiliário, da contração no comércio externo e da diversificação das cadeias de abastecimento, a estabilização da relação com os EUA é essencial para aumentar o investimento ocidental.
Segundo dados da Bloomberg, a balança de pagamentos chinesa registou uma saída líquida de 11,8 mil milhões em investimento direto estrangeiro no terceiro trimestre, naquela que foi a primeira contração desde que os registos começaram a ser compilados em 1998. A reabilitação externa é importante para a reabilitação interna.
Claro que os principais temas de tensão entre os dois países mantêm-se. Xi Jinping continua a ter uma amizade “sem limites” por Vladimir Putin e o seu regime. Os EUA mantém uma série de tarifas agravadas e sanções comerciais, como o bloqueio à venda de semicondutores avançados para a China, que entretanto vai conseguindo progressos no desenvolvimento dos seus próprios chips. Os dois países continuam em lados opostos no jogo de alianças militares e estratégicas no Pacífico. As divergências públicas continuarão a existir.
Após o encontro com o seu homólogo, o Presidente dos EUA foi questionado por um jornalista sobre se continuava a considerar Xi Jinping um ditador. Biden disse que sim, para desespero do secretário de Estado, Anthony Blinken, momento que foi captado em vídeo. Explicou que usava o termo porque a China é um regime comunista e tem uma forma de governo que é totalmente diferente da americana. Uma declaração sobretudo para consumo interno, que não teve consequências de maior na visita, mas que é reveladora de diferenças que podem um dia deitar tudo a perder.
Por outro lado, os dois países continuam a ter uma enorme interdependência económica. A China fornece 39% dos componentes eletrónicos usados nos EUA, um terço dos têxteis e plásticos ou um quarto dos minerais não metálicos, segundo dados de 2021 compilados pela McKinsey. O país de Xi Jinping é o terceiro maior comprador de produtos americanos, atrás do Canadá e do México.
Depois de terem descido para o nível mais baixo em 40 anos, na sequência da descoberta de um balão espião chinês sobre território dos EUA e das visitas de altos responsáveis americanos a Taiwan, as relações entre os dois países têm agora um chão mais estável a partir do qual podem evoluir positivamente.
O que é determinante para a resposta aos grandes desafios globais, desde os conflitos na Ucrânia e em Israel ao desenvolvimento responsável da inteligência artificial e o combate às alterações climáticas.
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