República Rosa
A instabilidade da situação política vê-se bem na estabilidade das ficções políticas que ignoram o País real e a situação dos portugueses.
O estado da Nação é uma jornada política que serve para revelar o mundo maravilhoso da alucinação. Vamos por partes. A democracia em Portugal é uma estátua cega ao abandono. O governo em digestão das não evidências. O Presidente surpreendido pelo seu “adiantamento mental” que não antecipou o impossível. O Parlamento com um Presidente activista e moralista que se comporta como membro de uma facção. Milhares de alterações a um orçamento para governarem o vazio entre eleições. E uma discussão infindável sobre cenários, protagonistas, eleições, demissões, vitórias e derrotas, estabilidade, instabilidade. A instabilidade da situação política vê-se bem na estabilidade das ficções políticas que ignoram o País real e a situação dos portugueses. Mas Portugal alguma vez contou para os cálculos políticos?
O Portugal dos políticos e o Portugal do comentário pertencem a uma realidade alternativa. Antes da polarização política que se aproxima, vive-se a pulverização do comentário político numa galáxia de temas. Cada gesto impensado tem um significado profundo. Cada silêncio tem a sabedoria de uma declaração profética sobre o País. Cada palavra é um compêndio político para o progresso da Nação. Para ser mais directo, o discurso político está transformado num nevoeiro que só serve para desviar atenções, encontrar culpados, identificar inocentes. Claro que o PS é o viveiro dos inocentes. Certo que o PSD apêndice do Chega é um antro de culpados. Claro que a Esquerda é o futuro. Certo que a Direita é o passado. Estas dicotomias jurássicas e desonestas podem marcar o estado da democracia e a crise do regime.
Acrescente-se à confusão a Procuradoria-Geral da República. O comportamento político da Procuradoria tem marcado a paisagem democrática com a regularidade de uma assombração gótica. Convirá referir que a Procuradoria tem de si o entendimento de um órgão político – o Ministério da Verdade. Na República dos Procuradores só existe lugar para os políticos puros de uma natureza intocável, uma espécie rara e extinta que se aproxima da República dos Santos. A Procuradoria entende-se como a guardiã da pureza do regime e da verdade criminal para preservação da idoneidade da democracia. Ou então é um órgão corporativo que defende os seus privilégios e prerrogativas com uma estratégia de vigilância permanente sobre o crime político por antecipação – pode também ser designada por Departamento Pré-Crime. A Procuradoria não faz investigações, mas elabora previsões PreCog sem o benefício de um “Relatório Minoritário”. O exemplo acabado de uma previsão PreCog parece ser o último parágrafo do célebre comunicado da Procuradoria que provoca o vortex de toda esta crise política.
Ninguém pretende com uma crónica fazer a defesa de comportamentos políticos inaceitáveis. Mas a arbitrariedade da conduta política não justifica a indigência política de um parágrafo mortífero para o regime. Com ou sem consciência dos resultados é matéria que fica para os especuladores ou para os historiadores. No final desta lógica que nos governa, mas bem lá no final, apenas teremos em Portugal três tipos de governantes – governantes corruptos que transformam a Procuradoria-Geral numa instituição dócil, nula, cúmplice; governantes inconscientes que enfrentam a condenação em praça pública sem apelo nem recurso; governantes com coragem: a coragem de uma visão para o País e a coragem de governarem Portugal em nome do interesse público cumprindo as regras e fazendo cumprir as regras. Vamos construir o País da coragem ou o País dos corruptos?
Agora, Portugal tem de sair deste cenário “neo-noir” e encontrar mais um momento de Regeneração. À Esquerda e à Direita só existem políticos geniais à sua maneira. Claro que a genialidade da Esquerda é superior à malignidade da Direita. Aliás, nos últimos 200 anos Portugal só conhece períodos de Regeneração em que a normalidade democrática resulta de um acidente eleitoral. Veja-se a última maioria absoluta do PS. Quanto ao PSD parece jogar neste velório que antecede a conferência inferno a sua utilidade democrática e o seu papel no actual regime. Quanto ao PS, o partido fundador da democracia, o “partido charneira” do regime, deslumbra a Nação com o entusiasmo pedante e vácuo de um candidato “virgem” cujo programa político está inscrito no “carisma” de um nome – Progresso Narcisista Socialista (PNS). O destino de Portugal está no segredo das iniciais.
Observo Portugal e a imagem do “túnel dos pombos” de John Le Carré surge-me na memória. Os pombos capturados em armadilhas no terraço do Casino. Os pombos que alimentam as baterias de uma carreira de tiro. Da varanda os desportistas disparam sobre os animais saídos de um túnel que se abre para o azul do céu incandescente. Muitos são abatidos, mas muitos conseguem num voo acrobático escapar à barragem de chumbo e voltar para o terraço onde são de novo capturados pelas armadilhas. Para acabarem outra vez nas baterias da carreira de tiro. Este ciclo viciado e vicioso aproxima-se da realidade dos ciclos políticos em Portugal – o País em que os políticos matam a esperança para se candidatarem em nome da esperança.
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