Este Governo tem condições políticas únicas para reformar radicalmente a doutrina de gestão do fogo em Portugal. Temo é que o faça adoptando outra vez medidas radicalmente erradas.

Quando se começou a ter uma percepção mediática sobre a dimensão do problema do fogo no Domingo 15 de Outubro, o Governo recorreu ao clássico argumento da mão criminosa, escolhendo os pastores como um dos alvos, responsabilizando as queimadas dos pastores pelo que se estava a passar.

A tese é coerente com a doutrina do “Portugal sem fogos depende de todos” e tem a vantagem de ter um módico de adesão à realidade, porque as queimas pastoris começam de facto no Outono. E é bem possível que algumas tenham estado na origem de alguns grandes fogos, tal como é possível que muitas outras causas estejam também na origem de muitos outros fogos, todos no mesmo dia, evoluindo todos da mesma maneira, independentemente da causa que os originou.

Os pastores não fazem queimadas para enganar a solidão e para ter as serras cheias de gente com quem possam conversar, os pastores usam o fogo como um instrumento de trabalho há milhares de anos. E ainda bem que o fazem.

É verdade que não deveriam ter feito queimadas naquele Sábado e naquele Domingo, porque o risco de uma queimada se transformar rapidamente num incêndio brutal era muito, muito elevado e estava identificado pelo menos desde a Sexta-feira anterior.

Na realidade já nos dias anteriores estava a haver fogos de alguma dimensão e é bem possível que, tanto quanto as queimadas, vários dos grandes fogos de Domingo tenham tido origem em rescaldos mal feitos, sem que ninguém se lembre de criminalizar a actividade de combate aos fogos só porque, quando mal executada, pode dar origem a novos e maiores fogos: os reacendimentos pesam qualquer coisa como 10% nas causas de fogos, estando, provavelmente, subestimados.

Mas em Portugal, a lógica da doutrina “Portugal sem fogos depende de todos” foi levada tão longe, que até o uso de contra fogo, ou de fogo técnico em combate, foi praticamente proibida, porque embora seja uma ferramenta essencial para gerir grandes fogos florestais, houve vezes que foi usada por pessoas pouco capacitadas para o que estavam a fazer e correu mal, no passado.

Do mesmo modo, o uso do fogo controlado em povoamentos florestais é objecto de um grande preconceito, de tal forma que no Pinhal do Rei, em Leiria, apesar dos resultados de alguns fogos controlados em 2009 serem positivos, optou-se por esperar por Domingo para ver arder o pinhal, nas piores condições.

Neste contexto, é mais que legítimo perguntar: se é sabido que os pastores queimam no Outono, se era sabido que no Domingo as condições seriam muito complicadas – mesmo que ninguém tivesse a noção da dimensão do que aconteceu, em que em dois dias ardeu mais ou menos a média do que arde anualmente, 240 mil hectares – o que fizemos nós, sociedade, para tornar menos provável que os pastores fizessem queimadas nesses dias?

O fogo é um bom instrumento de gestão do território, é mesmo insubstituível, é usado há milhares de anos das mais variadas formas no nosso mundo rural, mas o Governo, todos os governos até agora, respondendo ao apelo social que chega da maioria da sociedade, isto é, dos urbanos, acha isso irrelevante.

A reforma da floresta que estará pronta a ser executada, tendo um plano estatal de fogo controlado, a ser feito onde o Estado entende que deve ser feito, diz zero sobre as formas de aumentar a capacitação das pessoas no uso do fogo e sobre a forma de aumentar o uso sensato do fogo pelas pessoas comuns, os tais pastores que transformámos em criminosos porque não os compreendemos nem respeitamos.

Que tal se, antes de responsabilizar os pastores, responsabilizássemos o BE e os Verdes por forçar o desvio do que interessa – a gestão sustentável do mundo rural, assente na competitividade de uma economia capaz de gerir o problema do fogo – para uma questão que não interessa nada para a gestão do fogo, mas dá muitos votos urbanos, como é a falsa questão do eucalipto?

A reforma florestal dedica um esforço brutal a resolver as questões de propriedade, e no fim-de-semana arderam perto de vinte mil hectares da jóia da coroa da gestão florestal estatal, nos pinhais litorais da zona Centro, demonstrando como esse esforço é uma cortina de fumo para disfarçar a falta de propostas para resolver a falta de competitividade da gestão florestal, quer ela seja privada, quer seja estatal, em grande parte do país.

O que fizemos para apoiar os pastores, para integrar as queimadas e o pastoreio na gestão de um território que tem na falta de gestão a raiz do problema dos fogos?
Nada, rigorosamente nada, não lhes pagamos os serviços difusos que nos prestam a todos nós, não temos um programa de consumo nas cantinas públicas (escolas, quartéis, hospitais, lares de terceira idade, etc., etc., etc.) que reforce o seu mercado, preferindo os frangos de aviário por razões orçamentais, não temos um programa de extensão rural para dar apoio técnico aos pastores, não temos um programa de proximidade para reforçar a confiança das pessoas no Estado, pelo contrário, para além de os acusar como criminosos por usarem os instrumentos de trabalho que sempre usaram, ainda os informamos de que o Estado desistiu de lhes prover a segurança de pessoas e bens, sugerindo que deixem de ser piegas e que se defendam sozinhos, porque os nossos bombeiros não dão conta do recado.

E, depois, tenta-se sacudir a água do capote, repetindo incessantemente a mentira de que foi feita uma reforma da protecção civil que visava ganhar tempo para a reforma da florestal, quando, na verdade, o que nessa altura foi feito, foi uma opção clara a favor do modelo de combate florestal que permitia satisfazer as clientelas eleitorais, em vez de um modelo integrado de gestão e combate do fogo, como foi proposto e recusado pelo governo da altura.

Todos os governos têm preferido, na distribuição dos dinheiros do mundo rural, satisfazer as clientelas organizadas na CAP, na CONFAGRI e na CNA, em vez de pagar os serviços de ecossistema a quem os presta, viabilizando uma gestão florestal compatível com as pessoas e as condições naturais que temos.

Vemos todos os dias os tristes briefings da Protecção Civil, falando do número de aviões, de veículos, de pessoas, de manhã dizendo que o fogo estava a ceder ao combate, à tarde a dizer que a situação afinal se tinha agravado depois do almoço, sem estranhar.
E, no entanto, um briefing útil começaria pela explicação da situação actual, a descrição das previsões meteorológicas para as horas seguintes, a descrição da topografia do terreno, a identificação das oportunidades de combate que se poderiam antever no caminho da progressão do fogo, passando depois à forma como o dispositivo ia responder, posicionando-se nos pontos de maior fragilidade do fogo e aproveitando as três horas que o fogo demoraria a chegar a esse ponto para montar uma estratégia de combate apeado, incluindo supressão de combustíveis.

Aparentemente, preferimos criminalizar o uso do fogo a ir buscar a meia dúzia de técnicos com provas dadas que poderiam ter reforçado a capacidade estratégica do combate, apoiando o comando, logo no dia seguinte a ter-se verificado que o modelo de gestão do fogo colapsou em Pedrógão Grande.

No próximo Sábado, este Governo tem condições políticas únicas para reformar radicalmente a doutrina de gestão do fogo em Portugal. O meu medo é que o faça adoptando outra vez medidas radicalmente erradas, como da última vez, guiado pela ignorância urbana sobre o papel do fogo no mundo rural.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

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