Há um senhor da AHRESP em cada esquina

A empresa do fato e da gravata está a morrer, os escritórios cinzentos tendem a acabar e a avaliação dos percursos profissionais com base nos diplomas tem os dias contados.

Há por aí uma série de gente a indignar-se com o presidente da AHRESP e as suas declarações sobre os “empresários despenteados” que vêm ao Web Summit. Tendo eu tão fraca figura como os ditos senhores, acho que tenho algo a dizer sobre o tema. Até porque sou um tipo invariavelmente despenteado, que faz a barba de vez em quando, que só tem ténis na sapateira e que a última vez que usou uma gravata foi no seu próprio casamento.

Antes de mais quero declarar que acho que estas declarações mais não são do que um mero exercício de ingenuidade. Conheço alguma coisa da nossa restauração e percebo que o senhor se tenha que exprimir naqueles moldes para explicar aos empresários penteados do seu sector o que vai acontecer nos próximos dias em Lisboa.

O problema das declarações do senhor da AHRESP não são as declarações em si, mas sim o facto de serem o espelho do Portugal tacanho das gravatas, dos senhores doutores, dos senhores engenheiros, dos senhores arquitectos e dos senhores professores. O Portugal do bafio e da naftalina. Do “Dr.” gravado no cartão de crédito e do “veste o teu melhor fato para ir pedir um empréstimo ao banco”.

Há 11 anos entrava na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e era-nos pedido que tratássemos por “doutor” assistentes ainda com acne, que usássemos fato e gravata nos exames orais, que tratássemos por “professor” os regentes e em alguns casos que nos levantássemos quando estes entravam nos auditórios. Sim, foi há 11 anos e não no tempo da outra senhora. Não sei se hoje em dia ainda assim é, mas tenho as minhas suspeitas. Podem tirar os meninos do passado, mas não podem tirar o passado dos meninos.

Há 9 anos que desisti do curso de direito e, mais ou menos ao mesmo tempo, comecei uma carreira na área da comunicação, que culminou em tornar-me publicitário. Ainda hoje, repito 9 anos depois, há quem me pergunte escandalizado o porquê de não ir acabar um curso que não me serviria para nada. Porque sem um curso superior uma pessoa não é ninguém, ora aí está.

A nossa tacanhice e cabeça de bota de elástico não tem limites. O português tem uma capacidade sobrenatural para focar toda a sua atenção no acessório e esquecer o que é fundamental. Cultura geral, empreendedorismo, conhecimento tecnológico, capacidade de comunicação, espírito de sacrifício, predisposição para o risco, empenho e ambição. Nada disso importa comparado com o belo do diploma.

O mais interessante é que esta característica é transversal quer à esquerda quer à direita. Imaginemos um político, independentemente do partido, a falar sobre o desemprego jovem. Invariavelmente irá surgir aquela expressão do “desemprego dos jovens licenciados”. Mas esperem lá, o que interessa é eles estarem desempregados e serem jovens, ou o facto de serem licenciados? O facto de eu ter um canudo em Antropologia dá-me o direito divino a ter um emprego? Posso ser um calhau, sociopata, mal cheiroso, carrancudo e preguiçoso que tenho direito a um emprego só porque tirei um doutoramento?

Não quero com isto dizer que a formação não importa. Importa e importa cada vez mais, não pelo seu aspecto formal mas efectivamente pelo conhecimento que nos permite absorver. Eu próprio dou aulas e curiosamente a primeira coisa que peço aos meus alunos é que me tratem por “tu”.

Olhemos lá para fora. A empresa do fato e da gravata está a morrer, o CEO engomadinho já lá vai, os escritórios cinzentos tendem a acabar e a avaliação dos percursos profissionais com base nos diplomas tem os dias contados.

Duas das mais importantes marcas do mundo (Apple e Microsoft) foram fundadas por tipos que desistiram das licenciaturas. Curiosamente o Facebook, a Virgin e a Dell também, entre muitas outras empresas de topo. É interessante que a maioria dos CEO’s dessas empresas não são propriamente conhecidos nem pelo seu trato formal, nem por andarem de fato e gravata. A juntar à festa todas essas empresas são conhecidas pelos seus escritórios divertidos, descontraídos e informais.

Oh João, mas isso é no estrangeiro! Claro que sim, sabiam que o Américo Amorim nunca andou numa faculdade? Sabiam que o Alexandre Soares dos Santos também desistiu do curso da FDUL e nunca tirou nenhuma licenciatura?

Felizmente, existe essa coisa tramada chamada globalização. Felizmente o mundo está a mudar e Portugal aos poucos também. O Web Summit ajudará a desempoeirar as mentalidades e a pouco e pouco os senhores da AHRESP serão cada vez menos. Isto caso os senhores doutores que por aí há o permitam, está claro.

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