Creches para todos

Gostando-se ou não do seu conteúdo, o documento de política para a infância do PSD trata-se de uma estratégia com cabeça, tronco e membros. É assim que se vai construindo uma alternativa.

Aí está – finalmente! – uma iniciativa da oposição que merece ser realçada: o documento de política para a infância apresentado há dias por David Justino e Rui Rio. Não é ironia. Trata-se de um documento ao qual teria ficado igualmente bem a designação de política de família, conforme enunciado no capítulo 3, porque é disso mesmo que se trata. Mas tirando o título politicamente correcto, a estratégia do PSD engloba um vasto conjunto de medidas, desde o apoio à natalidade, à primeira infância, à pós-infância, a outras medidas tais como licenças parentais, existência de redes escolares, creches e jardins de infância, ou ainda, articulação entre a vida familiar e profissional, e incentivos a uma cultura empresarial mais humanista. Em suma, gostando-se ou não do seu conteúdo – quanto à forma, devo dizer que o português podia ser melhor e alguns dados podiam ser mais recentes –, trata-se indiscutivelmente de uma estratégia com cabeça, tronco e membros. Em suma, é assim que se vai construindo uma alternativa.

Ao longo dos anos, tenho escrito com frequência sobre as questões da demografia e, em particular, sobre as adversidades que as famílias numerosas enfrentam em Portugal. Aqui mesmo, no ECO, um dos meus primeiros artigos foi sobre este assunto (em “A discriminação negativa das famílias” de 19/10/2016). Mais recentemente, na revista “Cadernos de Economia”, uma publicação da Ordem dos Economistas, voltei à temática em “A demografia e o financiamento público”, numa edição (Março de 2018) exclusivamente dedicada aos assuntos da demografia e que contou com magníficos ensaios de outros colegas economistas de diversos quadrantes. Autores que podiam ter sido utilizados por Justino e Rio, mas que não constam da bibliografia. Porém, independentemente dos autores referenciados, o que importa é perceber o óbvio: o declínio e o envelhecimento populacionais de Portugal representam o maior desafio ao desenvolvimento económico e social no nosso País.

O desafio nas próximas décadas será enorme e conduzirá a novas formas de financiamento e de prestação de serviços em vários domínios da vida em sociedade. Na segurança social, colocando uma progressiva pressão sobre os trabalhadores em idade laboral e criando desequilíbrios progressivamente maiores no sistema de pensões. Na saúde, cujo financiamento, face às expectativas criadas, terá de ser significativamente reforçado, levando ao sacrifício de recursos noutras áreas da despesa pública e privada. Sem esquecer o próprio potencial de crescimento da economia – que depende do crescimento populacional e do aumento da produtividade – e que tenderá a diminuir em face do declínio populacional que se prevê, numa altura em que também a produtividade está estagnada sem fim à vista. Muitos destes desequilíbrios apenas se sentirão no espaço de uma geração ou mais – e “no longo prazo estamos todos mortos” –, mas a coesão das sociedades também se faz de equilíbrios entre gerações. Seria de bom senso lembrarmo-nos disso.

Regressando ao documento de Justino e Rio, há alguns números que chamam a atenção. O primeiro (p. 14) é a despesa pública, medida em percentagem do PIB, com políticas de família em Portugal: somente 1,4% do PIB. Estamos muito abaixo da média da União Europeia (cerca de 2,5% do PIB) e francamente abaixo dos 3 a 4% do PIB que numerosos outros países europeus dedicam a esta matéria. O segundo número (p. 19) é a despesa pública com educação de infância (dos 0 aos 6 anos), novamente em percentagem do PIB, relativamente à qual se observa um forte investimento de vários países europeus (liderados pela Noruega, cuja despesa pública neste domínio supera os 2% do PIB) por comparação com um reduzido investimento em Portugal (apenas 0,7% do PIB). Por fim, o terceiro grande número que gostaria de destacar (p.24) mostra-nos que ao nível do ensino pré-escolar (dos 3 aos 6 anos) apenas 50% das crianças portuguesas frequentam estabelecimentos de ensino públicos, quando na média da União Europeia o valor é superior a 70%. Note-se que não está aqui em causa a defesa do sector público (nem, para o efeito, do privado); pretendo apenas situar Portugal face à Europa neste âmbito.

Mas é no segmento das creches que está a principal medida de ruptura com o “status quo” preconizada pelo PSD de Rio. Segundo o estudo (p.20), o peso da mensalidade de uma creche representa em Portugal, no sector privado, uma despesa média de 400 euros, o que representa 25% do rendimento disponível das famílias portuguesas. Na rede de IPSS, o subsídio público é de sensivelmente 250 euros por criança, sendo que em média as IPSS cobram depois 100 euros mensais aos pais – em Portugal apenas 6,5% das crianças inscritas em creches beneficiam de gratuitidade total (p.3). Assim, o custo per capita numa creche andará entre os 350 e os 400 euros mensais. Curiosamente, ou talvez não, apenas 50% das crianças entre os 6 meses e os 3 anos frequentam as creches (p.42), sendo a taxa média de ocupação de 81% (p.43). O estudo não confirma a variável custo como razão principal da não frequência das creches; na realidade, a razão principal apontada no documento, tendo por base o Eurostat (2018), é “sem necessidade” (de colocar as crianças na creche). De qualquer forma, é sobre o custo que avançam o relatório, propondo gratuitidade (sem obrigatoriedade) para todas as crianças que frequentem a rede de IPSS financiada pelo Estado, independentemente da condição sócio económica do seu agregado familiar. O pagamento às IPSS seria então de 385 euros mensais por criança (p.46).

A proposta do PSD confirma a crítica que nos últimos meses formulei à social democracia de Rui Rio e que num artigo anterior me levou a qualificá-la de “liberalismo de Estado” (24/01). Pois bem, volto à carga: sem desprimor pelas IPSS, por que razão se deve limitar este apoio à rede de IPSS? Afinal, que liberdade de escolha é esta? Por que não criar cupões de educação que partissem do valor administrativamente proposto para uma lógica posterior de concorrência de mercado? Por que não descentralizar a partir daí o processo de escolha dos pais? Ao mesmo tempo, por que não aumentar a dedução das despesas de educação em estabelecimentos privados (nas creches e não só), que está hoje limitada a valores pífios, para um valor condizente com a realidade e verdadeiramente indutor de liberdade de escolha? Uma combinação de vários mecanismos seria a meu ver mais abrangente, mais eficiente e também mais justa. Não se perderia o essencial: que mais de 70% das mulheres portugueses com filhos de idade inferior a 3 anos estão empregadas (p.22); que o custo mensal de uma creche é materialmente relevante para as famílias portuguesas, e; que, apesar de tudo, existe capacidade instalada. O enfoque na educação, em particular nas creches, parece-me acertado e com impacto imediato. Seria de avançar, depois de reponderados os mecanismos a utilizar.

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico

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