Vieira da Silva e a fábula do velho, do menino e do burro

As novas regras de Vieira da Silva para as reformas antecipadas criam verdadeiras aberrações. Uma pessoa com 60 anos pode reformar-se antecipadamente, mas outra com 65 anos não. Nem com penalização.

Depois do episódio das Raríssimas e da ideia peregrina de querer tirar dinheiro dos pobres da Santa Casa para investir no Montepio, esta talvez tenha sido a semana politicamente mais infeliz para o ministro da Segurança Social.

Vieira da Silva prometeu, e bem, rever as regras das muito longas carreiras contributivas. Ou seja, portugueses que começaram a trabalhar em idades que hoje são consideradas trabalho infantil. Quem começou a trabalhar aos 16 anos ou antes, e tenha pelo menos 46 anos de descontos, passou a poder reformar-se sem qualquer penalização, seja pelo fator de sustentabilidade (14,5%), seja pelo corte de 0,5% por cada mês de antecipação face à idade legal de reforma.

Só que Vieira da Silva, a reboque do Bloco e do PCP, quis ir mais longe. Comprometeu-se, no Orçamento do Estado, a terminar em 2019 com a dupla penalização que sofrem os pensionistas com 60 anos ou mais e que queiram antecipar a reforma. Está prevista uma primeira fase em janeiro para quem tenha 63 anos ou mais, e uma segunda fase, em outubro de 2019, para pensionistas entre os 60 e os 62 anos, desde que aos 60 anos tenham completado 40 anos de descontos. Para estes deixará de existir a penalização pela via do fator de sustentabilidade, de 14,5%, ficando apenas sujeitos ao corte de 0,5% por cada mês de antecipação face à idade legal de aposentação.

Estes sobrecustos para o sistema de previdência acontecem numa altura em que a lei já prevê um aumento acima da inflação para 80% dos pensionistas (custo = 422 milhões); em que o Governo, pelo terceiro ano consecutivo, promete um aumento extraordinário para garantir que ninguém recebe um aumento inferior a 10 euros/mês (custo = 137 milhões); em que assumiu pagar um complemento extraordinário às pensões mínimas (custo = 26 milhões); em que criou uma nova prestação social para a inclusão (custo = 153 milhões); e ainda terá de custear o novo regime das muito longas carreiras contributivas (custo = 30 a 35 milhões). E aqui não estamos a contabilizar outros custos adicionais com o RSI, CSI, abono de família, ou com o subsídio de desemprego de longa duração.

Em cima disto tudo, o Governo vai ainda juntar mais um custo de 66 milhões/ano para acabar com a dupla penalização para os pensionistas com 60 anos ou mais que queiram antecipar a reforma. Quando a esmola é muita, o reformado desconfia. Quem é que vai pagar a conta deste fausto banquete dos socialistas com os pensionistas?

Uma parte será paga pela própria economia, já que as contribuições para a segurança social estão a crescer 7%/ano. O problema é quando a economia abrandar. Vão-se as receitas, ficam as despesas. A outra parte é paga pelos próprios pensionistas. Vieira da Silva é especialista em dar com uma mão e tirar com a outra. Já o tinha feito quando avançou com o fim das penalizações para as muito longas carreiras contributivas. Acabou com os cortes, mas também com as bonificações a que esses pensionistas tinham direito, precisamente por terem longas carreiras.

Agora, acaba com a dupla penalização para os pensionistas que queiram reformar-se antecipadamente, mas anuncia que vai introduzir uma nova regra que limita a saída do mercado de trabalho a quem, cumulativamente, aos 60 anos já tenha tido 40 anos de descontos. Assim, uma pessoa que queira reformar-se antecipadamente aos 61 anos, com 40 anos de descontos, já não poderá porque aos 60 tinha apenas 39 anos de contribuições. Hoje, pode reformar-se com penalizações, mas no futuro nem sequer pode optar pela reforma antecipada, tendo de trabalhar até aos 66 anos e 4 meses (a idade legal).

As más notícias anunciadas na clandestinidade

Este anúncio de Vieira da Silva tem um problema de forma e outro de conteúdo. Vamos à forma. O anúncio do fim da dupla penalização é feito com pompa e circunstância pelo Governo, em sucessivas conferências de imprensa da geringonça, e é escarrapachado no Orçamento para 2019, ano de eleições.

Já o anúncio do travão ao acesso a essa mesma reforma é anunciado, pela primeira vez em 2017, numa nota de rodapé quase clandestina, num documento entregue aos parceiros sociais. A ideia voltou agora a ser ressuscitada por Vieira da Silva numa conferência de imprensa, após insistência dos jornalistas. Para dar as boas notícias, acotovelam-se todos; para dar as más notícias escondem-se atrás de subterfúgios de oratória e de períodos de transição inventados à última hora.

Esta quarta-feira, no Parlamento, o ministro da Segurança Social voltou a ser confrontado com a intenção de colocar um travão às reformas antecipadas e respondeu que o tema “será discutido no futuro, noutros quadros e com outra iniciativa legislativa”. As boas notícias chegam a tempo do calendário eleitoral, as más notícias atiram-se para as calendas gregas.

Ainda sobre a forma, Vieira da Silva argumenta que “nunca fizemos aquele truque de aprovar à sexta-feira uma lei e à segunda-feira promulgá-la [como fez o Governo de Passos Coelho, quando congelou o acesso à reforma antecipada durante o período da troika].” Uma coisa que Vieira da Silva podia aprender com Pedro Passos Coelho é “lixar-se para as eleições” quando está em causa a sustentabilidade das nossas contas públicas.

Ao 60 anos pode-se reformar, mas aos 65 não

Vieira da Silva assume a necessidade de colocar um travão às reformas antecipadas (não se sabe quando) para garantir a sustentabilidade do sistema de previdência: “Não podemos abdicar de manter o sistema de Segurança Social sólido”, explicou numa entrevista ao jornal Público.

Se o sistema fica desequilibrado com o fim da dupla penalização, então não valia mais manter tudo como está? A troika e Passos Coelho não aumentaram o fator de sustentabilidade por algum tipo de sadomasoquismo orçamental. Fizeram-no para garantir a sustentabilidade do sistema.

As alterações propostas por Vieira da Silva criam situações de verdadeira aberração. A partir de outubro do próximo ano, e depois de findo o tal período de transição, uma pessoa com 60 anos e 40 anos de descontos pode pedir a reforma antecipada sem penalização pelo fator de sustentabilidade (desde que aos 60 já tenha 40 anos de desconto). Já uma outra pessoa com 65 anos de idade e 44 de descontos não pode reformar-se, nem sequer com penalização, porque aos 60 anos não tinha ainda 40 de descontos. É idiota e é injusto.

O novo regime gizado por Vieira da Silva é mais injusto do que o atual porque a regra dos “40 anos de desconto aos 60” limita o fim da dupla penalização a meia dúzia de pensionistas, mas a mesma regra barra a possibilidade de reformas antecipadas (mesmo com cortes) a milhares de outros pensionistas.

O velho, o menino e o burro

Vieira da Silva tenta com estas novas regras fazer a quadratura do círculo, ou seja, relaxa as penalizações mas restringe sobremaneira o acesso. O PCP e o Bloco já perceberam o “truque” (usando a linguagem de Vieira da Silva), ou seja, que serão os pensionistas (que deixam de se poder reformar antecipadamente) a pagar o fim da dupla penalização dos poucos que se vão poder reformar antes dos 66 anos e 4 meses.

Tal como na fábula do velho, do menino e do burro, Vieira da Silva está a tentar agradar a todos, mas nunca vai conseguir. Ou zela pela sustentabilidade do sistema ou agrada à geringonça. Quando coloca a criança em cima do burro, alguém vai queixar-se que o velho vai apeado. Quando coloca o velho em cima do burro, alguém dirá que o animal vai sobrecarregado. Quando o menino e o velho carregam o burro às costas, são alvo de troça.

O nosso sistema de previdência, não sendo de capitalização, implica que haja solidariedade entre gerações. Se Vieira da Silva dá mais a uns velhos, vai ter de tirar a outros velhos, ou colocar o menino a pagar mais impostos ou TSU. Não pode é tomar-nos a todos por burros e fazer uma reforma em que dá às claras e tira às escondidas.

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