O povo é sereno

Um estudo recente mostra como a divisão esquerda-direita é menor do que os cronistas fazem crer. Se o consenso é possível, os últimos anos mostram como até o BE percebeu isso melhor do que a direita.

1. A democracia passou de território dos consensos a ringue de conflitos.

No meio das eleições intercalares americanas, a revista The Atlantic fez um belíssimo texto mostrando como, há 25 anos, um só homem “transformou a luta partidária num desporto sangrento, partiu o congresso e abriu caminho a Trump”. Na altura, o discurso moralista e de guerra aos liberais de esquerda valeram uma imprevista vitória aos republicanos – e um certidão de óbito ao diálogo político.

Por aqui, parecemos caminhar no mesmo sentido. A grande divisão, visível hoje nos jornais e nas redes sociais, talvez tenha nascido com a guerra do Iraque, ou do processo Casa Pia, mas acentuou-se tanto com o final da governação de Sócrates, com a troika e com o nascimento da “geringonça” que parecemos viver num país político de dois polos, onde a conversa não é possível: ou somos amigos ou inimigos (colaboracionistas é sinónimo).

Dizia esta semana o Zé Manel, e com razão, que “quando vemos o espaço mediático a pulverizar-se, jornais a desaparecerem, canais de televisão a perderem audiência, não podemos colocar todas as culpas nas novas tecnologias e em novos hábitos de consumo de informação.” Mas acontece que a “verdade é mais dura”, também, para quem quer ver nas redes sociais o espelho do que pensa o país. Acontece que, como dizia o Pedro Magalhães, “a polarização esquerda-direita em Portugal nos jornais e nas redes pode ser grande. Mas na população…” nem tanto.

O Pedro Magalhães deu-nos prova disso com os dados acabados de digerir do último Inquérito Social Europeu. Que nos dizem isto:

  • Tanto os eleitores de esquerda como os de direita concordam que os governos devem “tomar medidas para reduzir as diferenças de rendimentos” (diferem só ligeiramente na intensidade desse apoio).
  • Os eleitores de esquerda e direita concordam, também, que Portugal não se tornou um lugar pior com a vinda de imigrantes.
  • Os dois tipos de eleitores discordam, em uníssono, que os homens não são prioritários às mulheres, tão pouco na procura de trabalho;
  • E nem sequer têm diferenças acentuadas sobre o futuro da integração europeia (adeptos de mais e não de menos Europa, sempre moderadamente).

A conclusão só será surpreendente se não conhecermos o país que temos, com uma elite consideravelmente rica e uma massa enorme de pessoas com médio ou baixo rendimento, como lembrava o mesmo Pedro Magalhães no inquérito pós-eleitoral às legislativas de 2015. Esse estudo mostrava como, em temas chave como a Saúde, Educação, apoios sociais e pensões os portugueses apoiavam, muito maioritariamente, uma intervenção mais ativa do Estado, mesmo que isso implicasse um aumento de impostos. Não foram as políticas que penalizaram a direita, foi a perceção de como e para quem governou. A equidade, portanto.

Então se é assim, talvez valha a pena pensar nisto: Se o povo é sereno, se as diferenças de posicionamento que existem são geríveis, por que é que a palavra “consenso” não entra no dicionário político?

2. Entrar entrou, mas foi à esquerda.

Talvez não se lembrem, mas foi por isso que o Bloco cresceu nas legislativas. Foi há três anos, num debate decisivo antes das legislativas, quando Catarina Martins desafiou Costa para um acordo:

“As pessoas colocam grande esperança neste debate e na maneira como conseguimos conversar. E portanto digo-lhe o seguinte: se o PS estiver disponível para abandonar esta ideia de cortar 1600 milhões de euros nas pensões, abandonar o corte na TSU e abandonar esta ideia do regime conciliatório, que é uma espécie de flexibilização dos despedimentos, no dia 5 de Outubro eu cá estarei para que possamos conversar sobre um governo que possa salvar o país, que possa pensar como reestruturar a sua dívida para termos futuro e para termos emprego. Vai falar a seguir a mim. Se me disser que sim ou que vai pensar, já valeu a pena este nosso encontro. Mas se me disser que não as pessoas vão ficar a pensar que o dr. António Costa vai telefonar a Rui Rio ou a Paulo Portas, que os pensionistas vão perder 1660 milhões, que a TSU vai ser cortada e que os despedimentos vão ser facilitados. ”.

Hoje, ao fim de três anos de governação, o Bloco não é o mesmo partido. Já não lhe vemos as mesmas declarações de amor à Venezuela, já não se ouvem as ameaças de rutura com a zona euro (também porque ela estabilizou).

A verdade é que, entrando na governação, o Bloco ganhou bandeiras – assim como o PCP ganhou. Para além do que negociou em 2015, Catarina Martins pode bem ir para o palco da Convenção bloquista deste fim de semana e lembrar as conquistas, uma a uma:

  • O programa de regularização dos precários do Estado;
  • Os aumentos extraordinários de pensões;
  • A descida do valor das propinas;
  • A descida do IVA da cultura;
  • O fim do corte de 10% no subsídio de desemprego;
  • A adoção por casais do mesmo sexo;
  • A moratória que protege idosos ou deficientes do despejo.

São apenas exemplos, e nem são o mais importante. O que é realmente significativo é que o Bloco ganhou experiência, ganhou informação, ganhou com isso um realismo que não tinha. Diferente? Mesmo. Ora leia o que disse Catarina Martins ao Expresso no último fim de semana:

“De repente começámos a negociar dossiês sobre os quais nem sequer conhecíamos os dados. Hoje temos uma preparação que não tínhamos. Por outro lado, quando negociamos dossiês mais de perto temos consciência do tão pouco que os governos mandam”.

Pois é, chama-se globalização. E o Bloco ainda convive mal com ela, como discorda das regras do euro. O Bloco não deixou de ser o Bloco, protecionista na economia mas não nas liberdades – e o trabalho de conciliar tudo isso é um trabalho de Golias que não lhe invejo. Mas, reconheço, o Bloco tem hoje um pé assente no chão e outro na diferenciação de políticas que propõe. E isso é bom para o país, sejamos nós de esquerda ou de direita.

3. E o PSD? Que dizer do PSD?

Que Rui Rio propôs um banho de ética e se afogou nele. Que não é possível dizer que os programas eleitorais já não contam e só ganhará eleições “com uma nova atitude política” e depois reduzir um problema ético na sua direção a “pequenas questiúnculas” – ou a responder em alemão às perguntas dos jornalistas (e como é que se diz “vergonha” em alemão?).

Pena que não perceba que pior do que o dinheiro é a mentira. Pena, porque se Rui Rio trazia um valor interessante à política nacional era o de que o PSD não era um partido cego, surdo e mudo ao que se passava no país. Era a estratégia de não recusar diálogos fosse com quem fosse, até com o Bloco – se fosse o caso de se concordar com as políticas.

Rui Rio quis recuperar para o PSD o valor do bom senso. Mas pelo caminho perdeu o juízo. Lá se foi mais uma oportunidade para a direita mudar de caminho.

Notas soltas da semana

  • Por que votámos em Hitler? O problema sobre Bolsonaro não está nas notícias, nem se cura com censura nenhuma (que, imagino, também não me querem aplicar a mim). O problema está só na banalização de um discurso político que é inadmissível. A história explica, o El Pais resume aqui. Vale a pena ler: “Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou antissemitas, mas porque muitas pessoas razoáveis fizeram vista grossa”.
  • Por que Trump é igual? O Presidente eleito perdeu controlo sobre uma das câmaras do Congresso, mas bastou-lhe o reforço no Senado para correr, logo no dia depois, com o procurador-geral que não travou a investigação de que está a ser alvo. E, não contente, calou e expulsou da Casa Branca um jornalista que lhe fez perguntas incómodas. Também terá defesa?
  • Sr Presidente, importa-se de repetir? O que é que Marcelo queria dizer quando afirmou que não vai tolerar “que se repita o uso das Forças Armadas ao serviço de jogos de poder”? Mas jogos de poder de quem? O que é que o Presidente sabe que nós não sabemos?
  • Só uma pergunta, sr. Presidente: se o sr. Presidente não sabia, não teria que pedir contas a quem sabia? (sobre Tancos, claro).
  • Uma pergunta ao sr. PM: diz o Público que Costa já decidiu manter Centeno nas Finanças depois das legislativas de 2019. E aos portugueses, Vexa já perguntou a opinião? E ao próprio?

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