Qual é a taxa de IVA aplicada à hipocrisia?

E se cada um dos 230 deputados pudesse votar a mesma lei de duas ou três formas diferentes? Poderia votar a favor e contra e a seguir, poderia ainda abster-se depois de ter dado o "sim” e o “não”.

Muitos deputados e respetivos partidos andam cada vez mais divididos entre o apoio e a oposição a políticas públicas e medidas avulso que, mais cedo ou mais tarde, acabam por ter que votar no Parlamento. Há quem seja contra mas vote a favor. Há quem apoie mas vote contra. E há quem faça um “arranjinho” com amigos para se dividirem entre as várias posições possíveis num determinado assunto para não desgostarem ninguém.

Mas tudo isto é desagradável e dá trabalho. Preocupado com os problemas de identidade política e ideológica que podem implicar para os deputados, deixo um contributo: e se a Assembleia da República alterasse o regimento no sentido de permitir que cada um dos 230 deputados pudesse votar a mesma lei, artigo ou documento de duas ou três formas diferentes? Poderia votar a favor e contra e logo a seguir, se quisesse sublinhar bem a sua neutralidade no tema, poderia ainda abster-se depois de ter dado o “sim” e o “não”. No limite, teríamos leis com 230 votos a favor, 230 votos contra e 230 abstenções. Haveria maior sinal de paz e harmonia no país do que isto? De deputados que estão em total sintonia com todas as tendências e sentires em cada assunto?

E quando, no futuro, alguém viesse pedir contas a um qualquer deputado sobre a forma como votou esta ou aquela medida ele teria sempre o contra voto para mostrar. Para ilustrar a utilidade recorro a alguns exemplos da atualidade. O mais óbvio é, claro, o espetáculo pouco digno e até amador a que o PS se dedicou sobre o IVA que as touradas devem pagar. Podendo votar cumulativamente de todas as formas, os deputados socialistas sairiam airosamente do assunto.

Votariam a favor a descida do IVA das touradas para 6% e justificariam: “é uma tradição cultural, é um setor de atividade importante que não pode acabar. Além disso, como diz o nosso camarada Manuel Alegre, é uma questão de liberdade e, como sabemos, o PS é o partido da liberdade. Não vamos impor um gosto politicamente correto a ninguém. Não foi para isto que lutámos pela democracia, contra a ditadura”.

Logo a seguir votariam contra a descida do IVA e justificariam: “é uma questão de civilização como a secretária de Estado Graça Fonseca muito bem assinalou. Não podemos, no século XXI, manter tradições que fazem da tortura de um animal um espetáculo público. Se a política fiscal também serve para o Estado beneficiar ou penalizar alguns tipos de consumo, este é claramente daqueles que não pode ser promovido. A liberdade de uns não se pode fazer à custa da tortura de outros, ainda que sejam animais”. Não é isto mais transparente e higiénico do que a pouco dignificante encenação entre António Costa e Carlos César dos últimos dias?

Para o Bloco de Esquerda esse regime teria também grande utilidade e capacidade para apaziguar consciências. Catarina Martins disse há dois dias: “Temos uma enorme divergência com o Governo em relação à forma como é feita a consolidação orçamental”. Uma “enorme divergência” que tem merecido do Bloco sucessivos votos favoráveis em matérias orçamentais. Podendo votar ao mesmo tempo a favor e contra o Orçamento do Estado, os bloquistas podiam iniciar uma dieta isenta de sapos, que vai tardando.

O argumentário para o voto a favor: “Virámos o ciclo, afastámos a direita do poder para podermos finalmente colocar o Orçamento do Estado ao serviço das pessoas. Somos a favor da responsabilidade orçamental e isto demonstra que esta alternativa das esquerdas também sabe fazer orçamentos com as contas certas, compatível com a reposição de rendimentos e de direitos. Esta é uma verdadeira política de esquerda”.

Seguia-se o voto contra o orçamento, devidamente sustentado também: “Não foi para isto que virámos e ciclo e que afastámos a direita do poder. O Orçamento do Estado tem que estar mais ao serviço do povo e não deve ter como prioridade a sujeição à ditadura orçamental de Bruxelas e dos seus burocratas. O povo não come défice zero. O povo não estuda défice zero. Não é o défice zero que nos cura quando vamos a um hospital público. Esta é uma verdadeira política de direita”.

Tudo muito mais transparente do que o contorcionismo habitual e a necessidade imperiosa de medir as palavras para justificar um voto favorável sem colocar grande entusiasmo na declaração.

À direita a utilidade não seria menor. Agora que PSD e CDS estão muito tentados a votar ao lado do Bloco de Esquerda e Partido Comunista para obrigar o governo a considerar todo o tempo de contagem de carreiras exigido por Mário Nogueira, a votação dupla salvaria a face e a contradição dos deputados de ambos os partidos.

O voto contra a contagem dos nove anos e tal seria facilmente explicado: “Não é por estarmos na oposição que deixamos de defender o que melhor serve os interesses do país. E isso é, claramente, a responsabilidade orçamental e a resistência à tentação de tomar hoje medidas que comprometam as contas públicas no futuro. Estamos a falar de cerca de 600 milhões de euros de impacto. É muito dinheiro. Os portugueses não entenderiam se o aprovássemos. Não podemos estar reféns de Mário Nogueira nem dos milhares de professores que ele pode representar”

O voto a favor da contagem dos nove anos e tal também seria facilmente explicado: “Há questões de justiça das quais não abdicamos ainda que tenhamos que, neste caso, estar ao lado daqueles cujas propostas combatemos todos os dias. A responsabilidade orçamental não pode ser um fim em si mesmo se não servir para fazer justiça quando ela se impõe. E os professores merecem essa justiça, sem qualquer eleitoralismo nesta nossa posição. O país terá que encontrar recursos para o fazer. E 600 milhões de euros nem é assim tanto dinheiro”

No próximo ano, tanto PSD como CDS podiam fazer campanha junto dos professores sublinhando como estiveram ao lado dos seus interesses e, ao mesmo tempo, sublinhar como foram responsáveis, impedindo que os interesses próprios dos professores tenham atropelado os dos restantes contribuintes.

Este é, obviamente, um exercício provocatório mas que só avança um passo na hipocrisia vigente. A única coisa que não temos é o múltiplo voto em sentidos opostos. Porque as narrativas, retóricas e discursos justificativos são realistas e, por estas ou palavras semelhantes, são ditos todos os dias de acordo com as circunstâncias e as conveniências de cada plateia. Não é um espetáculo bonito, não. E só tenderá a acentuar-se à medida que avançamos para eleições, com o crescente peso das redes sociais na aferição do “sentimento popular” e com a ausência cada vez mais prolongada de estadistas e a sua substituição por figurantes políticos. Os primeiros tomavam decisões mesmo contra o sentimento maioritário dos povos sempre que achavam que esse era o caminho certo. E assumiam os custos políticos disso. Os segundos gerem sobretudo a sua permanência nos cargos e a popularidade de ideias e propostas descartáveis para agradar à plateia do momento. Têm horror a decisões impopulares, por mais nobres que sejam.

Se é para isto, um bom gestor de comunidades e redes sociais que consiga tirar o sentimento médio expresso no Twitter, Facebook e Instagram (nunca esquecer a imagem) não faria pior trabalho.

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