Sem poupança estamos já a gastar o futuro

Só há investimento se houver poupança. E se não há poupança interna, terá que vir a poupança de outros países, gerando desequilíbrios que bem conhecemos e que nos custaram e custam muito caro.

Não quero de forma alguma atrapalhar com realidades preocupantes a febre consumista que ataca muita gente nesta altura do ano – e que começou há semanas com a importada “black friday”, onde se compra o desnecessário a preços normais pensando que se está a fazer o negócio do ano.

Mas acontece que há uns dias, enquanto andávamos entretidos a passar o cartão Multibanco ou de crédito nos POS das lojas, ficámos a saber que o nível de poupança dos portugueses continua a cair regularmente e, no terceiro trimestre deste ano, chegou ao nível mais baixo pelo menos das últimas duas décadas (desde que o Instituto Nacional de Estatística calcula a série): por cada 100 euros de rendimento, os portugueses poupam, em média, quatro euros.É uma taxa demasiado baixa para uma economia com as características, o nível de desenvolvimento e os desequilíbrios da portuguesa.

A falta de poupança coloca-se, à partida, no plano pessoal e prudencial de cada um de nós: então e se nos acontece algum percalço, alguma quebra súbita do rendimento regular ou alguma despesa inesperada e inadiável, como fazemos?

Isto, como bem disse Ricardo Mourinho Félix, deixa muita gente sem guarda-chuva para o tempo da chuva. Não sabemos quando ela vai chegar, mas podemos ter a certeza que um dia chegará, com maior ou menor intensidade.
Acresce que esta descida da poupança, que dura há vários anos, ocorre num ciclo de taxas de juro historicamente baixas. Num país com níveis de endividamento assinaláveis para a compra de casa, resulta daqui algum alívio para muitos orçamentos familiares que podia ser canalizado para a poupança. Mas não é, é sobretudo destinado ao consumo.

Além do potencial impacto que esta realidade poderá ter em muitas famílias, a reduzida taxa de poupança interna é um dos problemas macroeconómicos que o país tem para resolver. Que não é de hoje mas que está cada vez mais acentuado.

Numa economia, o investimento é financiado pela poupança. O crédito que a empresa XYZ pede ao banco para financiar uma nova linha de enchimento de garrafas, por exemplo, é-lhe concedido porque esse banco tem lá depósitos de muitos clientes. São os depósitos que financiam, em grande parte, os créditos bancários. E quando assim não é alguma coisa está mal.

Quando a troika chegou, os bancos que operavam em Portugal tinham, em média, uma taxa de transformação (de depósitos em crédito) de 160%. Ou seja, a cada 100 euros de depósitos de clientes correspondia um crédito concedido de 160 euros. Os 60 euros de diferença nesta equação vinham de crédito externo que os próprios bancos pediam a colegas seus lá fora para emprestarem cá dentro.

Este era um dos desequilíbrios numa economia que consumia acima da prudência, altamente endividada e, por isso, muito dependente do financiamento de outros países. Dependente, portanto, da poupança dos outros.

Uma das obrigações do Programa de Ajustamento foi a descida daquela taxa para os 120%, o que obrigou os bancos a travar a fundo na concessão de crédito que assim ficou muito mais dependente do nível de poupanças captadas.

Mas se a mesma empresa XYZ quiser ir para a bolsa e abrir o capital para financiar o mesmo investimento, estará também dependente da aplicação de poupanças, de forma directa (compramos directamente acções) ou indirecta (fundos de investimento ou seguradoras compram acções com as nossas poupanças).

Os exemplos podiam multiplicar-se mas chegando sempre ao mesmo lugar: só há investimento se houver poupança. E se não há poupança interna, terá que vir a poupança de outros países, gerando desequilíbrios que bem conhecemos e que nos custaram e custam muito caro.

Entre as várias lições que devemos reter com a quase bancarrota a que chegámos no início da década, é que a dependência externa tem limites e que nenhuma economia pode viver eternamente do financiamento externo em doses elevadas sem uma produtividade e competitividade que garantam que esse caminho é sustentável.

Felizmente, hoje, o Estado é muito menos consumidor de poupanças do que era há uma década. Se o défice público é de, por exemplo, 5% do PIB, isso significa que o Estado tem que financiar-se nesse montante para “cobrir” o défice. Esses são recursos de poupança (interna ou externa) que não são canalizados para outros sectores da economia, porventura mais produtivos e com maior contributo para a competitividade.

Com as contas públicas próximas do equilíbrio, esta é uma pressão que neste momento não há sobre os recursos do país – embora esse défice quase nulo esconda o aumento de dívidas do Estado a uma série de fornecedores, nomeadamente na Saúde.

Então e como se sai daqui?

A primeira resposta que costuma ouvir-se quando se fala destas coisas é esta: aumentem-se os rendimentos que a poupança também aumenta. Sim, é óbvio que há uma relação entre o nível de rendimento das pessoas e o que elas conseguem poupar. É mais fácil poupar 500 quando se ganha 5000 (taxa de poupança de 10%) do que poupar 50 quando se ganha 500 (para manter a mesma taxa de poupança).

Mas a experiência passada em Portugal diz-nos que há muito mais para além da evolução dos rendimentos. Uma coisa é o que podemos, de facto, poupar depois de pagar as despesas. E outra é o que queremos poupar.

Quem olhar para o gráfico da notícia já referida pode reparar numa tendência curiosa: o nível de poupança tende a aumentar nas alturas de crise, de maior desemprego e aflição e tende a cair quando há mais confiança, quando o emprego aumenta, quando o discurso público é mais optimista. Por exemplo, a poupança aumentou entre 2011 e 2013, o pico da crise e do corte de rendimentos. E tinha caído fortemente entre 2006 e 2008, os anos de maior crescimento do século.

Parece, de facto, um contrassenso. Mas aqui entra a psicologia. O receio com o futuro e os seus sobressaltos é maior quando se fala deles e se está em plena crise e isso levará muitas pessoas a encontrar forma de, mesmo dentro de apertados orçamentos familiares, conseguirem poupar algum dinheiro.
Este é daqueles desequilíbrios que comprometem o nosso futuro colectivo porque a falta de investimento de hoje – que seja competitivo e com retorno, já agora – será a decadência de amanhã. Isso é verdade no sector público mas, sobretudo, no privado. As empresas portuguesas são historicamente descapitalizadas porque há um baixo nível de poupança e pouca apetência para o risco. E este é daqueles temas onde as políticas públicas pouco podem fazer efectivamente para além dos incentivos fiscais à poupança.

A questão é sobretudo cultural e requer muita literacia e muita educação, trabalhadas de forma consistente, com mensagens bem dirigidas aos vários públicos e articulada entre os vários protagonistas – bancos, seguradoras, entidades reguladoras, empresas, sector público – para que, a prazo, alguma mudança visível possa ocorrer.

E é, certamente, mais importante do que parece e tem um impacto muito mais vasto do que os dramas pessoais que provoca.

E se for preciso uma citação de um estrangeiro conhecido para convencer alguém, também se arranja: “Não nos tornamos ricos com o que ganhamos, mas com o que não gastamos.” Foi Henry Ford que disse.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo a nova ortografia.

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