Centralistas em choque descobrem custo do centralismo

Se cada automóvel pagar um euro quando entra em Lisboa o subsídio dos passes fica pago sem recorrer ao Orçamento. É mais justo e eficaz. Mas é desagradável pedir dinheiro em ano de eleições, não é?

A descentralização e políticas de coesão territorial fazem recordar aquela anedota do jovem que matou os pais e foi a tribunal pedir clemência dada a sua condição de órfão.

Durante décadas o país concentrou alegremente na região de Lisboa tudo o que é serviço público, organismo regulador e entidade cuja sede depende da decisão dos sucessivos governos de turno. Do Instituto do Vinho e da Vinha ao Instituto da Floresta e Conservação da Natureza, passando pelas entidades que se encarregam da geologia e minas, do mar e dos rios, dos vários ramos da indústria e das actividades económicas, não há quem não esteja encavalitado em três ou quatro de quilómetros quadrados no centro de Lisboa, a zona do país com maior pressão urbanística e de mobilidade. Entre 70% e 80% dos funcionários do Ministério da Agricultura estão aí instalados, por exemplo. Todos sabemos dessa irracionalidade, a começar pelo ministro. Mas mudar e tomar decisões é tão difícil…

Não é difícil de imaginar o efeito multiplicador que este comportamento continuado do Estado tem para trabalhadores e empresas, grandes ou pequenas: se é ali que se concentram cada vez mais pessoas, se é ali que há mais serviços para prestar e pessoas para comprar os nossos produtos, se é ali que temos que estar para ter a licença, o papel e o selo branco que o Estado exige para podermos respirar, o melhor é estar próximo dos serviços públicos.

Parece que os responsáveis do país que se organizou desta forma estão agora a descobrir com espanto que ele está patologicamente centralizado e que isso tem custos económicos, sociais e ambientais.

O custo da habitação disparou, levando muita gente que entretanto organizou ali a sua vida a afastar-se cada vez mais para a periferia, com custos e tempos de transporte cada vez maiores, com orçamentos familiares cada vez mais apertados e qualidade de vida cada vez pior.
A proverbial incapacidade de planeamento, de organização e de desenho e implementação de políticas públicas atempadas impediu durante décadas o desenvolvimento de redes adequadas e articuladas de transportes públicos nos grandes centros urbanos, afastando utentes e tornando a vida dos que não têm alternativa de mobilidade mais difícil e muito cara.

Com as áreas metropolitanas a rebentar pelas costuras, com a absoluta necessidade de inverter os impactos ambientais, com o império do transporte individual alimentado durante décadas, agora chega a aflição e é preciso dinheiro para a apaziguar.

E, como no jovem da anedota, o que decisores políticos do governo, de dezenas de câmaras municipais das áreas metropolitanas e de partidos políticos estão agora a dizer é muito simples: durante décadas aprofundaram o centralismo, acentuaram as desigualdades territoriais e foram incapazes de travar o empobrecimento de uma parte importante do país; agora apontam para os efeitos dessas suas decisões, alegam a pressão a que estas áreas metropolitanas estão sujeitas e vão cobrar a todos os seus custos, incluindo as próprias vítimas do centralismo. É obra.

A propósito da forma como vai ser feito o financiamento dos 140 milhões de euros anualizados que a redução dos passes vai custar, li e ouvi durante a semana uma miríade de argumentos para tentar justificar que o recurso ao Orçamento do Estado é a forma socialmente mais justa e economicamente mais eficaz.

É pena que, no meio da espuma mediática em que são feitos os debates políticos, não haja capacidade para distinguir a bondade de uma medida da forma como é desenhada e financiada.
Bondades, esta medida tem duas. Uma imediata, que é o impacto nos orçamentos de milhares de famílias que dele realmente precisam. E outra a prazo, se as enésimas promessas de pôr os transportes públicos a funcionar finalmente se verificarem, que é o abandono do transporte individual e o respectivo impacto ambiental.

Para os que acham que os fins justificam todos os meios, nestas alturas tudo serve: comparam-se políticas locais e altamente diferenciadas de transportes urbanos com o financiamento de sistemas de acesso e necessidades universais, como a Saúde, a Educação e a Segurança Social. Argumento: se o Orçamento do Estado financia estes, porque não pode financiar decisões de incidência local como as políticas de transportes urbanos? Quem utiliza o argumento não percebe que é a maior crítica que podem fazer à descentralização, à autonomia municipal na definição de políticas e correspondente responsabilização orçamental.

Se afinal temos um Orçamento do Estado que tudo deve financiar directamente – do nacional ao local – então para que precisamos de orçamentos municipais e da autonomia fiscal e de receita que as câmaras já têm (IMI, IRS, taxas, licenças)? E qual foi afinal a racionalidade da ideia – boa, assinale-se – de passar as empresas de transportes urbanos para a tutela municipal, se afinal estas políticas são nacionais?

Com este aperitivo, o debate que se avizinha sobre regionalização promete ser interessante quando se começar a discutir o que são políticas nacionais e regionais, quem decide o quê, quem financia o quê e que autonomia fiscal e responsabilização financeira terão as hipotéticas regiões administrativas.

É que muita gente fica chocada com a sugestão de pagar o subsídio dos passes sociais como receitas próprias dos municípios directamente incluídos na medida – como o IMI, por exemplo, que as câmaras municipais mantêm próximo dos 0,30% e que pode subir até aos 0,55%. Que horror, garantir que as economias das zonas mais ricas do país sustentem uma medida local que, dizem, lhes vai melhorar a qualidade de vida e valorizar o património.

Mas como os caminhos são muitos, há formas de financiamento alternativas com óbvios ganhos de eficácia para os objectivos que, dizem, se querem alcançar.

  1. A primeira é a cobrança de uma taxa – uma portagem ou um adicional de portagem, se quiserem – a todos os automóveis que entrem nas áreas metropolitanos de Lisboa e Porto.Em Lisboa entram, por dia, 370 mil carros. Uma cobrança de um euro por cada um destes automóveis durante os 22 ou 23 dias úteis por mês (de borla do fim de semana e tudo…) pagava o encargo que os passes vão ter em toda a área metropolitana. E já viram como é de fácil e imediata execução, uma vez que as duas áreas metropolitanas já estão “cercadas” por portagens em todos os acessos? Era só actualizar preços.
  2. A segunda, também de facílima execução, é aumentar os custos do estacionamento em espaço público explorado ou concessionado pelos municípios das áreas metropolitanas de forma a cobrir aquele custo.Utilizar automóvel nas grandes cidades causa externalidades negativas – ocupam espaço, causam ruído e poluição, obrigam a pesados investimentos e custos de manutenção em vias de circulação, semáforos, segurança, policiamento, etc. – e esse custos deve ser, em boa parte, suportado pelos utilizadores.

Além da maior justiça social, económica e territorial – podendo, são as economias locais que financiam políticas locais, e não precisam de recorrer à solidariedade de regiões e populações muito mais pobres para o efeito – a grande vantagem deste tipo de abordagens é o aumento da eficácia das políticas. Se a utilização do automóvel nestas regiões for mais cara ao mesmo tempo que a utilização do transporte público é mais barata, vai ser acelerada a transferência de um meio para outro. Quando fizerem contas, o incentivo dos cidadãos para deixar o carro em casa é muito maior.

Se o primeiro objectivo da medida proposta é a atracção de mais utilizadores para os transportes públicos através da redução dos seus custos, contribuindo assim para a melhoria da mobilidade, a diminuição do impacto ambiental e também aumentando os rendimentos das famílias que já os utilizam, porque é que estas alternativas de financiamento não são estudadas e discutidas seriamente? Porque não se avaliam os custos e benefícios comparativos destas opções?

Uma pista: porque ir pedir mais dinheiro directamente às centenas de milhares de pessoas que todos os dias levam o seu carro para Lisboa e para o Porto é uma coisa muito desagradável em ano eleitoral. Ainda que sejam precisamente estes que se querem cativar para o transporte público, também são estes que se querem cativar para o voto nas próximas eleições.

É muito mais discreto fazê-lo através do Orçamento do Estado, onde populações que nem sabem o que é um transporte público e pagam impostos como em todo o país vão contribuir para políticas locais que são necessárias mas que não deixam de ser locais.

É mais injusto? É.
É menos eficaz? É.
É mais populista? É.
Mas é eleitoralmente mais proveitoso? É.
Então faça-se assim.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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