O WC e a garagem de Joe Berardo

O comendador tratava ministros por “babe” e banqueiros por “tu”. De quinto homem mais rico de Portugal, hoje tem como património apenas uma garagem no Funchal.

Para quem não conhece Joe Berardo, este parágrafo da jornalista Vanessa Rato no Público faz um resumo brilhante: “É o tipo de homem que não se coíbe de tratar uma ministra por ‘babe’ e de, a meio de negociações que envolvem milhões, lhe lançar à cara um sonoro ‘dahhhh‘ (o mesmo que lhe chamar parva, mas com menos letras).”

Estávamos em 2006, altura em que Berardo conseguiu negociar com o Estado a transferência da sua magnífica coleção de arte contemporânea para o CCB. Na altura, Joe era uma espécie de pop star empresarial e cultural. Tinha as portas da banca escancaradas e, se o seu clube perdesse um jogo no domingo, era homem para, com financiamento da banca, lançar uma OPA na segunda-feira para “ajudar o seu Benfica”.

Nessa altura, os banqueiros faziam fila para privar com o “senhor comendador” que conseguiu que a Caixa, o BCP e o BES (agora Novo Banco) lhe emprestassem mil milhões de euros para comprar ações do BCP e entrar numa guerra de poder para destronar Jardim Gonçalves. Ganhou uma batalha — foi ele quem denunciou o esquema fraudulento das offshores — mas perdeu a guerra. Mais de 10 anos volvidos, Berardo continua a dever 980 milhões de euros à banca que se prepara para meter o empresário em tribunal.

Há um provérbio na banca que diz que se deves 100 euros ao banco, o problema é teu; se deves 100 milhões, o problema é do banco. Berardo não deve 100, nem 200, nem 300. Berardo deve 980 milhões à banca e não tem dinheiro para os pagar.

Este calote à Caixa, BCP e Novo Banco diz-nos mais sobre os bancos do que sobre Joe Berardo. A banca emprestou dinheiro sem garantias reais e quando pediu ao comendador o dinheiro de volta ou um reforço do colateral recebeu como resposta um sonoro ‘dahhhh’.

O “Tête de Femme” de Picasso e a garagem no Funchal

Um parecer da Direção de Gestão de Risco da CGD, anexado a um dos três processos de crédito do comendador no banco público, evidenciava que do levantamento efetuado ao património de Joe Berardo apenas tinha sido detetada uma garagem no Funchal como património direto do empresário. O dono de “Tête de Femme” de Pablo Picasso, da “Judy Garland” de Andy Warhol ou da “Figure à la bougie” de Joan Miró, declara só ter uma garagem. E no Funchal.

Berardo não foi o único empresário português que conseguiu proteger o seu património e colocá-lo a salvo das garras dos credores. Ainda todos se lembrarão da história de Nuno Vasconcellos que pediu 1,2 mil milhões emprestados à banca, chegou a ter 10% da Portugal Telecom, mas quando o tribunal foi executar a dívida ao BCP apenas encontrou uma mota de água em seu nome. O resto do património já tinha emigrado com ele para o Brasil.

Isto para não falar de Ricardo Salgado que foi chamado a tribunal e afirmou que é a filha, Catarina Salgado, quem lhe paga as contas: “Não tenho praticamente reforma e a minha mulher não tem atividade”. O mesmo Salgado que continua a ir passar férias à neve na Suíça e que, segundo o Jornal Económico, tem herdades da família no Paraguai avaliadas em 884 milhões de euros e que escaparam ao arresto dos tribunais.

Já para não falar de Oliveira e Costa que com Joe Berardo partilha o refinado gosto pelas telas de Joan Miró. O ex-presidente do BPN divorciou-se da mulher e tentou passar-lhe parte do património do casal para evitar que este fosse arrestado pela Justiça. Há quem case por amor ou por dinheiro. Oliveira e Costa divorciou-se por amor e por dinheiro. O que vale é que neste caso a Parvalorem conseguiu resgatar a tempo os bens transmitidos à mulher após o divórcio.

A coleção Berardo

Mas, repetindo, este calote de Berardo à Caixa, BCP e Novo Banco diz-nos mais sobre os bancos do que sobre o comendador. Quando emprestaram dinheiro ao madeirense para comprar ações do BCP, a banca cometeu pelo menos três erros:

  1. Aceitou ações do BCP como colateral. É a mesma coisa que emprestar dinheiro a um pirómano para comprar foguetes e aceitar os foguetes como garantia do empréstimo.
  2. A banca andou anos a renegociar e a empurrar com a barriga a execução de um empréstimo que deveria ter sido pago num prazo de cinco anos, para evitar ter de reconhecer no balanço as imparidades. Quando resolveu executar, só encontrou uma garagem no Funchal.
  3. Os bancos aceitaram como reforço da garantia, primeiro 40% da coleção Berardo que está no CCB e mais tarde 75%. O problema, como nos contava esta segunda-feira o Correio da Manhã, é que um pequeno ‘truque’ tem impedido o arresto desses quadros: o empresário deu como garantia os títulos da Associação Coleção Berardo, uma das entidades que está na origem da fundação. Juridicamente não é certo que as obras de arte sejam património da associação.

Aliás, no ano passado, Joe Berardo tentou vender 16 obras do acervo da sua coleção (“sua” é claramente um exagero de linguagem), mas a Direção-Geral do Património travou a saída das obras do país. E para baralhar ainda mais o imbróglio jurídico, o acordo de comodato assinado por Joe Berardo deu ao Estado a opção de comprar toda a coleção até 2022. Ou seja, o Estado tem nesta altura uma opção de compra de quadros que Berardo tentou vender no ano passado no estrangeiro e cuja penhora está prestes a ser executada pela banca em tribunal.

Joe Berardo está atualmente a braços com a Justiça porque recusa-se a demolir um WC de luxo que construiu na sua casa na Avenida Infante Santo, com vista para o Palácio das Necessidades. Agora vai ter de responder em Tribunal porque mandou 980 milhões de euros emprestados pela banca pela sanita abaixo.

Tendo como património direto registado apenas uma garagem no Funchal, e estando a coleção Berardo aparentemente envolvida num imbróglio jurídico, sobra à banca talvez a Quinta da Bacalhôa para executar. Uma gota de água para pagar uma dívida de 980 milhões de euros. Ou melhor, uma gota de vinho.

Isto é tudo surreal. E não estamos a falar da coleção Berardo.

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