Constâncio, Berardo, a CGD e o BCP. Bem vindos a 2007

Além da aprovação tácita do reforço de Berardo no capital do BCP e da forma como foi financiado via CGD, Constâncio teve um papel activo na tomada de poder do maior banco privado português.

Há uns tempos a TSF tinha no ar um spot de auto-promoção onde se ouvia Jorge Coelho a dizer qualquer coisa do género (cito de cor): “Há muita falta de memória na política portuguesa”. Sem desdenhar qualquer outra, esta terá sido das afirmações mais certeiras que o antigo ministro disse na sua já longa intervenção pública.

A falta de memória que Jorge Coelho já referia há muitos anos veio a tornar-se, entretanto, um padrão nas comissões de inquérito em que o Parlamento se tornou viciado, sobretudo as que incidem sobre escândalos económicos e financeiros.

Já são anedóticas a frequência e a facilidade com que qualquer protagonista invoca a falta de memória para não se comprometer, não dizer nada que possa ser usado contra si ou não contradizer alguma coisa que possa ter dito no passado ou venha a dizer no futuro.

Com Vítor Constâncio, o caso é diferente e mais grave. Sobre o então governador do Banco de Portugal cai a suspeita de ter mentido ao Parlamento quando afirmou não ter tido conhecimento prévio das operações polémicas e ruinosas da Caixa Geral de Depósitos: “claro que só tem conhecimento delas depois. Como é obvio. É natural. Essa ideia que pode conhecer antes é impossível”.

Como o Público revelou esta semana, o Banco de Portugal não só foi informado por Joe Berardo do crédito de 350 milhões que este iria obter da Caixa para comprar uma posição qualificada no BCP como essa informação foi solicitada expressamente pelo próprio banco central, antes de ser aprovada pelo Conselho de Administração do supervisor, presidido por Constâncio.

Qual é o grande problema para o ex-governador? É que, desta vez, não é um “diz que disse”, não é palavra contra palavra, não é uma mera suspeita ou suposição. Desta vez, há documentos que colocam o Constâncio de 2007 contra o Constâncio de 2019.

Isso não impediu o ex-governador de invocar agora a falta de memória para tentar sanar esta contradição temporal. Ou seja, a memória viva que teve na Comissão de Inquérito para garantir que não conhecia aquelas operações à data tornou-se, de repente, muito difusa. Sobre isso, Manuel Carvalho já escreveu no Público o que deve ser dito.

Mas e o Parlamento? O que vão fazer os deputados perante isto? Voltam a chamar Constâncio, que lá irá de novo dizer umas coisas que não se sabe se estão dentro da verdade, da mentira ou da penumbra da falta de memória e fica tudo bem?

O Parlamento também joga, e muito, a sua frágil reputação nestas Comissões de Inquérito. É verdade que o desfilar de personalidades por aquelas salas a fazerem estas figuras são uma excelente matéria-prima para Ricardo Araújo Pereira e “Gente que não sabe estar”. Mas sem querer desprezar esta óbvia utilidade social, diria que não é para isto que se fazem sucessivas Comissões Parlamentares de Inquérito e alguma coisa deve ser feita para que os cidadãos lhes reconheçam outra utilidade.

Mas já que estão dedicados à Caixa Geral de Depósitos e ao papel do Banco de Portugal, é preciso não esquecer que do tema genérico “créditos ruinosos com eventual propósito político” nascem depois outros sub-temas, como por exemplo o “assalto ao BCP com motivações políticas”. É sempre assim, os escândalos são uma espécie de matriosca: por cada um que se destapa há outro que é revelado.

Além da aprovação tácita que o Banco de Portugal fez do reforço de Berardo no capital do BCP e da forma como foi financiado através da Caixa, Constâncio teve um papel activo no “jogo” que estava a decorrer pela tomada de poder do maior banco privado do país.

O então governador foi fundamental para a passagem de Carlos Santos Ferreira e Armando Vara da Caixa Geral de Depósitos para o BCP, numa intervenção obscura que reuniu alguns accionistas do banco privado nas vésperas do Natal de 2007.

Tudo foi sendo noticiado enquanto acontecia e está nos arquivos dos jornais para quem se der ao trabalho de pesquisar (eu mesmo fiz uma pequena viagem ao arquivo do Público, que está disponível online para assinantes).

A intervenção de Vítor Constâncio, enquanto governador do Banco de Portugal, no “assalto” ao BCP é um tema antigo que agora é reforçado pelas revelações da última semana. Por regra, as instituições, os partidos e o debate saltam de tema em tema sem nunca fechar o anterior. E depois, mais tarde, lá somos confrontados com o passado por esclarecer e por resolver.
Este é mais um caso e de grande gravidade por tudo aquilo que implicou e por ter merecido a intervenção de uma entidade, o Banco de Portugal, que era a última a poder envolver-se daquela forma.

Já que estamos a regressar ao baú da memória era importante perguntar a Constâncio pela reunião do final da tarde chuvosa do dia 21 de Dezembro de 2007, para a qual convocou alguns accionistas do BCP – trata-se de uma empresa cotada em bolsa, atenção – e da qual saiu o nome do então presidente da Caixa, Carlos Santos Ferreira, que estava presente na sala, para presidir ao banco privado. A reunião continuou nos dias seguintes, tendo transitado do Banco de Portugal para a sede da EDP.

Haverá alguma acta dessa reunião no Banco de Portugal ou tratou-se de uma intervenção informal?

Provavelmente, Joe Berardo, que também esteve presente, terá melhor memória dela do que o então governador. E ainda vamos concluir que Berardo foi o único a ir à Comissão Parlamentar contar como as coisas realmente se passaram. Ficámos chocados com o estilo. Mas também com a realidade, porque a realidade é chocante.

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