Editorial

A anatomia de um Governo. Político, e com o Estado na mão

António Costa reforçou o núcleo político, com os mais próximos ainda mais próximos. Com mais Governo e menos parlamento. E com um ministério-chave, o ministério dos funcionários públicos.

Aí está o Governo de António Costa, parte II, sem verdadeiras surpresas, mas com mais mudanças orgânicas do que se poderia supor, tendo em conta a remodelação de há cerca de um ano. É um Governo sem familiares (afinal, era um problema) e em que os mais próximos de Costa, pessoal e politicamente, estão ainda mais próximos, a tentar proteger uma frente político-partidária interna que exigirá maior negociação e a presidência europeia no primeiro semestre de 2021. E com um ministério-chave para o sucesso ou insucesso do Governo: o ministério dos funcionários públicos (a modernização administrativa que está no nome do ministério está lá apenas para enfeitar).

Não há propriamente novos nomes sonantes no Governo para a próxima legislatura. Dos 19 ministros, 14 são os mesmos, mas há um reforço do núcleo político em torno de quatro ministros, que passam, todos, a ministros de Estado. São Pedro Siza Vieira, Augusto Santos Silva, Mariana Vieira da Silva e, sim, Mário Centeno. São o núcleo do núcleo duro político de coordenação e que é mais largo, e onde estarão, tudo indica, Pedro Nuno Santos (Infraestruturas) e Eduardo Cabrita (administração Interna). E este reforço político do Governo tem uma preocupação de luta e negociação interna, dentro e fora do Parlamento. Curiosamente, Duarte Cordeiro, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, até perde peso, porque deixa de ser “adjunto” do primeiro-ministro. A política, em todo o seu esplendor, é o que marca as escolhas de António Costa. O “resto” é conversa.

A presidência portuguesa é um bom álibi para a promoção de quatro ministros à condição de ministros de Estado. Sim, é verdade, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros vão estar em função externas mais vezes do que o normal, por causa da Presidência europeia, e não apenas no primeiro semestre de 2021. Há trabalho preparatório no semestre anterior e há passagem de pasta no semestre seguinte. Mas não chega para explicar as mudanças. Há relações pessoais, confiança política e, sobretudo, futuro.

A escolha de Pedro Siza Vieira para número dois do Governo, no fundo o homem que vai substituir o primeiro-ministro na sua ausência, à frente de Mário Centeno permite duas leituras imediatas:

  1. Costa quer dar mais peso ao ministro que fala de economia e das empresas, em contraponto ao peso de Centeno, que às vezes ofuscava o próprio primeiro-ministro.
  2. Centeno não está para ficar. O ministro das Finanças é presidente do Eurogrupo até junho do próximo ano e o que esta opção nos revela é que esse é a primeira data possível para a sua saída (para o Banco de Portugal?) Centeno tinha dado todos os sinais de que não queria continuar e, continuando, apenas por causa do cargo no Eurogrupo, por isso, o próprio dispensará de bom grado esse poder. Centeno quer outro.

Depois de quatro anos em que o discurso das contas certas, para vender às agências de rating e aos investidores internacionais, dominou o discurso, agora que a economia vai entrar num ciclo internacional de abrandamento, e em Portugal também, será necessário um ministro a centralizar o debate em torno deste discurso. E será mesmo no discurso.

As novidades do Governo não acabam por aqui. Há, em primeiro lugar, mas não o mais relevante, a retórica política em torno dos eixos políticos da nova legislatura, as mudanças climáticas, a coesão territorial, as desigualdades e a transição digital, títulos que passam bem nas televisões. Há, em segundo lugar, a manutenção de ministros que estariam de saída, como Brandão Rodrigues, na Educação, e Marta Temido, na Saúde. Há, depois, mudanças de pasta, e a promoção da secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, a ministra do Trabalho e Segurança Social para substituir o histórico Vieira da Silva talvez seja a maior surpresa, embora Mendes Godinho já tenha experiência na Inspeção do Trabalho (e não se esperam mudanças relevantes nem na legislação laboral nem no financiamento da Segurança Social). Mas há uma mudança orgânica mais relevante do que todas as outras:

  • A secretária de Estado que pôs os professores na ordem, Alexandra Leitão, vai para ministra de um novo ministério de todos os funcionários públicos, competência que estava debaixo da responsabilidade de Mário Centeno (mais um sinal de que está com um contrato a prazo).

Muito do jogo político da próxima legislatura vai jogar-se aí, na gestão dos funcionários públicos, do chamado “partido do Estado”. O PS inscreveu no programa eleitoral o objetivo de rever as carreiras especiais – deixando implícito que têm poder a mais – e de valorizar os quadros intermédios e superiores do Estado que, é um facto, são mal remunerados quando comparados com os preços pagos no privado. É aqui que entra a experiência de Alexandra Leitão, porque com o abrandamento da economia, e o setor privado a ter mais dificuldades do que o teve nos últimos quatro anos, o sucesso do Governo vai jogar-se, mais do que nunca, na gestão dos funcionários públicos.

Tudo somado, é um Governo de gestão a olhar para uma legislatura, a com a ambição de garantir que muda alguma coisa para que, no final, tudo fique na mesma, leia-se o controlo do poder (versão adaptada de célebre frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, no romande Il Gattopardo).

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