Luís Laginha de Sousa: “Não é por algo ser verde que é automaticamente rentável”

O Banco de Portugal revela o novo compromisso com a sustentabilidade. Luís Laginha de Sousa explica os objetivos e alerta para a necessidade de identificar os riscos de cada investimento.

No dia em que Banco de Portugal publica o seu novo compromisso com a sustentabilidade e o financiamento sustentável, o administrador Luís Laginha de Sousa garante em entrevista ao ECO/Capital Verde que este não é apenas um tema da moda e que está “muito presente nas preocupações das instituições financeiras portuguesas”.

Sem desvendar se em 2020 o supervisor bancário vai ou não emanar algum tipo de indicação para o sistema financeiro que tenha em conta estes critérios de sustentabilidade, e que os bancos sejam obrigados a seguir na avaliação das suas políticas de crédito, Laginha de Sousa garante que a incorporação de elementos ambientais nos testes de stress à banca é algo que “está no horizonte”, tal como já acontece na Holanda, por exemplo.

No documento de compromisso são definidas as prioridades do Banco de Portugal na resposta aos desafios relacionados com a sustentabilidade e o financiamento sustentável, com destaque para as alterações climáticas. São ainda definidas prioridades para a atuação do regulador no domínio do seu mandato de estabilidade de preços, de estabilidade financeira e de aconselhamento económico.

O sistema financeiro português está a fazer o processo de transição para a mudança dos modelos de financiamento sustentável?

Não estamos a falar de uma coisa que vai acontecer de um momento para o outro. Este tema vai estar durante muito tempo na agenda. Havendo uma transformação em curso na economia, para evoluir para um funcionamento de menor emissão de carbono, não há motivos para que as instituições financeiras não possam também acompanhar os seus processos de avaliação de risco, de tomada de decisão, de forma a perceberem quais os riscos associados à transição. E em função disso incorporarem nas suas metodologias de análise de investimento e de adequação do preço do investimento ao risco associado a essas atividades. Não temos uma leitura ao nível de cada instituição, mas temos noção que é um tema que está muito presente nas preocupações das instituições financeiras. E que não há razão para que essa preocupação não seja traduzida em atuação que permita que as instituições financeiras se adaptem à evolução que vamos ter.

Há uma discussão europeia que passa pelo BCE, que tem a ver com a discriminação positiva ou negativa sobre a exposição dos bancos a ativos verdes e ao impacto que isso pode ter. É um caminho possível para criar incentivos?

Há sempre vários caminhos para chegar a um objetivo. Têm-se ouvido vozes a defender um green supporting factor, ou seja, subsidiar o verde ou criar um incentivo para o que seja verde possa ser subsidiado. A posição que temos defendido até aqui não é nesse sentido, mas sim no sentido de assegurar que há uma correta identificação dos riscos associados a cada investimento, independentemente da sua cor. Não é por algo ser verde que é automaticamente rentável. O fundamental é ter uma real capacidade de avaliar o risco e fazer o pricing desse risco de forma adequada, sem uma lógica de subsidiação, que pode criar mais risco.

As empresas referem que a banca portuguesa está ainda um passo atrás no financiamento sustentável. Como vê essas preocupações?

Sempre ouviremos esse tipo de comentários de quem quer obter financiamento e de quem recorre às instituições financeiras. Do nosso ponto de observação, e a partir do que o Banco de Portugal quer assegurar, as instituições financeiras devem ter os seus critérios de atribuição de financiamento adequados ao nível de risco que queiram correr. E também a capacidade de suportar a materialização do risco, se ele vier a registar-se, sem pôr em causa a estabilidade da instituição e sem risco sistémico. Isso vai obrigar a fazer escolhas e do lado de quem procura financiamento sinta que pode não estar a obtê-lo.

Muitas pessoas falam sobre o tema, mas não a partir dos mesmos critérios. Há o nível de informação adequado para sabermos do que se está a falar?

Esse é um ponto crítico e cruza com um tema que tem sido visto como crucial para lidar com este desafio, que é a questão da taxonomia. Haver um entendimento claro e partilhado, que permita que todos possamos falar a mesma linguagem e saibamos interpretar os números de forma consistente e consensual na definição. Esse caminho já deu passos importantes, mas ainda está a ser percorrido. É um elemento crucial para evoluirmos de forma relevante neste caminho. Não estamos ainda num ponto em que haja clareza suficiente para os agentes económicos sobre este tema. É desejável que lá cheguemos. E aí entra a taxonomia, como elemento importante.

“Os critérios Ambiente, Social e Governação (ASG) podem ser tidos em conta como um critério adicional de avaliação de risco”

Luís Laginha de Sousa

O Banco de Portugal pode ter aí um papel?

Esse é um tema onde temos um papel. Temos de ver isto no contexto do país em que nos inserimos e do papel da instituição. Nós somos uma grande nação, mas uma economia mais pequena. Em muitas matérias devemos ter noção que não somos um decision maker, mas devemos ser um decision shaper, tentar influenciar as decisões. Para o tema da taxonomia, o Banco de Portugal tem dado os seus contributos, quando é solicitado. Como está a ser discutido ao nível da Comissão Europeia, os interlocutores são mais o Ministério da Finanças e do Ambiente. Nós temos postura de colaboração e temos vindo a ser solicitados para contribuir.

Já é tempo de os bancos começarem a agir?

Aqueles que foram pioneiros acabaram por sofrer as consequências. Só mais tarde foi reconhecido que tiveram razão antes de tempo, mas isso é de pouco consolo sobretudo quando estamos a falar de empresas, porque tem um custo elevado. Atuar no tempo certo compensa mais. No tema do financiamento sustentável, os sinais que nós temos, com toda a importância que está a ser dada a este tema a nível político, das empresas e da opinião pública, levam a supor que estamos no momento certo para olhar para este tema porque senão somos cilindrados. Este é o momento certo para dar atenção à sustentabilidade nas empresas e nas instituições financeiras.

Os critérios ASG (Ambiental, Social e de Governação) podem ser úteis para reforçar mecanismos de governação dos bancos?

As três componentes têm de estar presentes, sob o chapéu da sustentabilidade. A parte ambiental tem tido maior foco e está mais sob os holofotes, a precisar de atenção. Há consciência que a evolução de uma das componentes trará implicações para as outras. Também no domínio da governance podem existir ajustamentos que resultem da reflexão ambiental. Isso é visível no âmbito dos trabalhos do Network for the Green Financial System, que engloba dezenas de bancos centrais, e no qual o Banco de Portugal se insere. O facto de aspetos relacionados com o ambiente virem a influenciar temas relacionados com a governance, está claramente no horizonte de discussão.

E a governance como critério para o financiamento verde? Esta intervenção dos bancos centrais pode ter alcance além do sistema financeiro e da supervisão?

Uma economia não funciona de forma estanque. Quando se tomam decisões ou se dão orientações que impactam o sistema financeiro, ele interage com o tecido económico. De alguma forma, estes efeitos estendem-se à economia como um todo. Por isso as decisões têm de ser baseadas o máximo possível em factos, em cálculos, em números e avaliações técnicas. Aquilo que é fundamental para os bancos centrais e não deixarem de fazer tudo aquilo que o seu mandato permite. Este tema do financiamento sustentável coloca os holofotes nas instituições financeiras e nos bancos centrais. Mas há muito mais além do sistema financeiro, há questões de natureza fiscal, legislativa, todo um leque de atuação que não pode ficar fora do processo.

Quais os principais desafios que um banco central tem na regulação destes ativos sustentáveis?

Este é um tema em que os bancos centrais estão todos mais ou menos ao mesmo nível. Estamos no pelotão da frente de bancos que estão a discutir esta matéria e a ter ação nesse sentido. Uma das preocupações é como é que se transporta isto para as áreas de atuação do banco, desde logo na gestão das reservas do banco. Há um processo de aprendizagem, pela complexidade técnica associada. Sendo uma área de atuação do banco, procuramos incorporar estes critérios o quadro de gestão de reservas do banco. Um dos desafios é perceber, com base na informação disponível, o que pode ser qualificado como investimento sustentável ou não, e se o banco tem margem ou não para se direcionar para esse tipo de ativos. É um caminho que temos vindo a fazer, com passos importantes. Um deles foi associar-nos ao BIS (Bank for International Settlements) e entrarmos no primeiro fundo verde.

E na intervenção da regulação, que dificuldades antecipa?

O desafio cruza com haver informação correta que permita aos agentes económicos exercer a sua capacidade de decisão conhecendo aquilo em que estão a investir. Cruza com a taxonomia, com os critérios ASG poderem ser tidos em conta como um critério adicional de avaliação de risco. Não substitui os ratings das agências, mas é um elemento adicional, mais valioso quanto mais credível for.

Pode-se caminhar para ter em conta estes critérios nos testes de stress?

Os testes de stress são um instrumento muito importante para perceber a resiliência das instituições e do sistema financeiro. A incorporação de elementos de natureza ambiental – testes de stress que procurem perceber os riscos ambientais e de transição, e a sua materialização – é algo que está no horizonte de vir a ser feito. É fundamental que existam testes de stress, mas que produzam resultados comparáveis. Um elemento importante vai ser a definição dos cenários subjacentes. Se definimos regras da corrida, podemos estar a definir quem vence a corrida. Não podemos ser ingénuos.

No espaço euro há velocidades diferentes.

E há exposições diferentes aos riscos, há vulnerabilidade diferentes aos riscos climáticos e de transição. E portanto, tratar tudo de forma justa não é tratar tudo da mesma maneira. O tema está em cima da mesa. Os testes têm de ser credíveis, são temas de grande sensibilidade. Não há uma grande experiência europeia nesta matéria. Houve já ensaios na Holanda que, pela sua grande vulnerabilidade às alterações climáticas pela subida das águas do mar, tem uma preocupação e levou-os a ter um pioneirismo. Há partilha de experiências entre os bancos centrais e a Holanda tem elementos para partilhar e tem vindo a fazê-lo.

Quais são as prioridades de ação do Banco de Portugal nesta matéria em 2020?

O caminho que queremos construir, este ano e para os anos seguintes, é desenvolver pensamento orgânico sobre esta matéria. Termos capacidade interna para contribuir para as discussões que se vão ser importantes na formulação de políticas públicas ou de orientações de supervisão e regulação, com origem no BCE ou noutras entidades. Espero que em 2020 possamos marcar presença em grupos de trabalho, comissões, nos vários fóruns internacionais. Um país como Portugal tem de estar desde o início no debate destes assuntos.

Em 2020 o Banco de Portugal vai emanar algum tipo de indicação para o sistema financeiro que tenha em conta estes critérios de sustentabilidade, que os bancos sejam mesmo vinculativamente obrigados a seguir na avaliação das suas políticas de crédito?

Não quero entrar naquilo que são as orientações para os bancos. E com isto não estou a dizer que vai haver ou que não vai haver. Estes temas, pelas implicações que têm e pela sensibilidade que geram, têm de ser divulgados em espaços próprios, com cuidados próprios. Quando falamos em sistema financeiro, falamos de elementos de confiança, previsibilidade, com implicações profundas que têm de ser geridas com todo o cuidado. O Banco de Portugal está a acompanhar e está envolvido em todas as discussões sobre este tema ao nível dos bancos centrais. Não são temas decididos de forma individual. Se a este tema for dada a tradução prática de toda a importância que tem, é natural que vai ter implicações. Se fizermos como os britânicos – put the money where our mouth is – alguma coisa vai ter de acontecer.

“A incorporação de elementos de natureza ambiental – testes de stress que procurem perceber os riscos ambientais e de transição, e a sua materialização – é algo que está no horizonte de vir a ser feito”

Luís Laginha de Sousa

Que novo roteiro é este e que primeira avaliação o Banco de Portugal faz sobre financiamento sustentável?

O compromisso com este tema, traduzido num documento que será de divulgação pública, procura dar uma noção do que é a leitura do banco. Não é um tema recente. Para se chegar a este compromisso, não foi de um dia para o outro. Tem estado presente nas discussões, nas reflexões de várias áreas do banco. Mas sobretudo ao longo de 2019 achámos que era importante dar-lhe coerência, apresentar a nossa visão sobre o tema e sinalizar as áreas de atuação prioritária. É o que este compromisso procura fazer.

Enquanto banco central temos de perceber como é que este tema nos interpela, em que é que liga com o mandato do banco. Isso começou a ficar claro desde há alguns anos. É um tema que tem grandes implicações na estabilidade financeira e os bancos centrais não se podem demitir. Procurámos com este roteiro fazer uma reflexão interna que abrangeu um conjunto muito variado de departamentos, procurou perceber quais são pontos relevantes da temática, o que tem vindo a ser feito por instituições congéneres, o que o Banco de Portugal já fez até aqui e indicar o caminho que nos propomos fazer. Como todos os caminhos vai ser sujeito a revisões porque estas realidades são dinâmicas. É importante termos a noção para onde nos propomos caminhar. Temos consciência que a atuação dos bancos centrais tem implicações para a economia. É importante contribuirmos, tanto quanto possível, para que os agentes económicos acompanhem a visão do Banco de Portugal.

Qual é o papel dos bancos centrais num tema que aparentemente não diz respeito à regulação?

Pode parecer que não diz, mas acaba por dizer. Porque estamos comprometidos com a estabilidade financeira e esta área traz riscos. Quando olhamos para alterações climáticas e transição energética, há riscos físicos associados aos fenómenos, como as catástrofes naturais cada vez mais frequentes e intensas, aleatórias, e que têm grandes implicações nos ativos e no seu valor. E quando esses ativos são financiados ou funcionam como colateral para as instituições financeiras, se há acontecimentos com impactos fortes nesses ativos, isso pode ser problema.

O risco pode materializar-se e afetar uma ou outra instituição mais exposta, quer do ponto de vista sistémico, se for todo um setor financeiro ou bancário que esteja exporto a esse tipo de ativos. Estamos na fase de perceber qual a exposição que hoje o sistema financeiro já tem a ativos que possam estar sujeitos a riscos decorrentes de fenómenos climáticos. Outro tipo de risco tem a ver com a forma como a sociedade vai lidar com as alterações climáticas, ou seja, em que medida quer evoluir para descarbonização da economia, como a querem fazer, com que velocidade. E os sinais têm sido muito claros, de compromissos ao mais alto nível, de vários países. Isso vai ter grandes implicações no tecido económico.

Se temos hoje uma economia que funciona com empresas, com ativos, que para produzirem utilizam tecnologias que assentam na emissão de carbono. E se temos de passar a trabalhar de outra forma, isso vai ter de ser feito de alguma maneira. E isso tem implicações: há ativos que se vão desvalorizar, outros vão ter procura, como é que se vai financiar? Este tipo de investimentos para fazer transições desta magnitude – não estamos a falar de montantes pequenos, mas que requerem horizontes temporais de estabilidade – exigem estabilidade financeira. Cruza de forma direta com a atuação do banco.

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