Refugiados de uma Viagem sem Fim

Cercados por dentro e cercados por fora, a Europa é um Continente isolado do Mundo e um Império em crise de identidade.

A Grécia é o “escudo da Europa”. O exército de refugiados ocupa duas linhas imaginárias que mais parecem um campo de batalha entre dois mundos. Um exército involuntário e esfarrapado procura desesperadamente a entrada no paraíso da Europa, um lugar no círculo superior da abundância onde tudo é rico, próspero, perfeito. Nós sabemos que esta Europa não existe, primeiro, porque flagelada e culpada pelo seu passado histórico; depois, corroída também pela indefinição mítica de um novo horizonte, pelo pessimismo existencial relativamente ao futuro, apresentando sintomas de um esgotamento político ao qual não sabe como responder.

As fronteiras da Europa parecem os limites de um Império sem solução, daí o cenário de uma batalha em que se trocam gritos e tiros, desespero e gás lacrimogéneo, arame farpado e a esperança dos que nada são e nada têm. Ameaçada pela pandemia do covid-19 que circula livre pelas fronteiras da Europa, o Continente não pode consentir porque não pode suportar a súbita circulação interna de uma nova “população alienígena”. Cercados por dentro e cercados por fora, a Europa é um Continente isolado do Mundo e um Império em crise de identidade.

Depois vem a Turquia. A Turquia está entre a Europa e o Médio Oriente, politicamente fora da Europa, politicamente em trânsito para o Médio Oriente. Dominada pelo nacionalismo, pelo islamismo, pelo populismo, pelo autoritarismo, a visão da Turquia sobre a Europa é uma realidade política em recessão.

É verdade que em 2004 a Europa reconheceu que a Turquia tinha atingido os critérios políticos para iniciar as negociações para a adesão à União, mas na realidade nada se concretizou a não ser escombros e ressentimento. Historicamente, tal representa uma sequência de gerações de cidadãos da Turquia que cultural, económica e politicamente se considerava parte da Grande Europa e não matéria constituinte do Médio Oriente. A seta do tempo aponta para a desintegração do sonho europeu de Atatürk.

A Turquia parece procurar actualmente um modelo político alternativo à Europa, não a configuração típica da República Islâmica do Irão, mas uma forma de organização deslocada da conjugação Ocidental, nomeadamente, através da integração no chamado Pacto de Shangai. Apesar do afastamento, da acrimónia, do cinismo, Bruxelas assinou com Ancara, no ano de 2016, um Acordo que estabelece que os refugiados da Síria devem permanecer em território da Turquia, uma transacção política que envolve 3 biliões de Euros, liberdade de circulação no espaço europeu para cidadãos turcos sem necessidade de visto, o recomeço das negociações para a adesão à União Europeia e um plano humanitário que permita o estabelecimento de um número significativo de refugiados sírios.

A situação na fronteira da Grécia é o resultado do colapso deste acordo, acordo que produziu um país de refugiados a rondar os 3,5 milhões de pessoas no interior da nação turca. A guerra na Síria e a fricção política com a Europa produziu uma pátria sem território, um pesadelo humanitário, uma ameaça para a Europa, uma arma política para a Turquia.

No carácter nacional da Turquia, a crueldade, a coragem, a incompetência ou um misto entre o fatalismo e o laissez-faire, parecem conjugar-se numa constelação perfeita. Considerem esta aventura pelas estradas da Turquia. Uma pequena ponte entre Selçuk e Ismir simplesmente colapsou pelo efeito do tempo e a indiferença dos homens. Em ambos os lados da ponte as filas de tráfego esticavam-se para além da imaginação. Junto à ponte caída não se via um único agente da autoridade, apenas um conjunto ruidoso de condutores de camiões que tentavam de modo caoticamente organizado construir uma ponte provisória com as pedras abundantes no local.

Dada a impossibilidade física da travessia, regressou-se ao acampamento perto das ruínas de Efes. Entre as ruínas, o mais improvável dos cafés abria as portas aos turistas e viajantes sem fazer qualquer distinção. No café, dois circunspectos indivíduos receberam os estrangeiros e num gesto de simpatia e boas-vindas ofereceram bebidas e comida para satisfação dos extraviados europeus. Os referidos indivíduos apresentaram-se então como sendo, respectivamente, o Chefe da Polícia e o Presidente da Câmara de Selçuk. Perante a surpresa nos rostos surpreendidos, o Presidente da Câmara informou que tinham deliberado reunir-se no café para evitar serem incomodados pelo desastre da ponte, situação para a qual não tinham a mais ínfima intenção ou ideia de como resolver. Além do mais, mandar a polícia não resolvia rigorosamente nada e apenas contribuía para o aumento da despesa na forma de horas extraordinárias.

Perante a dignidade e disponibilidade das autoridades, perguntou-se se achavam se ainda seria possível viajar e chegar a Izmir – encolheram os ombros, pois que o melhor era deixar as coisas tomarem o seu rumo porque na realidade qualquer dia seria um bom dia para visitar Izmir. Sem muita esperança voltou-se à estrada da ponte no dia seguinte. Como por milagre, havia uma ponte feita de pedras, as viaturas passavam uma a uma nos dois sentidos, os polícias organizavam o tráfego e o Presidente da Câmara reconhecendo os viajantes europeus deu os bons-dias e desejou uma boa viagem até Izmir.

Na fronteira da Grécia, imagina-se o prodígio de uma solução de acordo com o modo da Turquia estar no mundo, um fatalismo que transforma a esperança numa estranha realidade.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico

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