Social essencial

A crise revela uma forma de acção colectiva que sublinha a soberania da comunidade e evita o isolacionismo individual.

A crise não anulou a política. O vírus sobe pelas gravatas e infecta os políticos como se fossem “pessoas normais”. Como “bons selvagens” somos todos iguais, apenas a tentação da “sociedade do espectáculo” nos separa nos desejos e nas ambições. O vírus não é de esquerda nem de direita, não distingue os bairros sociais das colunas sociais, infecta por que é da sua própria natureza infectar, pois da infecção depende a sobrevivência da espécie.

Entre o Liberalismo e o Estatismo, entre a Experiência e a Ciência, o debate perde-se na estatística dos mortos e no corredor das Emergências. Recomendações fúteis para um carnaval defunto é uma falsa teoria do tempo, uma forma de resignação, uma cápsula da indiferença. “O telescópio torna o Mundo mais pequeno; só o microscópio é que consegue torná-lo maior”.

Em tempos de crise global vamos então ao novo carácter social. Neste hinterland entre a crise do vírus e a crise do medo, alguns sociólogos identificam uma nova configuração da dimensão social, aquilo que se designa por “bens comuns”.

Esta ideia de “bens comuns” é uma afirmação do capital social centrado na acção descentralizada e convergente das pessoas, sem vestígios de dominação, mas que permite a difusão de um módico de segurança e de justiça sem a presença formal de um “controle burocrático”. A crise revela assim uma forma de acção colectiva que sublinha a soberania da comunidade e evita o isolacionismo individual. Este novo e espontâneo movimento social não se reclama de Socialista nem de Capitalista, não exclui o Estado nem afasta o Mercado, mas funciona como a explosão de um poder social no qual convergem, em unidade, uma comunidade de iguais que se confronta com uma ameaça ou uma condição comum.

Afinal, mesmo confinados ao espaço exíguo de um apartamento, sozinhos com os nossos medos e as nossas ansiedades, mais a companhia dos nossos fantasmas, esta noção de “bens comuns” tem como efeito inesperado a identificação de um significado, a definição de um propósito e a superior satisfação de, mesmo à distância, podermos contribuir em sintonia para o progresso de todos. É como se em tempos de peste e de isolamento, no pandemónio universal de uma crise de saúde pública, cada um de nós descobrisse um sentido na realidade ao redescobrir a natureza social em nós e nos outros. Assim renasce a solidariedade nos prédios, a identidade nos bairros, a unidade nas cidades, a soberania nos países. Esta cadência em progressão não pode deixar de ser uma ideia política.

Na lógica desta suspensão do tempo normal, o novo carácter social impõe ainda uma certa rectificação no uso da linguagem comum. Quando o Governo fala em “distância social”, o que verdadeiramente está em causa é a imposição de uma “distância física”. Quando o Governo anuncia medidas para a garantia de uma certa “segurança económica”, estas não devem ser confundidas como uma extensão do conceito de “segurança social”.

Em estado de emergência, a rede de protecção económica deve ser de facto garantida pelo Governo, enquanto o sentido da “segurança social” advém deste princípio de acção colectiva solidária e descentralizada que emerge da sociedade. Em tempos de excepção, nunca tantas pessoas isoladas sentiram o nexo invisível da pertença que se liberta da força e da coesão de uma comunidade. O que é relevante é o facto de que a ideia de Comunidade não pode ser observada como o oposto de uma ideia de Estado, pelo contrário, a Comunidade e o Estado são elementos complementares que se reforçam mutuamente. Um país só é de facto um país se for entendido como uma comunidade de destino.

Nada nos garante que este espírito de acção colectiva possa sobreviver à crise Covid-19. O isolamento e a passividade que caracterizam o Capitalismo e o Estatismo mais ortodoxos podem sempre ressurgir na sequência de um Grande Plano de Relançamento Económico. No entanto, na memória das comunidades estes tempos extraordinários ficarão registados como um momento histórico nos percursos individuais e no carácter dos povos. Um activo na lotaria incerta do futuro.

Nunca é cedo para pensar no futuro. A propósito do futuro recordo duas perspectivas distintas.

O economista liberal Milton Friedman afirmava que apenas uma crise produz uma verdadeira mudança, dependendo a direcção das acções do conjunto de ideias inscritas no espírito do tempo.

No estabelecimento das fundações do welfare state, William Beveridge declarava que um momento revolucionário na história do mundo marcava o tempo para uma revolução, não o tempo para remendos e reformas.

Neste momento é ainda prematuro apontar no sentido da Revolução ou eleger o critério da Reforma. No espírito do tempo pressente-se a rotação de uma sociedade que gira e oscila com a força de um ímpeto revolucionário. No espírito do tempo observa-se também a ressonância institucional de uma abordagem radical e reformista.

Na maior ou menor distância ao Rendez-Vous final, o equilíbrio das forças haverá de se resolver no sentido das coisas que nos habituámos a tomar como certas ou na direcção de um novo recomeço com o espírito animado pela coragem da teoria perante a incerteza dos jardins suspensos de uma qualquer Babilónia.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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