Contributos para um manual do bom burocrata

A vida em sociedade era mais fácil sem pessoas, só atrapalham, com a mania de terem vontade própria. E quando se fala de crianças, pior ainda, porque também têm o o péssimo hábito de serem infantis.

Os restaurantes já abrem, as ruas vão tendo pessoas e as praias começam a ficar compostas. É o regresso à normalidade. Mas o período de excepção criado pela pandemia motivou a imposição de regras e restrições a muitas coisas que faziam parte do nosso dia-a-dia e a algumas liberdades tidas como sagradas numa democracia mas que tiveram que ceder temporariamente a objectivos colectivos mais importantes.

A estratégia de confinamento decidida pelas autoridades foi aconselhada pela generalidade dos especialistas e, à luz do que sabemos, foi a melhor das estratégias. Esta é uma das funções mais nobres da ciência, ajudar a sociedade e cada um de nós individualmente a tomar as decisões que melhor defendem a nossa qualidade de vida.

Mas também foi um período de observação muito rico – e continua a ser. Na definição e aplicação do conjunto de acções e de medidas que deram corpo à estratégia vieram à tona os tiques habituais dos vários intervenientes.

Um desses traços é o gosto e a queda para a regulação detalhada, para a fixação excessiva de regras para tudo e mais alguma coisa, para tentar traçar a régua e esquadro o comportamento de pessoas, para definir processos complexos e para exigir as papeladas necessárias mas também as supérfluas.

Esta não é uma doença que ataque apenas a administração pública ou que seja portuguesa. Basta ouvir as críticas generalizadas às regras da Comissão Europeia ou aos sinuosos processos da banca para acesso aos apoios empresariais.

Nesta vertigem burocrática rapidamente se chega ao ridículo, ao injusto e ao incompreensível. E é com base nesses casos mais extremos que aqui fica um contributo necessariamente caricatural para o estudo dessa espécie tão comum, o burocrata.

  1. O bom burocrata é generoso. Se puder fazer 20 regras não fará apenas as duas ou três que são essenciais e suficientes. Porque o bom burocrata gosta de prever toda e qualquer eventualidade para não dar espaço a improvisos que são como as massagens nas praias algarvias: sabe-se como começam nas nunca se sabe como acabam. Por isso, se tiver imaginação para definir 80 regras para frequência das praias é isso mesmo que o bom burocrata faz.
  2. O bom burocrata é amigo. Ele sabe muito melhor do que cada um o que é melhor para nós. Esta é uma prática antiga e enraizada na cultura portuguesa. Conta-se que Salazar, quando recebia ministros para despacho durante o Inverno, os aconselhava a imitá-lo, cobrindo as pernas com uma manta. Perante a recusa do ministro, justificando que estava confortável assim, muito obrigado, o ditador insistia: “Ponha, ponha que o frio vem depois”. E eles lá punham, incapazes de discernir o que era mais confortável para si.
  3. O bom burocrata não se atrapalha com a realidade porque é ele que faz a realidade. Esta coisa da vida em sociedade era muito mais fácil sem pessoas. As pessoas só atrapalham, como todos sabemos, com a mania de terem vontade própria. E quando se fala de crianças, pior ainda, porque além de irresponsáveis também têm o péssimo hábito de serem infantis. Daí ser preciso definir directrizes muito bem definidas, ao centímetro. No regresso às creches os miúdos não devem aproximar-se uns dos outros a menos de 2 metros. Vá lá, uma cedência, a 1 metro e 50 centímetros. E nada de partilhar brinquedos. É impossível de cumprir? A realidade é que está mal porque a medida é perfeita. Que se mude a realidade.
  4. O bom burocrata acredita que é a boa burocracia que mata a fraude. Quanto mais papéis, menos golpadas. Por isso, o sistema financeiro pede mais e mais documentos para afastar os chicos-espertos que querem dar calotes no acesso aos apoios. É pelo nosso zelo burocrático que nunca tivemos falências nem casos de polícia que obrigaram ao resgate de bancos. Nenhum potencial criminoso resiste ao pedido de sete certidões e cinco declarações para levantar um crédito bancário de milhões para um projecto duvidoso que não tenciona pagar. Sobretudo se for bem relacionado na elite económica e política.
  5. Para o bom burocrata as regras são o princípio e o fim de tudo. Não são as regras que servem uma função, são as funções que servem as regras. Precisávamos urgentemente de reforçar o pessoal clínico? Sim. Havia alguns disponíveis? Havia, vieram da Venezuela e vivem em Portugal. Mas têm um problema insanável: não têm a papelada em dia. Entre o reforço dos cuidados clínicos e a via-sacra burocrática é óbvio que este último valor é muito mais importante.
  6. O bom burocrata não abdica das prioridades certas: primeiro estão os processos e só depois devem realizar-se funções menores. Só por manifesta má vontade se pode criticar isto: “A informação sobre um doente com suspeita de Covid-19 que entre num hospital pode passar por tantos programas informáticos quantos os passos que tiverem de ser dados no processo: registo clínico na urgência (Alert), resultados de testes (Clinidata), outros exames (jOne), registo de internamento (SClinico), prescrições de medicamentos (Glintt), monitorização depois da alta (Trace-Covid e SClinico), prescrições de medicamentos em ambulatório (PEM), registo epidemiológico (SINAVE – Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica) e óbito (SICO – Sistema de Informação dos Certificados de Óbito).” A isto chama-se segurança nos processos, meus senhores. É como os sites que pedem a repetição da password, não vá a pessoa estar a aldrabar ou a enganar-se. Depois disto, tendo tempo, os médicos então podem dedicar-se a cuidar dos doentes com a tranquilidade de quem já cumpriu o seu principal dever.
  7. O bom burocrata acha uma perda de tempo explicar as medidas inexplicáveis ou contraditórias. E não tem dúvidas: quem as critica é um perigoso anarquista. Posso entrar no mar para fazer surf? Posso. Mas posso entrar para nadar? Não. Posso estar na praia a pescar? Posso. E posso estar sozinho, sentado na areia a olhar para o mar? Não. Cumprindo as regras de distanciamento social posso andar na rua? Posso. E cumprindo as mesmas regras de distanciamento social posso estar na praia deitado a ler? Não. E a polícia, zelosa, lá vai pela areia aconselhar pessoas sozinhas e devidamente distanciadas que não podem estar ali. Perante estes casos o cidadão exemplar só tem uma coisa a fazer: cumprir sem questionar ou protestar.
  8. O bom burocrata protege qualquer dado na sua posse como se fosse o código de acesso ao ouro do Banco de Portugal. É ele o dono e guardião dos dados e informações de que a administração pública dispõe e terão que o vencer se quiserem ter acesso a esses dados. E se é assim é porque nunca se sabe o que a comunidade de académicos, cientistas ou investigadores é capaz de fazer com um computador e uma bases de dados. Esta gente é perigosa e como não tem sensibilidade para o verdadeiro interesse nacional pode revelar ao país verdades que este não está preparado para ouvir. Ou, pior ainda, concluir que o que a administração estava a fazer ou a dizer era errado à luz dos dados. Por isso, o bom burocrata faz tudo para defender o interesse nacional negando, atrasando e depois dificultando o acesso a dados.
  9. O bom burocrata adora agradar ao chefe porque a hierarquia é a primeira de todas as regras. A hierarquia funcional é um pilar fundamental da ordem das coisas. E se há coisa que o bom burocrata sabe antes de tudo é cada detalhe do processo ao longo da hierarquia. Nunca lhe escapam cada parecer, despacho ou ordem de serviço por quem de direito porque ele sabe ser fiel às chefias. Por isso, o bom burocrata encontrará sempre uma forma de adaptar as regras ou as sua aplicação às vontades superiores que têm uma visão mais larga do interesse nacional. As regras impedem as pessoas de sair do seu concelho de residência ou de juntarem em espaços públicos. Mas é preciso “dar um jeitinho” para permitir eventos políticos com centenas de pessoas ou que se deslocam de outros concelhos, como aconteceu no 1º de Maio? O bom burocrata arranjará forma se o fazer. E, pasme-se, dentro das regras. Porque no fundo, no fundo, o bom burocrata também sabe ser flexível.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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