“Clubes têm vivido acima das possibilidades”. Efeitos da crise são imprevisíveis, diz Joaquim Evangelista

Presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol critica clubes por recorrerem ao lay-off, tendo denunciado ilegalidades à ACT. Alerta para a situação dos clubes de escalões inferiores.

A pandemia praticamente parou o país, mas parou mesmo o futebol. A Liga Nos foi suspensa por mais de dois meses e os escalões inferiores foram obrigados a cancelar as suas competições, como foi o caso da Liga Pro (II Liga) ou o Campeonato de Portugal (III Liga).

Com a paragem das competições, a grande maioria das receitas dos clubes desapareceram e, como consequência, muitos sentiram a necessidade de socorrer ao regime de lay-off, uma medida criada pelo Governo para auxiliar as empresas em tempos de pandemia.

Em entrevista ao ECO, Joaquim Evangelista, Presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais (SJPF), critica a utilização do lay-off por parte dos clubes de futebol, especialmente, quando estes já tinham recebido apoios tanto da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) como pela Liga de Clubes. “Recorrer ao lay-off já depois de FPF e Liga desbloquearem os apoios financeiros foi uma situação de abuso de direito“, refere.

Na sua perspetiva, esta situação extraordinária provocada pelo vírus, veio mostrar que há clubes desportivos que “têm vivido acima das possibilidades e sem um modelo de governação sustentável”.

Neste sentido, o responsável pela SJPF acredita que no futuro será necessário “pensar a modernização e adaptação do futebol à nova realidade e os desafios a curto e médio prazo”.

SJPF

De que forma o coronavírus irá afetar o futebol a longo prazo?

Os efeitos desta crise são imprevisíveis. A reação natural do setor deveria ser de reajustamento, isto é, garantir um modelo de negócio sustentável e um quadro competitivo equilibrado. Mais do que nunca, a transparência e a boa governação serão essenciais, assim como a atividade do regulador na imposição de regras de fair-play financeiro e novos mecanismos de redistribuição de receita e solidariedade entre clubes. Infelizmente, creio que isso não vai acontecer tão rapidamente. Vamos ter um impacto a curto prazo, um “mercado de transferências” com menos movimentação, fruto da menor capacidade de investimento dos clubes, um aumento dos clubes em situação de incumprimento das suas obrigações. É preciso pensar a modernização e adaptação do futebol à nova realidade e os desafios a curto e médio prazo.

Sempre houve uma grande divisão entre clubes ricos e pobres na Liga. Com a pandemia, essa diferença ficou ainda mais vincada?

As assimetrias são evidentes, “ricos e pobres”, “litoral e interior”, “norte e sul”. A Federação e a Liga têm um papel fundamental, quer na definição de modelos para o desenvolvimento do futebol português, quer na definição dos quadros competitivos e nos critérios de redistribuição de receitas e mecanismos de solidariedade. A questão central dos próximos anos vai ser o modelo de sustentabilidade do futebol nacional, sem dúvida.

É possível que num futuro próximo exista cada vez mais casos de jogadores com salários em atraso?

É verdade que podem aumentar os casos de incumprimento, mas, reitero, o licenciamento e o controlo financeiro são o que nos permite fazer a diferença. Veja-se, a título de exemplo, os mecanismos implementados nas competições profissionais e em particular a passagem do ónus da prova sobre o cumprimento das obrigações salariais dos jogadores para os clubes, tornando mais eficaz e objetiva a fiscalização. Se conseguirmos implementar um modelo semelhante nas divisões inferiores criaremos condições para mitigar o problema.

Neste momento, temos conhecimento de situações de lay-off que não estão a respeitar os requisitos legais. Já as denunciámos à ACT.

Joaquim Evangelista

Presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol

E, durante esta pandemia, tem já conhecimento de casos de incumprimento salarial?

Este é um momento atípico. Houve vários clubes a recorrer ao lay-off e acordos de redução salarial. Temos conhecimento de situações de lay-off que não estão a respeitar os requisitos legais e já as denunciámos à ACT, os acordos de redução, com mais ou menos dificuldade, têm sido cumpridos. Os casos de incumprimento salarial que existiam no último controlo financeiro da Liga foram, entretanto, regularizados. Foi pública a situação da CD Aves SAD como a mais complicada no principal escalão. No Campeonato de Portugal a situação é mais grave, como consequência do cancelamento da competição e está a ser acompanhada pela FPF e pelo sindicato.

Mesmo antes da paragem do campeonato, o Aves tinha já três meses de salários em atraso. Como está a situação do plantel atualmente?

A situação de incumprimento da CD Aves SAD era anterior à crise do Covid-19, mas agravou-se com a suspensão da competição. O plantel principal recebeu salários que deveriam ter sido cumpridos antes do controlo financeiro de março muito tempo depois. Temos estado atentos e especialmente preocupados com o comportamento da administração do clube para com a sua equipa de Sub-23. Muitos jogadores que eram “falsos amadores”, ou seja, viviam desta atividade, receberam desde dezembro de 2019 apenas um mês, através do fundo de garantia salarial. É uma situação vergonhosa e abusiva.

Tendo a Liga Nos 18 clubes, qual é a sua opinião sobre o facto de apenas os três grandes terem sido chamados a reunir com o primeiro-ministro para decidir o futuro imediato do campeonato?

Se a ideia era dar um sinal de concertação social, o primeiro-ministro falhou nesse objetivo. Nesse caso, além da FPF e Liga devia ter estado presente o Sindicato dos Jogadores, a ANTF e a APAF que representam os demais intervenientes. Se o sinal que se quis dar foi de que o momento singular e dramático que vivemos determinou a união atípica dos “três grandes” do futebol português, pondo de lado as divergências habituais, poderá compreender-se. De todo o modo, a presença da FPF assegurou a representação de todos os agentes desportivos e mais importante do que estar neste tipo de reunião é fazer o trabalho nos órgãos próprios, essa é a verdadeira garantia de reconhecimento dos contributos de cada um.

O campeonato regressa hoje, mas levantaram-se muitas vozes críticas em relação a esta medida, nomeadamente de jogadores. Na sua ótica, o futebol nacional deve retomar?

Nunca tivemos dúvidas sobre isso, atento ao que estava em causa. O que se exigia a nível nacional e internacional era a validação das condições de segurança por parte das autoridades de saúde pública, ou seja, no nosso caso, o protocolo de retoma da competição que a DGS acabou por validar para a Liga Nos. Tivemos o cuidado de promover uma reunião entre os capitães de equipa e representantes do grupo de trabalho técnico constituído pela FPF, para tranquilizar os jogadores. Continuam a existir manifestações de reserva, mas não tenho dúvidas de que a esmagadora maioria dos jogadores sente que existem condições para retomar.

Tivemos, felizmente, o “laboratório” alemão para poder perceber o melhor caminho a seguir e ajustar as medidas à realidade que enfrentamos.

Joaquim Evangelista

Presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol

Apesar das recomendações da DGS, o futebol continua a ser um desporto de contacto. Sente que os jogadores estão preparados para voltar aos relvados?

Sinto que estão, enquanto membro do Board Europa da FIFPro tenho acompanhado o que se passa noutros países. Os maiores problemas estão a verificar-se nos países em que os governos bloquearam a retoma das competições, com jogadores a passarem por graves problemas económicos, face ao incumprimento dos seus contratos. Tivemos, felizmente, o “laboratório” alemão para poder perceber o melhor caminho a seguir e ajustar as medidas à realidade que enfrentamos.

Com o regresso aos treinos, diversos clubes detetaram casos positivos de Covid-19 nos plantéis. Com isto, será seguro para os atletas voltarem a jogar?

Esta matéria está regulada no protocolo da DGS, que é acompanhado por FPF, Liga e departamentos clínicos dos clubes. Não me compete a mim emitir opinião, o importante é criar um clima de confiança, o protocolo garante essa segurança.

A Liga Nos é o único escalão que vai competir, não considera uma medida discriminatória para os restantes clubes de divisões inferiores?

Sim, é indiscutivelmente discriminatória, principalmente em relação à II Liga. Sempre acreditámos que as medidas definidas para a I Liga poderiam ser asseguradas também para a II Liga, igualmente profissional, mas não foi essa a decisão e entendimento do governo e das autoridades de saúde, o que lamentamos. Compreendemos a insatisfação dos clubes da II Liga e no que diz respeito aos jogadores, ficar sem competir tanto tempo e com incerteza de saber quando se pode voltar a jogar, exige um plano de apoio e acompanhamento no qual estamos já a trabalhar.

O facto das restantes divisões terem sido dadas como terminadas não irá colocar equipas e atletas dos escalões inferiores em situações ainda mais fragilizadas do que estavam antes, como é o caso do Campeonato de Portugal?

Sim, é indiscutível. A decisão deixou clubes e jogadores do Campeonato de Portugal em situação de grande fragilidade. É fundamental garantir apoios financeiros e, paralelamente, aproveitar a oportunidade para fazer uma reforma estrutural ao nível do licenciamento e de condições de participação na competição. O Campeonato de Portugal não pode ser porta de entrada para o que de pior acontece no futebol português: incumprimento salarial, vínculos precários, tráfico de seres humano e auxílio à imigração ilegal, “lavagem” de dinheiro, entre outros.

Muitos [clubes] têm vivido acima das possibilidades e sem um modelo de governação sustentável.

Joaquim Evangelista

Presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol

Acredita que os apoios que vão ser disponibilizados pela FPF (1 milhão de euros) e a Liga de Clubes (1 milhão e 500 mil euros) aos emblemas da Liga Pro são suficientes para manter a estabilidade financeira destes clubes?

Obviamente que não. Definitivamente os clubes vão ter de se reajustar à nova realidade económica do país. Muitos têm vivido acima das possibilidades e sem um modelo de governação sustentável. Reforço: o regulador terá um papel fundamental através do modelo de licenciamento e fair-play financeiro que conseguir implementar.

Qual a sua opinião sobre o pacto que os clubes da Liga Nos fizeram para não contratarem jogadores que rescindam durante a pandemia?

A nossa opinião, reforçada na última semana pela Autoridade da Concorrência, é a de que este tipo de “pacto” não tem qualquer validade jurídica. Além disso, deteriora a negociação coletiva. A promoção do diálogo social deve ser a regra, para de forma concertada encontrar soluções que dignifiquem o futebol português. A ideia de que um acordo de cavalheiros pode substituir-se desta forma à lei é uma falácia.

Não coloca em causa os direitos fundamentais de um jogador profissional?

Absolutamente. É ilegal e inconstitucional por afetar a liberdade de trabalho dos jogadores, disso não tenho a mínima dúvida. No passado os clubes já utilizaram este procedimento para outros temas, sem quaisquer resultados, e não percebo como continuam a insistir na estratégia.

Para terminar, há algo que gostaria de ver alterado no futebol?

Não só gostaríamos de ver reformas estruturais, como temos dado os nossos contributos para que elas aconteçam. A autonomia do movimento associativo, o pluralismo, ou seja, a construção de uma verdadeira democracia no futebol português e uma visão a médio e longo prazo, é fundamental. A governação e a compliance, a defesa da integridade das competições, a qualificação dos recursos humanos, a correção das assimetrias entre clubes e do desequilíbrio competitivo, os mecanismos de solidariedade, são objetivos que mais do que nunca gostaria de ver assumidos por todos.

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