Os passivos contingentes

A despesa pública vai disparar para mais de 50% do PIB, a dívida pública vai saltar para 135% do PIB, ou mais. É agora, mais do que nunca, que se exige critério e capacidade de julgamento.

Há dias, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), que assessora a Assembleia da República (AR) em matérias orçamentais, colocou o dedo na ferida: Os passivos contingentes do Estado vão disparar e, a prazo, poderão constituir um encargo para os contribuintes.

A UTAO referia-se em particular às garantias estatais subjacentes às linhas de crédito, operadas pela banca, e aos seguros de crédito, geridos pelas seguradoras. Em conjunto, estão em causa 15 mil milhões de euros, que equivalem a 7,5% do PIB. Os peritos da AR referiam mais: Segundo estimativas do próprio Banco Central Europeu, as perdas em Portugal associadas às garantias públicas poderiam atingir 10% do total, ou seja, 1500 milhões de euros.

O alerta da UTAO é importante. Tem a virtude de sinalizar e quantificar riscos em sede de Orçamento do Estado que, a exemplo do que sucede nas empresas do sector privado, deveria até envolver o estabelecimento de uma provisão ou uma espécie de imparidade às contas públicas. Ora, no caso em concreto, as perdas antecipadas pelo BCE (1500 milhões de euros) representarão um custo adicional de 300 euros por cada trabalhador em idade activa. Não sendo uma fortuna, também não é negligenciável em face do salário médio em Portugal. A responsabilidade dos técnicos e dos políticos é, portanto, dupla. Por um lado, trata-se de conferir maior transparência às contas públicas. Por outro lado, trata-se também de o comunicar de forma objectiva aos contribuintes.

A ideia de criar uma estrutura interna na AR que acompanhasse a evolução dos passivos contingentes, proposta também avançada pela UTAO, parece-me especialmente avisada. É avisada pelos motivos já expostos, mas não só. É que o perímetro dos passivos contingentes, identificados pela UTAO, tenderá a aumentar nos próximos anos, à medida que o Estado for aumentando a sua intervenção na economia privada. Como é sabido, as pressões no sentido de um Estado mais interventivo, não só em Portugal, mas também no resto da Europa, são grandes e a tentação política, de fazer prevalecer a política sobre o mercado – velho fetiche “dos socialistas de todos os partidos”, na célebre expressão de Hayek –, não será menor.

À tentação do poder político em aumentar o peso do Estado, acrescerá ainda um outro elemento que reforça a necessidade de aumentar o escrutínio orçamental. Trata-se, neste caso, da evolução orçamental em Portugal nos últimos anos, designadamente a evolução das diferentes componentes da despesa pública, relativamente às quais se tem observado um enorme crescimento percentual da despesa de capital (por oposição a um crescimento percentualmente menor da despesa corrente). Neste domínio, entre 2015 e 2020, a proposta de Orçamento do Estado para despesa de capital cresceu de cerca de 5.000 milhões de euros na proposta de 2015 para mais de 8.300 milhões na recente alteração ao Orçamento do Estado para 2020.

A despesa de capital compreende a formação bruta de capital fixo (vulgo, investimento público) e outras despesas de capital. Estas últimas incluem as transferências de capital que o Estado faz em benefício de entidades terceiras. Entre 2015 e 2020, o peso das “outras despesas de capital” na despesa total de capital passou de 13% para 41% do total. Este crescimento inclui a recente proposta de alteração ao Orçamento do Estado, na qual a linha de “outras despesas de capital” cresceu de 2.100 milhões de euros na proposta original para cerca de 3.400 milhões na proposta alterada. Na diferença de 1.300 milhões encontra-se o capital a transferir para a TAP, em condições que se desconhecem e que pelo andar da carruagem ainda serão apresentadas ao Parlamento como facto consumado.

No caso específico da TAP, não há entidade independente a quem a AR possa solicitar opinião terceira. Os representantes do Governo nas relações com a companhia, o seu “chairman” e, mais recentemente, o negociador-agora-nomeado-secretário-de-Estado, estão comprometidos com a ideia de inevitabilidade do resgaste. Independentemente do brio profissional de ambos, nem Miguel Frasquilho nem João Nuno Mendes estão em condições de serem ouvidos na AR em situação de efectiva independência. É, por esta razão, apenas para apontar um exemplo, que os alertas da UTAO são oportunos, justificados, e mais ainda pelo facto de o perímetro dos passivos contingentes ser superior àquele que foi apresentado pela própria UTAO.

A experiência de resolução do Novo Banco deveria fazer-nos reflectir relativamente aos resgates empresariais que se avizinham, para se evitarem erros do passado.

  • Primeiro, tem de existir escrutínio a priori sobre os contratos de resgate empresarial e estes devem ser votadas na AR. Seria impensável que contratos desta envergadura financeira continuassem a ser desconhecidos da AR (como aconteceu e, ao que parece, continua a acontecer no caso do NB).
  • Segundo, tem de existir na AR uma equipa de peritos, a quem se apliquem regras de conflitos de interesse, que possam opinar tecnicamente, em tempo útil e de forma inteligível ao não-especialista, em benefício do escrutínio parlamentar.
  • Terceiro, tem de haver acompanhamento regular, quer técnico quer político, dos contratos assinados entre o Estado e as empresas beneficiárias, sejam estas públicas, semi-públicas ou privadas.

A promessa de dinheiro europeu não pode servir de desculpa para o relaxamento orçamental. Já vimos isso no passado e sabemos como terminou. De igual modo, o registo de passivos contingentes, independentemente da sua natureza formal – uma responsabilidade do Estado, logo, dos contribuintes, que deriva da ocorrência de um acontecimento que pode ou não ocorrer – também não poderá servir de desculpa para uma menor transparência orçamental nem para a imprudência na apresentação e gestão das contas públicas.

A despesa pública vai disparar este ano para mais de 50% do PIB. A dívida pública vai saltar para 135% do PIB, ou mais. É agora, mais do que nunca, que se exige critério e capacidade de julgamento. Do Governo e, sobretudo, da AR. Neste sentido, o tempo parlamentar, que por norma é mais lento, poderá ser bom conselheiro. Assumindo, é claro, que existem conselheiros técnicos para assuntos políticos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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