Só pode ser voluntária
Acompanho a StayAway desde maio. E quando António Costa propôs tornar a app obrigatória, estranhei de imediato: facilmente esbarraria no Parlamento, para além de ser impossível de implementar.
Na semana passada, quando António Costa anunciou o envio ao Parlamento de uma proposta de lei com regras mais apertadas contra a Covid-19, um aspeto saltou de imediato à vista: o primeiro-ministro queria tornar a aplicação StayAway obrigatória em algumas circunstâncias.
O assunto mereceu estranheza de imediato. Para além de autoritária, a medida é impossível de implementar.
Acompanho esta aplicação desde o início de maio, altura em que publicámos um primeiro trabalho sobre o tema. Ao longo dos meses, mantive contacto próximo com o INESC TEC, escrutinando cada aspeto do seu desenvolvimento. Coloquei questões, das mais simples às mais complexas. Pressionei pela publicação do código-fonte, como era prometido no site do projeto. E confrontei o primeiro-ministro quando ainda nem se sabia se o Governo era ou não fã desta solução.
Fui um dos primeiros portugueses a ter o aplicativo no telemóvel. Estávamos em julho, meses antes do lançamento ao público da StayAway.
Mais tarde, entrevistámos Rui Oliveira, administrador do instituto promotor da aplicação. Foi no ECO que os portugueses souberam que a criação da app custou perto de 400 mil euros. Ou que nunca poderia chegar a toda a a população, por razões evidentes de exclusão tecnológica, estando fixada uma meta de 6,5 milhões de pessoas.
Desde cedo na pandemia que percebemos que a app, avançando, seria um ponto relevante neste percurso de pandemia, tão atípico e incomum. Mas nunca me passou pela cabeça que seria proposto torná-la obrigatória. Por isso, quando António Costa revelou a intenção de obrigar a instalação da StayAway em alguns contextos, a primeira coisa que fizemos foi confrontar o INESC TEC sobre se sabia ou não sabia desta intenção do Governo. Não sabia. E, pela resposta, não parecia estar contente.
Confrontámos também a Comissão Nacional de Proteção de Dados, entidade que tem mais trabalho do que as mãos disponíveis e nem sempre responde aos pedidos da comunicação social. Em poucas horas, o organismo confirmou aquilo que já sabíamos: tornar a aplicação obrigatória violaria todas as orientações europeias e levantaria “graves questões” sobre a privacidade dos cidadãos. Em suma, seria ilegal e colocaria Portugal numa lista de países como Índia e China.
Declarei em maio o meu apoio às aplicações de contact tracing sobre a premissa de serem voluntárias, usarem apenas o Bluetooth (nunca o GPS) e de servirem somente o propósito de gerar, emitir e registar a minha proximidade com outros telemóveis. Porém, a intenção de António Costa não me preocupou totalmente. Sabia, como foi inclusivamente dito depois pelo líder de uma das empresas que programou a aplicação, que tornar a StayAway obrigatória é pura e simplesmente impossível. E não apenas do ponto de vista técnico.
Rapidamente ficou claro que a ideia do Governo não reunia consenso político e facilmente esbarraria no Parlamento. Costa também sabia isso, daí ter suspendido a discussão da proposta (se será ressuscitada entretanto, é uma incógnita). Teve, no entanto, o mérito de dar a app a conhecer à generalidade da população, catapultando os downloads acima da fasquia dos dois milhões.
Claro que nem tudo é positivo. O movimento espoletado pelo primeiro-ministro gerou apreensão em muitos portugueses. E o aumento do escrutínio pôs a descoberto que poucas centenas de pessoas se marcam como infetadas na aplicação, comprometendo uma maior eficácia. Ou que, mesmo as que o pretendem fazer, enfrentam severas dificuldades para obter o código que lhes dá acesso a essa funcionalidade.
As próximas semanas deverão ser de formação dos médicos e de aposta na melhoria de todo este processo de reporte, para permitir que quem quer usar a app, o pode fazer livremente. Sem barreiras e com consciência. Se salvar uma vida que seja, já tudo isto valeu a pena.
Como aqui escreveu Pedro Sousa Carvalho, descarregar a app é um “gesto de solidariedade”. E a solidariedade só funciona bem quando é espontânea e genuína. Enfim, quando é voluntária. E nunca coagida.
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