Onde está Wally?

Há inúmeras análises já produzidas sobre o Plano de Recuperação e Resiliência. Quero concentrar-me em dois aspectos que pretendem responder a uma pergunta: A que país se vai aplica este plano?

Depois do esquisso de Outubro, o Governo apresentou a versão mais recente do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – que está há dias em consulta pública – e prepara-se agora para o confirmar em Bruxelas. Do ano passado para este, o documento, que já era excessivamente parecido com uma “lista de compras”, piorou.

É muito provável que Bruxelas insista que são necessárias “reformas” mas que, no fim do dia, deixe passar, o nosso e outros, sem grandes ilusões quanto à escassa vontade reformadora do programa. Já foi muito difícil chegar ao consenso de Julho passado e a tendência é para que cada qual “aproveite” a oportunidade que não se repetirá (e depois não se queixe). Aliás, um dos problemas metodológicos da iniciativa é o timing de avaliação dos danos económicos e sociais da pandemia. O calendário não teve em conta nem a segunda nem a terceira vagas. Para países como Portugal, esse dado – quase inalterável: não se pode reabrir eternamente debate sobre o programa -, não é favorável.

Em todo o caso, sobre Bruxelas, convém ter presente três factores. Um, a chegada de Draghi ao governo de Itália, com elevada reputação externa. Draghi poderá ainda tentar melhorar o plano italiano, num sentido menos assistencialista e mais competitivo. Outro factor é o peso que hoje em dia podem ter, na política europeia, os contextos internos. Haverá várias eleições nos chamados países frugais durante a negociação e execução destes planos; se os Estados do Sul quiserem, sem grandes artes, disfarçar despesa corrente sob a epígrafe de “reformas”, não é de excluir polémica – e com Espanha, isso já foi evidente. Por fim, alguns dos mais astutos em Bruxelas sabem que o prazo de execução é muito curto, e estão convencidos que uma parte dos fundos vai esbarrar na lentidão das burocracias nacionais e ficarão por aplicar. Isso seria, mais ainda no nosso caso, perdulário.

Há inúmeras análises já produzidas, no plano político, económico e técnico, sobre a última versão do PRR. Pela minha parte, quero concentrar-me em dois aspectos, relacionados entre si, que pretendem responder com maior claridade a uma pergunta: A que país se vai aplicar o PRR?

Desde o início, a crítica de que o sector privado é, manifestamente, o parente pobre do plano, fez o seu caminho, e para o ter feito é porque há evidência suficiente que sedimenta essa ideia, nas opções e nos números. Convém esclarecer que o plano é apresentado com muitas zonas híbridas, que uns podem alocar ao sector público e outros, mediatamente, podem achar que acabarão ser repartidos com o sector privado. Também convém evitar uma análise sectária, alguns pilares de investimento público seriam sempre necessários, atendendo aos défices competitivos que Portugal tem nas infraestruturas e na logística, ou ainda na conectividade e digitalização. Uma ironia deste PRR, aliás, é dar razão aos que, ano após ano, foram notando que a retórica socialista sobre investimento público não tinha coerência com os factos orçamentais, as taxas de execução ou as cativações. Nesse sentido, o PRR visa mais rever o passado do que assentar bases saudáveis para o futuro.

Dito isto, várias leituras do texto permitem chegar a uma conclusão severa e melancólica sobre o seu destino: O Estado vai apropriar-se de uma considerável e maioritária parcela dos fundos em causa. Uma análise das palavras do texto – menos frequente, mas elucidativa -, revela sem apelo nem recurso o que está na cabeça do primeiro-ministro e do Governo. Hoje em dia, isso é fácil de fazer, e os resultados induzem a essência de uma vontade política, umas vezes consciente, outras inconsciente: o PRR será mais usado para benefício do sector público, consome a maior parte dos recursos no sector público, discrimina o sector privado e é escasso e minguado para as empresas.

São precisamente as palavras, as palavras que lá estão e as palavras que lá não estão, entre as 51 mil do plano, que são reveladoras: muito Estado, pouca economia. Olhemos para a questão com quatro prismas:

  • As palavras desaparecidas do plano;
  • As palavras esquecidas no plano;
  • As palavras que mostram os contrastes do plano;
  • E as palavras que definem os limites do plano.

Entre as desaparecidas, espantosamente figuram a hotelaria e a restauração. Nas suas 143 páginas, não surgem nem por uma tímida vez. É muitíssimo surpreendente que um plano que tem um R de Resiliência, num país onde a hotelaria e a restauração foram (ainda são) fustigadas pela pandemia até mais que outros sectores, não as mencione. Também deixou de mencionar de forma relevante a cultura e as indústrias culturais geradoras de economia, que estão há quase um ano fechadas.

Estes desprezos casam bem com as palavras esquecidas do plano: o turismo e as exportações, mencionados apenas cinco e seis vezes, respectivamente, e não raro no meio de outras referências. Esta espantosa visão do que é a economia real, por um lado, e do que pode contribuir para uma economia mais dinâmica e internacional, por outro, tem, por fim, uma consequência orgânica. São os limites do plano, na sua governança.

Na verdade, o IAPMEI é referido quatro vezes, e a AICEP nenhuma (friso bem: nenhuma). Pela leitura, parece provável – veremos a versão final – que a agência que em Portugal tem mais experiência e capacidade na promoção das exportações e na atração de investimentos, fique de fora da gestão destes fundos. O erro não é o IAPMEI estar, é a AICEP não estar. Significa que as exportações não são um target deste PRR. Por sua vez, fica claro o preconceito habitual contra as chamadas “grandes empresas” (acima de 250 trabalhadores, uma empresa já é grande), responsáveis por boa parte do emprego, da inovação e da internacionalização. Essa exclusão (excepto pelo caminho das “alianças”), será um fator negativo no comparador com outros países, menos complexados e ideologicamente marcados.

No ângulo dos contrastes, é igualmente esclarecedor o texto do PRR. A expressão “Administração Pública” vem referida 55 vezes; a expressão “sector privado” vem mencionada duas vezes. O “investimento público” aparece o dobro das vezes do “investimento privado”. A palavra “planeamento” surge 17 vezes, ao passo que a expressão “valor acrescentado” consta sete vezes apenas. Não é preciso dizer muito mais: o PRR é basicamente para a economia do Governo e do Estado, não foi pensado nem dirigido para a economia prática ou o país real.

Há, até, uma ironia particularmente infeliz em tudo isto. O PRR nasce para mitigar, reparar ou recuperar a queda económica que resulta da pandemia. Ora, no ano passado, o PIB caiu 15.483ME. O valor total previsto na bazuca de Portugal é quase simétrico: 16.643ME. O detalhe é que grande parte das perdas de 2020 aconteceram no sector privado, enquanto grande parte dos “ganhos” do PRR são destinados ao sector público. Justo? Não. Pandémico? Não. Racional? Não. É apenas a insustentável leveza da ideologia.

É evidente que a questão não pode ser vista exclusivamente a metro, mas a realidade desta contagem bate certinha e é mesmo o espelho de um facto incontornável: cerca de 67% dos fundos da bazuca “residem” no Estado e tão só 33% incentivam as empresas. É, seguramente, uma distribuição muito desigual, com consequências e ineficiências.

Se a economia do plano é esta, é bom ter presente o que é a economia portuguesa na realidade. Podemos usar, entre muitos outros, cinco critérios.

  • Quem cria postos de trabalho;
  • Quem investe;
  • Quem traz valor acrescentado;
  • O peso dos incentivos empresariais versus IRC pago;
  • O valor da bazuca face ao PIB perdido em 2020.

Se a conclusão literária já era sombria, a numérica é quase uma ofensa à realidade.

Em primeiro lugar, os postos de trabalho. As empresas privadas portuguesas garantem cerca de 86% dos empregos, contra 14% no sector público (os valores são de 2019: é possível que em 2020 o sector público, que vem crescendo, suba um pouco).

Em segundo lugar, o sector privado representa 15,7% do PIB em investimento, o que confronta com 2,5% do sector público. Sendo o investimento determinante para a criação de riqueza e a inovação, é inexplicável (racionalmente) que quem arrisca e investe 6 vezes mais do que o Estado seja colocado em posição secundária no PRR.

Em terceiro lugar, é de notar o que acontece com o valor acrescentado para a economia, medido em termos brutos: o sector privado encarrega-se de 85% desse valor acrescentado, ficando o contributo das Administrações com os remanescentes 15%.

Em quarto lugar, comparemos ainda o valor dos incentivos às empresas versus os impostos pagos pelas empresas e concluímos que o total das verbas de incentivos, no PRR, soma 4600ME, enquanto o IRC, pago pelas empresas ao Estado, num só ano, ascende a 6317ME.

E finalmente em quinto lugar, há, até, uma ironia particularmente infeliz em tudo isto. O PRR nasce para mitigar, reparar ou recuperar a queda económica que resulta da pandemia. Ora, no ano passado, o PIB caiu 15.483ME. O valor total previsto na bazuca de Portugal é quase simétrico: 16.643ME. O detalhe é que grande parte das perdas de 2020 aconteceram no sector privado, enquanto grande parte dos “ganhos” do PRR são destinados ao sector público. Justo? Não. Pandémico? Não. Racional? Não. É apenas a insustentável leveza da ideologia.

Com uma leitura tão distorcida da realidade económica, poderiam fazer-se perguntas relativamente simples:

  1. Onde está o Ministro da Economia? Apesar de ter melhor percepção e relação com as empresas, não fez o plano original (António Costa e Silva) e agora, manifestamente, não é credível pensar que seja o autor principal desta versão governamental;
  2. Enquanto País, quanto perdemos do que podíamos ganhar? Face ao que o plano poderia ser, mas não será, mais importante do que avaliar o seu efeito económico no PIB seria compará-lo com o efeito – certamente mais eficiente, robusto e durável -que um plano mais confiante no sector privado poderia ter;
  3. Os preconceitos têm consequências: O estatismo proeminente deste PRR é a causa de não conter metas escrutináveis, milestones avaliáveis e objetivos comparáveis?
  4. Qual é a parcela do PRR que, verdadeiramente, constitui mais despesa permanente futura? A pergunta é pertinente porque há bocados inteiros do PRR que se assemelham a despesa de funcionamento nova, embora dissimulada sob a epígrafe de “reformas”;
  5. Se uma fatia do PRR deveria servir para digitalizar a Administração Pública, qual é o resultado esse esforço, em termos de poupança de processos, redução de burocracia e racionalização de recursos humanos que se tornam excedentários? Se este apuramento não for feito, estaremos a falar mais de um upgrade informático do que de uma digitalização de funções e processos.

O próprio António Costa e Silva notou recentemente a ausência de uma avaliação custo-benefício nesta versão final do plano. Isso, não dizendo tudo, já diz muito. Como diriam os franceses, “chassez le naturel, il revient au galop”…

O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

Nota: A opinião de Paulo Portas é publicada com base no comentário semanal no Jornal das Oito da TVI, ao domingo.

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