Cara de Parede, Coração de Pedreiro

  • David Tomé
  • 24 Maio 2021

Acredito que o sistema financeiro pode voltar a prosperar, a reganhar a confiança perdida atendendo ao papel crucial que pode ter na resposta aos desafios sistémicos que enfrentamos.

Esta frase encontra-se escrita numa parede localizada numa das avenidas com mais notoriedade na cidade do Porto. De há 6 meses para cá deixou de sofrer de bullying. Estamos a falar de uma parede bastante grande, com um traçado bem linear e verdadeiramente semelhante a uma tela. Percebem do que estou a falar. Certo?

Nela havia todo um conjunto de expressões artísticas, que ia desde as famosas tags, gatafunhos semelhantes ao traço da minha prima Benedita (2 anos de idade), até às famosas dedicatórias a paixões arrebatadoras.

Mas ultimamente tem estado protegida. Como? Com 29 letras, as quais dão nome a este artigo.

Qual o mecanismo psicológico que se proporcionou na cabecinha dos “artistas” que os leva ainda hoje à manutenção do pacto de não agressão? A frase na parede também me transporta para a história de dois pedreiros que ao serem interpelados sobre o que estavam a fazer, um deles afirmou que estava a picar pedra e o outro com um elevado ar de satisfação afirmou que estava a construir uma catedral.

Pois bem, a declaração na parede pretendeu passar essa mensagem. Alguém tinha estado a fazer a sua “catedral”.

Estamos a falar de um profissional, com um propósito, significado e impacto para lá do simples pintar da parede. Ele pediu respeito pela sua razão de ser uma vez que aplicou todo o seu coração naquela obra. Pretendeu enfatizar que o seu trabalho valoriza o edifício, a envolvente urbana e defende uma imagem de modernidade perante os turistas que todos os dias por ela passam. Logo não pode nem deve ser grafitada.

Tudo isto me leva a concluir que se ganha o respeito de todos quando o propósito é claro, diferenciador, motivador, facilmente verificável e com uma multiplicidade de impactos. Confesso que reconheço esse estado de espírito no coletivo individualizado tão bem expresso por Fernando Pessoa na sua obra a Mensagem quando narra a atitude do navegador, “Aqui ao leme sou mais do que eu”.

Provavelmente o leitor já se estará a interrogar sobre onde quero chegar com tudo isto.

Pois bem, esta semana ouvi um banqueiro dizer que a confiança na banca levará anos a ser recuperada. Ou seja, fosse a banca uma parede e estaria cheia de escárnio e maldizer, sem declarações de amor, portanto.

Desde os reguladores até aos clientes, muito foram aqueles que se sentiram baralhados quanto à verdadeira razão desse setor. Parece que a banca influenciada por um dono disto tudo, ou mesmo um qualquer deus grego, se viu desorientada e instrumentalizada, o que a levou a perder a sua notoriedade.

A verdade é que respeitamos aqueles que se esforçam, que colocam o coração em tudo aquilo que fazem e cujo fim das suas ações gera um conjunto de sinergias criadoras de valor que vai para lá das suas fronteiras individuais.

Por aquilo que vou assistindo, acredito que o sistema financeiro pode voltar a prosperar, a reganhar a confiança perdida atendendo ao papel crucial que pode ter na resposta aos desafios sistémicos que enfrentamos. Terá é de se reinventar de se comprometer com iniciativas de boas práticas tal como os Principles for Responsible Banking (1) das Nações Unidas.

É possível ter lucro e reorganizar toda uma organização em torno do desenvolvimento de soluções para resolver e mitigar os grandes problemas do mundo, tal como por exemplo a perda de biodiversidade. Segundo alguns investigadores, estamos no meio do sexto evento de extinção em massa, o que historicamente leva ao desaparecimento de 60 a 95% de todas as espécies terrestres (2).

Pois é (também) responsabilidade do sistema financeiro evitar este cenário. Para tal, os gestores devem sair dos seus gabinetes, trocar ideias com os seus parceiros na procura de soluções win-win. É crucial desenvolverem planos diretores de sustentabilidade, que ajude a definir a estratégia do banco na gestão de oportunidades, riscos e reporte dos seus impactos.

Parece-me claramente que o foco no business-as-usual não é resposta. Será provavelmente o melhor caminho para se bater com a cabeça na parede e colocar até em causa a sustentabilidade financeira da organização.

Imaginem que estão a criar um sistema financeiro a partir do nada, comecem com aquele brilho nos olhos que qualquer empreendedor tem. Criem veículos específicos para apoiar inovações com impacto.

Só assim poderemos voltar a ter as paredes limpas e um mundo mais próspero: financeiramente, socialmente e ambientalmente.

1 https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/
2 https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/society/20200109STO69929/porque-e-a-perda-de-biodiversidade-preocupante-e-quais-as-suas-causas

  • David Tomé

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