Dívida comum europeia para financiar bazuca é irrepetível?

Até 2026, a União Europeia vai endividar-se em 800 mil milhões de euros para financiar a "bazuca" contra a crise pandémica. O tabu dos eurobonds foi quebrado, mas numa futura crise não voltará?

Não lhe chamam eurobonds nem coronabonds, duas palavras proibidas pelas divergências do passado, mas a verdade é que a União Europeia já emitiu e vai continuar a emitir nos próximos anos volumes significativos de dívida comum que, em última análise, é uma espécie de mutualização de dívida a nível europeu, ainda que com limitações. Este foi um passo revolucionário dado com a pandemia, mas não é garantido que se repita. Certo é que o tabu foi quebrado.

Eurobonds? Só por cima do meu cadáver“. Esta frase de Angela Merkel, em 2012, em plena crise das dívidas soberanas que envolveu Grécia, Irlanda e Portugal, tornou impossível qualquer tipo de mutualização europeia de dívida. Durante a última década essa questão foi completamente posta de lado, mas a propagação de Covid-19 em março de 2020 inverteu a vontade política e abriu o caminho para a “bazuca” europeia, o Próxima Geração UE de mais de 800 mil milhões de euros, cerca de 5% do PIB europeu. Mais uma vez, foi uma crise a despoletar um novo passo na integração europeia.

Recentemente, Durão Barroso reconheceu essa evolução da UE no podcast Deixar O Mundo Melhor. O ex-presidente da Comissão Europeia confessou que foi convidado por Merkel para um jantar de despedida a sós, após quatro mandatos como chanceler, e que passou em revista com ela “muita coisa”, incluindo a dívida comum europeia: “Aquilo que eu tenho pena é que não tenha sido aceite quando nós queríamos o que veio a ser aceite agora, nomeadamente por Angela Merkel, que foi a mutualização da dívida”. “Foi agora, como resposta à pandemia, que finalmente os Governos mais relutantes nisso [as eurobonds], nomeadamente o Governo alemão, aceitaram aquilo que para mim era uma evidência: mais tarde ou mais cedo, se se quer ter uma moeda única, tem de haver alguma forma de mutualização da dívida“, afirmou Durão Barroso.

É esta a posição de muitos economistas, mas não há unanimidade e, mais do que racionalidade económica, o problema está na vontade política dos Governos e das populações dos 27 Estados-membros. Se países como França quiseram colocar em cima da mesa a possibilidade de se ir mais além da bazuca, mimetizando o que fizeram os Estados Unidos com sucessivos pacotes orçamentais de estímulos, o travão a essas ambições não tardou a chegar vindo de vários setores: para já, é preciso executar e bem o dinheiro disponível, cujos prazos são curtos face aos fundos europeus “normais”.

Símbolo dessa resistência é o dinamarquês Poul Thomsen, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) para Portugal, que disse ao ECO que não vai haver uma nova “bazuca” europeia para responder a uma futura crise se não houver reformas estruturais, mais produtividade nos países mais pobres e redução do défice e da dívida em termos estruturais. “É uma ilusão pensar que o Norte agora concordou em fazer transferências [orçamentais] para o Sul de cada vez que houver uma crise. Isso aconteceu desta vez por causa de Covid e o facto de ser uma questão humanitária“, defendeu o economista, referindo que é “ingénuo” pensar que a dívida conjunta veio para ficar, comparando a UE aos EUA.

Na mente dos economistas do Velho Continente, a questão ainda está em aberto.

Entre a racionalidade económica e a viabilidade política

Há vários anos que a União Europeia emite dívida em nome dos Estados-membros, mas o volume tinha sido até agora bastante limitado e apenas para situações de emergência. Ir mais além do que isto tinha sido rejeitado sucessivamente por vários países, mas foi finalmente aceite, ainda que com muitos meses de negociações e cedências, como resposta à crise pandémica.

Desde pelo menos a crise financeira, e alguns desde a criação do euro, que muitos economistas defendem que era preciso algum tipo de mutualização da dívida na Zona Euro, como disse Durão Barroso. A abertura da discussão sobre as regras orçamentais, após três anos de suspensão por causa da pandemia, reabre também o debate sobre uma capacidade orçamental centralizada na UE. Mário Centeno, enquanto presidente do Eurogrupo, conseguiu uma pequena vitória com o instrumento orçamental para a convergência e competitividade (BICC, na sigla inglesa), mas a pandemia meteu-o na gaveta. E não deverá ser ressuscitado.

A nova onda de debate sobre a governação económica da Zona Euro poderá levar a alguma inovação, como a emissão de dívida da UE apenas para financiar projetos pan-europeus para lutar contra as alterações climáticas. É isso que defende ao ECO Grégory Claeys, senior fellow do think tank Bruegel, com influência em Bruxelas: dívida comum para financiar “objetivos comuns”, como é o caso do investimento verde para lutar contra as alterações climáticas. Esta é uma hipótese referida ao de leve na opinião assinada por Emmanuel Macron e Mario Draghi no final do ano passado.

“O regulamento do Próxima Geração UE define que é temporário”, admite Claeys, mostrando esperança de que este possa ser renovado ou pelo menos passar a fazer parte do arsenal de hipóteses na gestão de crises económicas na Europa. Porém, o economista considera que tudo dependerá do nível de sucesso da bazuca, nomeadamente se vai ou não contribuir para inverter a divergência que se regista desde a crise do euro. Se for bem sucedido e passar a ser permanente, esta pode ser uma forma de “resolver problemas de longo prazo” como a necessidade de ter um poder orçamental centralizado na UE para resolver problemas como o da crise das dívidas soberanas que levou Portugal a pedir um resgate à troika.

Ao mesmo tempo que mostra esperança, Grégory Claeys admite que “foi mais fácil, em termos políticos, haver solidariedade entre os Estados-membros” durante a pandemia, lembrando também que foi uma forma de lutar contra o crescente euroceticismo — dois fatores que podem não estar presentes numa futura crise. Independentemente do futuro, o especialista do Bruegel tem uma certeza: a atual bazuca foi um “game changer” na UE e uma “revolução” por ter subvenções (a fundo perdido), em vez de assentar apenas em empréstimos, o que antigamente era um “tabu”. E, neste caso, o tamanho também importa: 800 mil milhões é diferente das anteriores intervenções cirúrgicas.

Num artigo no Social Europe, Claeys, em conjunto com outros colegas, defende que apesar da emissão significativa de dívida europeia não houve um efeito de “crowding out” (afastamento dos investidores) das dívidas dos países. “A evidência aponta para o contrário: as obrigações do Próxima Geração UE parece que causaram ‘crowding in’ [atração de investidores], principalmente pela procura de investidores de fora da UE que viram esta dívida como um sinal positivo da coesão europeia no longo prazo“, argumentam os autores.

Sobre o futuro, o economista deixa um alerta que é preciso ter em conta nos próximos tempos: com o previsível aumento das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu, é provável que alguns países recorram a mais empréstimos da bazuca (com um juro reduzido), se o custo da sua dívida pública começar a subir significativamente. Portugal, por exemplo, está longe de ter usado os empréstimos todos a que tem direito e poderá ainda requerer o acesso a estes nos próximos anos.

Sucesso da bazuca será crucial para novo passo no futuro

O ECO também ouviu dois economistas alemães, Friedrich Heinemann (Instituto ZEW) e Mathias Dolls (Instituto Ifo), e ambos convergem para a necessidade de primeiro avaliar-se o impacto do atual programa de estímulos, evitando fazer já prognósticos sobre o que acontecerá numa futura crise. O tema só deverá ser discutido mais seriamente daqui a seis anos, no final do atual quadro comunitário.

A crise pandémica foi um catalisador“, assume o professor Heinemann, lembrando que “antes da pandemia, não havia vontade política para haver maior integração e partilha de risco“. O economista acredita que estava “nas cartas” que numa próxima crise haveria dívida comum, mas admite que a natureza da pandemia ajudou em termos políticos. Sobre o futuro, é sintético: “Se for uma história de sucesso, haverá um argumento forte para repetir, mas se for um falhanço dará mais argumentos aos frugais“.

Dolls concorda que foi dado um “passo substancial” na integração europeia, mas avisa que é preciso “cuidado a fazer previsões para o futuro sobre se iremos ver iniciativas similares no futuro”. “Este foi um sinal de solidariedade entre os Estados-membros durante a pandemia, mas ao mesmo tempo houve um acordo de que isto seria temporário”, recorda. Na sua opinião, tem de haver um “entre a partilha de risco e a prudência orçamental”, dois ingredientes que têm de estar presentes “para que a Zona Euro funcione melhor”.

Ambos concordam que primeiro será preciso analisar o impacto económico desta bazuca. “Será importante ver o impacto desta iniciativa através de avaliações sérias“, nota o economista do Ifo, admitindo que, mesmo que haja uma avaliação positiva, não é “automático” que se repita no futuro. E recorda um legado desta crise que pode condicionar as discussões: “Há vários países com níveis elevados de dívida pública, o que é um tema sério”.

Acresce que, na opinião de Friedrich Heinemann, este tema não será discutido no debate sobre as regras orçamentais e só será uma questão após o fim da bazuca e do atual Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027. Por exemplo, já não será este Governo alemão mas sim o próximo a tomar decisões sobre essas negociações, o que aumenta a incerteza. Mais do que isso: Heinemann não antevê uma nova crise das dívidas soberanas uma vez que o BCE disse que ia reinvestir os montantes de dívida pública que comprou durante a pandemia pelo menos até 2024, pelo que não será necessária uma nova bazuca.

Estimativa do impacto dos PRR feita pela Comissão Europeia

Daqui a seis anos, quando se começar a avaliar o impacto da bazuca, será necessário comparar com as atuais previsões, como esta da Comissão Europeia que calcula o impacto direto e indireto dos Planos de Recuperação e Resiliência de cada Estado-membro. E será colocada uma pergunta: este investimento existiria sem bazuca? Uma análise de Mathias Dolls, com outros colegas, mostra que o princípio da adicionalidade (e não da substituição de financiamento nacional por financiamento europeu) não é cumprido no nível agregado da UE. Ou seja, a bazuca vai financiar maioritariamente projetos que já iam ser realizados, o que não era o objetivo. Ainda assim, ajudará a melhorar as contas públicas dos países mais endividados.

Vontade política decide futuro, mas há apetite nos mercados

Se a história da última década mostrou divisões bem fortes quando se tentou avançar para emissões de dívida a nível da UE, não será a pandemia a abrir definitivamente essa porta, ainda que o mercado possa manter um forte interesse por este tipo de títulos pois haverá cada vez mais regras de investimento em sustentabilidade para cumprir, de acordo com os analistas. Mas nunca digam nunca.

“Foi possível fazer a emissão devido ao caráter excecional do contexto de pandemia. Não creio que, neste momento, haja condições imediatas para que se repita, mas os federalistas irão com certeza fazer mais algumas tentativas”, diz Filipe Garcia, presidente do IMF – Informação de Mercados Financeiros.

Não creio que, neste momento, haja condições imediatas para que se repita, mas os federalistas irão com certeza fazer mais algumas tentativas.

Filipe Garcia

Presidente do IMF

Para Filipe Silva, diretor de investimentos do Banco Carregosa, “para que este processo possa ficar permanente, julgo que irão ser necessárias ser tomadas decisões políticas e de maior interajuda entre os diversos países da UE.”

Steen Jakobsen, diretor de investimentos do Saxo Bank, tem uma visão diferente dos dois responsáveis portugueses. Lembra a história da política fiscal na Dinamarca em relação ao IVA para dizer que “em política temporário significa permanente” e que o mesmo poderá suceder com as emissões conjuntas.

E deixa outro dado: “Teoricamente os mercados não estariam interessados, mas a resposta verdadeira é: eles precisam. Toda a taxonomia da UE em 2022 mudou para ser apenas verde. Isto significa que ninguém pode obter capital, aprovação ou licenças sem cumprir a quota de ativos verdes”, explica Jakobsen. Assim, prossegue, fundos de pensões e empresas de capital aberto serão forçados a alimentar estas obrigações verdes (emitidas pela Comissão Europeia) através de necessidades de capital regulatórias.

Filipe Garcia também acredita que o “mercado receberia muito bem esse tipo de dívida, que seria um proxy dos ‘escassos’ títulos alemães, com uma probabilidade muito baixa de serem incumpridos”.

Para ser uma alternativa aos bunds e tornarem-se benchmark, ter-se-ia de mudar o formato e objetivo destas emissões [conjuntas].

Filipe Silva

Banco Carregosa

Proxy ou o próximo benchmark no mercado? As obrigações alemãs desempenham atualmente esse papel de referência e em relação às quais os investidores comparam prémios para adquirir outros títulos da região. Filipe Silva e Filipe Garcia não veem, ainda assim, a nova dívida europeia a substituir as bunds como referencial do mercado.

O presidente do IMF assume que tal dependerá de “vontade política” para tornar este instrumento recorrente. O diretor do Carregosa concorda com este ponto, acrescentando que “para ser uma alternativa aos bunds e tornarem-se benchmark, ter-se-ia de mudar o formato e objetivo destas emissões” conjuntas.

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