A (In)dependência Energética Europeia

  • Ricardo Nunes
  • 3 Fevereiro 2022

A transição energética tem sido, e continuará a ser o grande desafio da nossa geração. É um desafio de grande complexidade pois temos de fazer quase uma “quadratura do círculo”.

Março de 1941 – Estados Unidos da América, através do programa Lend-Lease, forneceram aviões, navios, veículos e alimentos para que os seus aliados europeus pudessem enfrentar os Alemães na segunda Guerra Mundial.

Janeiro de 2022 – Estados Unidos da América enviam para a Europa dezenas de Navios-tanque de gás natural liquefeito (LNG) com cerca de 4,5 milhões de toneladas de LNG, para ajudar os Europeus a fazer face a uma das maiores crises energéticas desde a década de 70.

Estes dois acontecimentos distantes no tempo, e que parecem também distantes no propósito, são um bom exemplo da solidariedade e proximidade que a Europa e os Estados Unidos sempre tiveram.

Para se ter uma ideia ainda mais afinada da dimensão deste fenómeno recente, o valor de importação em janeiro de LNG norte-americano representou quase 50% do total de importações da Europa de LNG nesse mês, com o restante a ser importado principalmente da Rússia (12%), Qatar (12%) e Nigéria (9%).

Outro dado significativo, é que o total de LNG importado pela Europa em janeiro de 2022 (9,5 milhões de toneladas) além de ser um recorde mensal, é sensivelmente 300% superior ao valor de 3,2 milhões de toneladas que tinha sido observado no período homólogo em janeiro de 2021.

Não deixa também de ser curioso que agora a Europa tenha de recorrer ao gás norte-americano. Os Estados Unidos da América tiveram na exploração do gás de xisto um dos vetores principais para alcançarem a desejada independência energética, e foram inclusive bastante criticados nessa decisão pelo bloco europeu, quanto aos efeitos ambientais e geológicos que esta exploração implicava.

A Europa tem enfrentado, no que diz respeito à energia e ao custo do gás e da eletricidade, uma “tempestade perfeita”.

Se por um lado, antecipou metas da transição energética, o que por si só e ao contrário do que alguns líderes europeus afirmaram, teria sempre impacto nos preços, pelo menos no curto prazo, por outro temos enfrentado questões geoestratégicas de grande complexidade com a Rússia que é o principal fornecedor de gás natural à Europa (cerca de 40% do total), que culminou na restrição do fornecimento dos gasodutos a norte, e no atraso da operacionalização do famoso gasoduto Nord Stream2. Toda esta conjuntura negativa foi ainda reforçada pelo aumento expressivo da procura de gás em países como a China no pós-confinamento global.

Os preços de gás natural nos mercados europeus aumentaram em 2021 como nunca tinha sido observado. O índice Holandês TTF, considerado por muitos analistas como o mais representativo do continente europeu, teve em 2021 variações na ordem dos 400%. Com o modelo marginalista a ser standard nos mercados spots de eletricidade, naturalmente que este brutal incremento do preço do gás foi absorvido e integrado no preço de eletricidade que influencia a vida e atividade de todos os cidadãos e empresas europeias.

O próximo efeito já se vislumbra, as empresas terão de repassar estes aumentos de custos energéticos para os seus produtos, e uma forte inflação será uma realidade no curto prazo na Europa.

Não é possível continuarmos neste carrossel por muito mais tempo, em que dependemos da boa vontade dos Estados Unidos da América, da estabilidade das relações com a Rússia, ou da decisão do governo alemão, que integra os verdes no seu executivo, de aprovar ou não aprovar o início da operação do Nord Stream 2. A Europa tem de fazer mais e melhor no que diz respeito à sua política energética.

No curto prazo e à semelhança do que fizemos com as vacinas na pandemia, devemos também no gás ter uma ação robusta e coordenada entre todos os estados-membros. Negociar como um verdadeiro bloco económico com os principais produtores mundiais de gás natural contratos de médio longo prazo, ter uma política conjunta e mais ambiciosa na gestão e no armazenamento de gás, e também inverter as políticas restritivas sobre o gás, eliminando as penalizações fiscais e ambientais enquanto não tivermos uma alternativa renovável tecnicamente consistente. Esta última questão de rotular o Gás (e o Nuclear) como investimento verde em termos fiscais, que foi proposta pela França e pela Alemanha, e aceite pela União Europeia, reposiciona o gás como fundamental na transição energética. Sim, a necessidade de gás não vai desaparecer do nosso mix energético por milagre na próxima década, mesmo que alguns ambientalistas o desejem.

No médio e longo prazo, o Hidrogénio verde (e também o desenvolvimento de armazenamento) deve fazer parte da solução para termos uma Europa realmente independente em termos energéticos. Devemos continuar esse caminho, em que Portugal tem apostado, e bem, mesmo sabendo que ainda faltarão alguns anos para que a tecnologia esteja suficiente madura e competitiva em termos técnicos e financeiros. Em Portugal, a ACEMEL através dos seus associados, prevê desenvolver várias iniciativas onde dará o seu contributo para uma necessária estabilização regulatória e legal do hidrogénio e de outros gases renováveis.

A transição energética tem sido, e continuará a ser o grande desafio da nossa geração. É um desafio de grande complexidade pois temos de fazer quase uma “quadratura do círculo”, conseguir descarbonizar a nossa economia através da crescente penetração de tecnologias de produção renovável, desenvolver tecnologicamente essas soluções para obtermos mais consistência técnica e previsibilidade e, simultaneamente, protegermos as nossas empresas e os nossos cidadãos de um custo demasiado elevado, e que possa pôr em causa a sustentabilidade social e económica das suas vidas.

Não é uma tarefa fácil, mas se há uma lição que retirámos desta crise pandémica, é que o ser humano, quando alia vontade, ao conhecimento e à ciência, é capaz dos feitos mais extraordinários.

  • Ricardo Nunes
  • Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes

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