“Em Portugal, talento não falta, mas é destruído pelo sistema de educação”, diz fundador do THU

Portugal ainda não tem o seu sistema de educação preparado para as indústrias criativas, lamenta fundador do THU, evento onde gigantes do entretenimento contratam talentos em Portugal.

É numa parede branca, em plena Baixa de Lisboa, que está escrito o futuro do evento onde os gigantes do entretenimento mundial vão recrutar. E o futuro do Trojan Horse was a Unicorn (THU) não vai passar por Portugal. O evento está de saída de Portugal e vai rumar a um outro país do Sul da Europa.

O Governo de Portugal está sem estratégia para as indústrias criativas apesar de ser o país que organiza, por exemplo, a Web Summit. Têm sido as empresas privadas a liderar as iniciativas para promover ofertas alternativas de educação, diz, André Luís, o fundador da THU, em entrevista à Pessoas/ECO.

“Já fui a algumas instituições, apesar de haver gente com talento, há zero de portefólio, ritmo de trabalho e conhecimentos técnicos para darem direito a receber um salário. Em Portugal, talento não falta, mas é destruído pelo sistema de educação”, diz André Luís.

O fundador do THU adianta ainda que o fundo de 10 milhões de euros para investir em projetos das indústrias criativasanunciado em setembro de 2021 — apenas irá arrancar no início de 2023.

Há ainda espaço para falar sobre um projeto para ajudar comunidades mais desfavorecidas e que aguarda ‘luz verde’ da câmara de Lisboa.

André Luís, fundador da Trojan Horse was a Unicorn (THU), em entrevista ao ECO - 03AGO22
Fundador do THU, André Luís, com o grande plano da empresa para os próximos anos.

Portugal já sabe o que quer fazer com as indústrias criativas?

Noto que não. Todos andam a tentar safar-se. As indústrias criativas têm a ver com pessoas, com talento. Não há volume de talento em Portugal e são sempre os mesmos a produzirem. Os projetos que existem em Portugal continuam a ser uma mão-cheia de nada. Não temos um Candy Crush em Portugal. Há uma visão bastante redutora das indústrias criativas. Falta impacto de escala, internacionalização, criação de valor, vendas. Não vejo sequer um plano.

Pode haver uma indústria criativa num país em que muitos ganham pouco mais do que o salário mínimo?

O objetivo das indústrias criativas é que, se as coisas correrem bem, tem o efeito multiplicador na economia. Nunca houve tanto dinheiro para estas indústrias como há atualmente.

Não há volume de talento em Portugal e são sempre os mesmos a produzirem. Os projetos que existem em Portugal continuam a ser uma mão-cheia de nada. Não temos um Candy Crush em Portugal

André Luís

Fundador e líder do Trojan Horse was a Unicorn

Mesmo numa altura de receio de recessão mundial?

Não escondo que há receio e alguns cortes nas indústrias de streaming e de videojogos. Mas cortam 10 aqui e colocam 30 noutro sítio. A Netflix acabou de comprar a Animal Logic [estúdio que produziu os filmes Happy Feet e o filme dos Lego]. A guerra do streaming não vai parar, até porque quando há recessão as pessoas consomem mais conteúdos. É inegável que há medo e vamos assistir a muitas fusões. Corremos o risco de desaparecerem os estúdios independentes.

A falta de estúdios independentes não é um pouco preocupante para a indústria?

As pessoas têm a escolha. A Sony e a Microsoft estão a fazer a sua escolha para terem produtos em exclusividade. É uma questão de números. Mesmo assim, Sony e Microsoft dão clara autonomia aos estúdios para serem fiéis aos seus valores e à sua cultura.

Costumo dizer que quanto mais pessoas trabalharem nas indústrias criativas, dedicadas à exportação, onde os salários começam a ser globalizados, começamos a ter ganhos iguais para todos. Há mais condições financeiras e as pessoas estão a consumir maior cultura e outros produtos. Há uma outra dinâmica na economia.

André Luís, fundador da Trojan Horse was a Unicorn (THU), em entrevista ao ECO - 03AGO22
Fundador do THU com alguns dos elementos da equipa a prepararem evento de 2022.

O que Portugal pode fazer diferente?

Apostar na educação, a partir da pré-escola. O Pedro Santa Clara (promotor da escola 42 em Portugal) está a tentar trazer um projeto da Arménia, do centro pós-escolar. Vai buscar miúdos dos 13 aos 18 anos e apostar em 11 disciplinas criativas. Nota-se que há uma nova geração de pensamento dos miúdos na área da música, do 3D, da animação, onde há uma certa profissionalização.

No THU, antes da mudança de presidente da câmara de Lisboa, tínhamos um projeto-piloto (Libraries). O ministro da Educação devia pensar que é necessária uma outra abordagem para as indústrias criativas. Como querem que alguém ganhe 4 ou 5 mil euros na Netflix e depois pare tudo para ir dar aulas numa escola onde pagam 800 ou 900 euros? É preciso começar a valorizar o trabalho dos professores qualificados.

Tive uma escola e as pessoas não imaginam: no Programa Operacional de Potencial Humano, de 2007 a 2013, foram seis mil milhões de euros para formar e capacitar pessoas. Qual foi o impacto na economia real? Nos últimos cinco anos, foram as entidades privadas, como as escolas de programação, que acabaram por ter muito mais impacto na economia real.

O Estado não devia ter outro papel?

Os mecanismos do Estado são muito cruéis: ninguém quer ter esse trabalho porque mexe com muita coisa. Estava numa escola, num curso de efeitos especiais. Não havia ninguém para dar aulas de after effects. Acabaram por pôr História da Arte. “Os miúdos não vão perceber nada”, dizia-se na altura. Numa faculdade em Portugal, havia dois departamentos a lutarem por uma licença de composição de vídeo. Em Portalegre, houve um mestrado em 3D, precisavam de um espaço de 500 metros quadrados. Os reitores só deram 80 metros quadrados.

Mas não somos o país da Web Summit, aberto à inovação?

A maioria das pessoas que está dentro das escolas, sejam reitorias ou professores, não quer a Web Summit. A Web Summit expõe a falta de conhecimento e de visão que ainda existe. As métricas de avaliação dos professores das indústrias criativas são assustadoras. Se fosse reitor de uma escola, a primeira coisa que perguntaria é se conseguem recrutar e qual o nível de satisfação dos alunos. Um colega queria chumbar alguns alunos de um curso mas não o deixavam, apesar de o nível ser muito mau. Se não os passasse poderia ser despedido.

A nível de escolas com preocupações éticas, existe apenas a ETIC no Algarve, que está a fazer um trabalho muito interessante mesmo sem apoios. Quando as escolas preparam zero para o mercado de trabalho… é muito mau. Já fui a algumas instituições, apesar de haver gente com talento, há zero de portefólio, ritmo de trabalho e conhecimentos técnicos para darem direito a receber um salário. Em Portugal, talento não falta, mas é destruído pelo sistema de educação. Recebo dezenas de e-mails de alunos no desespero porque os professores nunca trabalharam na indústria e depois as saídas profissionais são todas para o Estado.

A maioria das pessoas que está dentro das escolas, sejam reitorias ou professores, não quer a Web Summit. A Web Summit expõe a falta de conhecimento e de visão que ainda existe. As métricas de avaliação dos professores das indústrias criativas são assustadoras

André Luís

Fundador e líder do Trojan Horse was a Unicorn

E quais foram os efeitos da pandemia junto das indústrias criativas?

Estive na sessão de encerramento do curso de efeitos especiais da Escola de Artes Digitais de Montpellier. O nível de qualidade dos projetos apresentados é muito muito grande. Segundo os alunos, a pandemia não prejudicou a saúde mental mas a qualidade do trabalho de construção da narrativa não foi tão boa porque não foi possível conversarem uns com os outros. Eles sabiam o caminho e estavam focados.

Portugal sabe que caminho está a fazer?

A educação garantidamente que não. Há uma polarização muito grande: há os jovens talentos, sobretudo os que voltaram do estrangeiro, que estão a levar a educação para níveis internacionais. Mas depois deparam-se com montanhas. Dizem que não há dinheiro…

Se os reitores falassem com as empresas sobre os processos de recrutamento nas indústrias criativas, íamos logo perceber que as coisas seriam diferentes. Os poucos portugueses que vão ao THU não estão preparados. Estou nas indústrias criativas desde 2007 e sei bem disso. Ninguém percebe que é preciso inovar para não se ser ultrapassado. Há professores que não estão minimamente qualificados para dar aulas nas indústrias criativas e que estão lá. Basta o Governo português ir falar com boas empresas e vai logo perceber isso.

Estavam a desenvolver o projeto Libraries, para empoderar as pessoas com educação grátis. O que aconteceu para o projeto ainda não ter avançado com a câmara de Lisboa?

O THU não quer ser uma escola, apesar das propostas que temos recebido nos últimos anos. Quando começámos a falar com a câmara de Lisboa sobre indústrias criativas, a primeira ideia era uma incubadora, uma cidade criativa para atrair grandes empresas na área. Depois de um ano e três meses de investigação, percebi que o projeto podia servir para educar por missões. As escolas começaram a perceber que era preciso ter um espaço físico, a criação da marca, é necessária uma certificação para os alunos e é preciso encontrar um bom professor. Por causa disso, criámos o conceito a partir das bibliotecas públicas. Qualquer biblioteca é um espaço de saber e tem salas incríveis mas vazias.

Resolvido o espaço físico, era necessária a mentoria, que ficou a cargo do THU e dos seus membros. Podemos ajudar jovens de contextos menos privilegiados como por exemplo de bairros sociais. Mas falta a criação de perfis para colocarmos as pessoas nos cursos certos. Lisboa admitiu que há fundos sociais que podem capacitar estes jovens.

André Luís, fundador da Trojan Horse was a Unicorn (THU), em entrevista ao ECO - 03AGO22
Espaço exterior da sede do THU, na Baixa de Lisboa.

Quando pode arrancar o projeto Libraries?

Já tínhamos as primeiras três bibliotecas preparadas e já tínhamos apoio de um banco, de uma empresa de computadores, Internet e alimentação. Faltaram os fundos sociais, que eram fundamentais para implementar o projeto nas bibliotecas porque há um custo inicial muito grande. Parámos tudo com a mudança da Câmara.

Há praticamente um ano anunciaram um fundo de 10 milhões de euros com a SIC. O que é feito disso?

O fundo está a ser reajustado: tivemos dificuldade em saber qual a entidade gestora do fundo e falta metade do seu orçamento. Os primeiros investimentos serão feitos a partir de janeiro de 2023.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

“Em Portugal, talento não falta, mas é destruído pelo sistema de educação”, diz fundador do THU

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião