A IA já está a mudar a forma como a CUF presta cuidados de saúde, desde o apoio ao diagnóstico até à monitorização dos doentes, diz Marta Martins, diretora de Novos Cuidados e Soluções da CUF.
A inteligência artificial (IA) é tema quase diário em praticamente todos os setores da sociedade. A saúde não foge à regra. No primeiro episódio do Podcast .IA, uma nova iniciativa editorial do ECO, conversámos com Marta Martins, diretora de Novos Cuidados e Soluções da CUF, para perceber de que forma a IA está a transformar o paradigma tecnológico numa das maiores unidades de saúde privadas do país.
Durante a conversa, Marta Martins destacou exemplos concretos de como a CUF já integra a inteligência artificial no dia-a-dia clínico, desde algoritmos que apoiam o diagnóstico precoce em imagiologia até à Clara, a enfermeira digital que realiza o primeiro contacto com os doentes em cirurgias de ambulatório. A diretora explicou como estas soluções permitem não só aumentar a precisão dos diagnósticos, mas também libertar tempo dos profissionais de saúde para se dedicarem ao que realmente importa: “O acompanhamento próximo dos doentes”.
Além da componente clínica, a IA está a ser utilizada para melhorar a experiência do cliente e otimizar processos internos. A CUF conta com um comité interno de inteligência artificial, presidido pelo CEO, que define a estratégia, garante o cumprimento da legislação e supervisiona os projetos, assegurando que cada inovação traz valor real, tanto para os doentes como para a organização.
Para a CUF, que papel pode a inteligência artificial ter na prestação de cuidados de saúde?
A inteligência artificial entrou pelas nossas portas, janelas, adentro, acho que de todos os setores e, sem dúvida, na área da saúde vai ser uma ferramenta fundamental. Não está isolada, temos de pensar em processo, organização de pessoas, mas vai, com certeza, revolucionar a forma como prestamos cuidados de saúde.
Não só na componente clínica, porque os novos algoritmos têm uma capacidade de ajudar quer no diagnóstico precoce, quer no apoio à decisão clínica. Toda a parte de experiência de cliente vai poder ser melhorada numa lógica também de maior personalização e melhor experiência de cliente. E o que é paradoxal é que a tecnologia nos vem permitir humanizar mais os cuidados, porque permite-nos automatizar e dar-nos aqui uma cola que muitas vezes é difícil de conseguir em todos os processos.
Com inteligência artificial e processos montados sob inteligência artificial, vamos conseguir ter essa cola. Vamos ter mais tempo e os profissionais, aquilo que fazem à data de hoje, que muitas vezes acabam por ter muitos processos burocráticos e muitas tarefas que os obrigam a estar um bocadinho nos bastidores, vão poder estar mais perto do doente e de quem realmente precisa de contacto.
Pode dar alguns exemplos de como, hoje, já estão a usar a inteligência artificial na CUF?
Sim, temos vários exemplos já e temos um pipeline que vai correr.
Aqueles menos óbvios, se calhar, são menos evidentes para as pessoas, mas estão lá, onde a inteligência artificial está lá.
Vou dar alguns exemplos da área clínica. Somos um prestador de cuidados de saúde. Tudo aquilo que é prestar cuidados de saúde aos doentes, a inteligência artificial pode-nos ajudar bastante. No apoio ao diagnóstico, já temos algumas ferramentas, por exemplo, na área da imagiologia, o algoritmo consegue ‘varrer’ a imagem e apoiar o diagnóstico. Temos, por exemplo, um algoritmo que corre sobre todas as mamografias e consegue identificar aqueles nódulos iniciais que, às vezes, o olho clínico, mesmo bem treinado, tem dificuldade. Está a correr nos bastidores, mas está aqui a dar o apoio ao processo. Quando melhoramos o diagnóstico, deixamos também de ter de fazer procedimentos desnecessários. Por exemplo, com a utilização deste algoritmo realizamos menos biópsias. O que é que nós pretendemos em saúde? Que os procedimentos sejam os menos invasivos possíveis.
Isso para o doente também é bom.
Também. Podemos ter um algoritmo que nos apoia no diagnóstico, o diagnóstico torna-se mais preciso, deixamos de sujeitar um conjunto de pessoas a biópsias, por exemplo, um procedimento mais invasivo, para ter um diagnóstico definitivo. E também poupamos recursos e podemos prestar melhores cuidados, neste caso, às nossas mulheres.

Um dos exemplos que costumam falar é da vossa assistente que é capaz de ligar para os doentes…
É um exemplo muito completo, porque também estamos todos a aprender. Partimos sempre de qual o problema que queremos resolver e identificamos a solução para o resolver. Vamos tendo um conjunto de sinergias e de externalidades positivas que nem estávamos à espera. Portanto, o exemplo da Clara é ótimo. A Clara é a nossa assistente, a nossa enfermeira digital, é uma enfermeira de IA, como se fosse uma enfermeira que está connosco. Fazemos muitas cirurgias na CUF, temos muitas unidades, fazemos cirurgia de ambulatório. Os nossos doentes iam para casa e tínhamos, localmente, um conjunto de enfermeiras que ligavam ao cliente para fazer um follow-up cirúrgico. Era uma tarefa que não estava automatizada, organizada ou sistematizada. Não recolhíamos indicadores clínicos.
Com o apoio da Tucuvi, implementámos a Clara, que nos permite fazer o primeiro contacto, escalar o papel da enfermeira. A Clara faz o primeiro contacto e um conjunto de questões, e, mediante as respostas dos nossos doentes, consegue gerar um conjunto de alertas. Depois, temos uma escala de enfermeiras especializadas que, com base nesses alertas, atuam. Mas, na verdade, na grande maioria dos casos, as pessoas estão bem, os nossos cirurgiões operam bem, não há necessidade de alerta, e a Clara consegue fazer o trabalho de uma enfermeira, aquele trabalho mais simples. Poupa-nos horas de enfermagem e permite ter as enfermeiras mais especializadas naquilo que são as situações de limite ou as situações mais complexas.
A cirurgia de ambulatório é aquela em que o doente vai para casa e não tem internamento?
É, o doente vai para casa no próprio dia, sim, não tem internamento.
Também a CUF já criou um comité de inteligência artificial e temos já uma política e procedimentos.
E não tem receio de que a tecnologia possa errar?
A saúde é uma área onde a tecnologia, a legislação e toda a questão ética e legal são muito acompanhadas. Aqui também existem muitas soluções a entrar no mercado. Mas a comunidade europeia também já se encarregou de legislar e temos o AI Act, que é um bocadinho o nosso norte naquilo que devemos fazer ou não em inteligência artificial. A CUF também já criou um comité de inteligência artificial e temos uma política e procedimentos. Por exemplo, na área clínica, temos de garantir que há um conjunto de requisitos que são cumpridos para podermos implementar uma solução.
Para dar segurança os dados estão todos anonimizados: o registo clínico dos nossos doentes tem de estar salvaguardado. Já existe uma classificação, a que chamamos CE-MARC, que é a marca de qualidade da solução, e já existe aqui um gradiente. Estes algoritmos, já são considerados um medical device, ou seja, são certificadas. Não adotamos soluções em early stage.
E isso é exigido aos vossos fornecedores?
Sim, é exigido aos nossos fornecedores.
O que é o Comité de Inteligência Artificial? O que faz dentro da CUF? É aqui que se tomam as decisões de governance relativamente à implementação de IA?
A maioria das empresas tem a necessidade de estruturar, priorizar, definir aqui o caminho e também ter um conjunto de especialistas. Na verdade, são áreas que estão a revolucionar. Toda esta tecnologia com esta componente da IA é algo que há alguns anos não se falava e agora entra-nos por todas as portas. Como é que sabemos quais são as nossas prioridades? Para além da legislação, internamente, entendemos que devemos reunir um conjunto de especialistas na área e criar um modelo de organização. Criámos as políticas de IA.

Os especialistas são internos?
São internos. Mas também já fizemos um trabalho com especialistas externos, e quando é necessário consultamos especialistas externos. Neste momento, estabilizámos. Fizemos um trabalho com uma empresa de consultoria especializada nesta área, precisamente para definir como é que nos íamos estruturar e organizar na CUF. Criámos o comité, que é presidido pelo nosso CEO, Rui Diniz. É um ativo e uma área estratégica para a CUF.
O Comité tem como objetivo definir, qual é a nossa estratégia, definir os princípios de governance e ética, fazer a avaliação de todos os projetos que têm de ser submetidos, todos os projetos que temos na empresa e que têm a componente de IA são submetidos ao comité, que faz uma avaliação e a prioritização e depois a monitorização e supervisão, um ponto de situação sobre como os projetos estão a decorrer. Também temos como objetivo promover a literacia.
Todos os dias há novas ferramentas, estamos num contexto empresarial e não podemos usar todas as ferramentas, mesmo do ponto de vista da nossa produtividade interna. Uma coisa são os algoritmos, como a Clara, ou outras soluções para a prestação de cuidados. No nosso dia-a-dia, as empresas não podem começar a utilizar, por exemplo, o ChatGPT para fins empresariais, ou outro LLM. Tenho de usar aquele que está definido pela empresa. Devo ter formação para saber utilizá-lo. E essa componente também é elevada.
É quase um board, porque até tem o CEO como principal responsável.
Sim. Depois, claro, tem as áreas de inovação, de sistemas de informação, qualidade, área jurídica.
Fazem uma monitorização do retorno que os investimentos nesta área geram?
É um dos desafios que temos entre mãos. Não temos dúvida que queremos estar. A CUF é pioneira. Sempre foi vista como um grupo de saúde muito inovador. Fazemos este ano 80 anos e o nosso mote é a vitalidade sempre. A inovação pretende estar sempre à frente daquilo que fazemos e nortear aquilo que fazemos. Temos tido essa discussão porque sabemos que internamente muitas das inovações que queremos implementar têm um custo inicial.
Frequentemente, o benefício é para a sociedade. Por vezes é difícil o equilíbrio entre o benefício para a CUF, o benefício para todos os clientes e, ao mesmo tempo, como é que financeiramente nos mantemos saudáveis. Em tudo o que experimentamos na CUF, nestas áreas, definimos à partida qual é o problema que queremos resolver. Ou seja, a inteligência artificial e a inovação entram para resolver um problema. Como é que servimos melhor os nossos clientes?
Não é um fim em si próprio.
Não é um fim sem si próprio. Não sendo um fim em si próprio, sei que quero resolver este problema e como é que o vou fazer? Então consigo definir quais são os meus KPIs, quais os indicadores que quero melhorar. A partir daí também já consigo fazer um pequeno business plan, um pequeno modelo de negócio, para perceber se eu conseguir atingir estes indicadores, vou considerar que este use case permite fazer escalar dentro da empresa.
Temos até um programa específico, o Inove Mais, que é um programa de ideias interno, uma plataforma onde todos os colaboradores da CUF são incentivados a submeter as suas ideias inovadoras.
Ou seja, avaliam de certa forma para perceber se faz escalar dentro da empresa?
Sim. Todos os dias recebemos emails de startups, somos convidados para eventos, os diferentes diretores, os diferentes médicos da casa enviam-nos soluções. É muito importante fazer esta triagem, ser muito lúcidos naquilo que vai ter valor acrescentado.
Os trabalhadores também fazem, de certa forma, propostas e sugestões de soluções?
Incentivamos até a isso. Ou seja, para já, a inovação é uma porta aberta. Já não falando do comité, uma das missões da área da inovação é criar uma cultura interna que promova a inovação. Temos até um programa específico, o Inove Mais, que é um programa de ideias interno, uma plataforma onde todos os colaboradores da CUF são incentivados a submeter as suas ideias inovadoras que depois, obviamente, são avaliadas por uma equipa de inovação. O nosso objetivo é ter sempre uma percentagem de ideias que depois são implementadas com sucesso. Para dar a dinâmica que qualquer um pode inovar na empresa, e qualquer pessoa de todas as áreas da empresa é chamada a poder ser um inovador.
Isso é frequente?
Só agora, nos últimos seis meses, chegaram mais de 280 ideias. Temos 17 mil colaboradores na CUF.

É um bom motor de inovação.
É. A medicina é uma área em constante evolução. A evolução antigamente fazia-se muito por novas técnicas cirúrgicas, novos fármacos, novos equipamentos. Agora, chega-nos na forma de algoritmos de inteligência artificial, de apps, de soluções de digitalização, de ferramentas de telemonitorização, teleobservação. São novas peças. É como se, de repente, tivéssemos acesso a novas peças para montar as nossas jornadas de saúde.
Já houve projetos que ficaram pelo caminho?
Já. Já houve projetos que ficaram pelo caminho (risos).
Quais são normalmente as barreiras que encontram? Consegue traçar um ponto comum pelo qual alguns projetos de inteligência artificial acabam por falhar?
Evoluiu-se imensíssimo na inovação e na inteligência artificial. E também temos uma aprendizagem grande que nos ajuda agora a ser um bocadinho mais certeiros. Mas, havia um desafio inicial que era um desafio de adoção: havia um ceticismo grande de médicos, de enfermeiros, de técnicos e de gestores sobre o potencial que nos poderiam trazer estas soluções, e muitas vezes esse ceticismo foi uma das barreiras à adoção de projetos.
Muitas vezes o tema não é tecnologia, porque realmente o algoritmo ou a solução, a ferramenta, vem-nos resolver um problema. Mas é a forma como a conseguimos implementar. Nem sempre conseguimos implementar com sucesso soluções que fazem sentido. Porque, lá está, há barreiras dos próprios profissionais, porque não conseguimos facilitar o processo para que haja uma adoção; o cliente não compreendeu qual era o benefício. É muito difícil manter a atualização, temos todo um core de sistemas que é muito complexo, todas estas integrações, às vezes, são uma barreira que mesmo que a solução faça sentido, íamos ter tanto atrito naquilo que é a adesão que não conseguimos implementar.
Já foi alguma vez um ponto de discussão? Porque algumas soluções de inteligência artificial que se implementam escalam nos custos?
É sempre uma análise custo-benefício. Todas elas têm custos. Mas se compreendemos que existe um custo que depois não tem um valor… é sempre uma análise custo-benefício. O custo existe sempre. Ela pode é ter um benefício superior ao custo. Agora já existe um enquadramento legal diferente e já só avançamos com soluções um bocadinho mais testadas. Quando avançamos com soluções que ainda estão no início, mesmo as que as próprias startups ainda estão a testar e a criar o próprio algoritmo, depois chegamos à conclusão que, se calhar, não têm assim tanto valor acrescentado. E algumas das soluções que depois não adotámos, foi um bocadinho também por isso. Começámos um projeto ainda na fase inicial e depois chegámos à conclusão que não tinha o benefício suficiente para ser implementado.

Falou de alguns fatores internos, também identifica algum fator externo que seja uma barreira à adoção? Alguma coisa que o governo português pudesse fazer para apoiar as empresas a acelerar nesta área?
Acredito muito na iniciativa privada. Não vejo que o Governo nem a legislação sejam um entrave.
Mas podia ser um facilitador?
Obviamente. Estamos a falar da vida humana e da preservação da vida humana e, portanto, o legislador, sinceramente, não tem em mente complicar, tem em mente ser um facilitador. Não sinto que haja uma barreira externa à adoção. Sinto mesmo que nós temos que fazer este caminho de aprendizagem, trabalhar muito com equipas em parcerias, conhecermos muito aquilo que está a acontecer, saber interpretar a lei e incorporar tudo aquilo que tem requisito legal. Sabermos também ter um pensamento ético e crítico sobre aquilo que a inovação nos vai trazer. E essa reflexão, às vezes, é difícil. Porque há muitos pontos de vista. Mas temos de ganhar competências internas também para a fazer. É, sem dúvida, um setor muito dinâmico, porque realmente há muita coisa a melhorar, e, quando há muita coisa a melhorar…
Referiu o AI Act, o Regulamento Europeu da Inteligência Artificial. Algumas pessoas mais críticas temiam que ele viesse a ser uma barreira à inovação. Com o Regulamento já bastante avançado na sua implementação a nível europeu, ele é uma barreira ou faz parte do custo de implementar IA?
Inicialmente, tinha uma posição que foi sendo alterada. E até em conversas com as nossas áreas jurídicas, porque na inovação, temos sempre aquele sentido de: queremos inovar rapidamente e falhar rapidamente e queremos, a todo custo, conseguir impor um ritmo para termos muitos sucessos, alguns falhanços, mas conseguimos ter muitos sucessos. E claro que, quando temos um processo de inovação que nos obriga a passar sempre pela nossa área de compliance, a nossa área da RGPD, a nossa área jurídica, sentimos que, de repente, estamos a ser travados. Mas, na verdade, temos que os encarar como facilitadores, e alguém que nos estabelece muito bem as linhas que não são negociáveis. Os projetos tornam-se muito mais sólidos se passarmos por estas etapas e não quisermos ultrapassar etapas. Porque então vamos ter uma solução que realmente depois tem benefício, é implementável e vai ter valor acrescentado. Não basta só ter uma boa ideia, é preciso que a ideia depois se consiga implementar e, portanto, passar todo este crivo também é uma segurança para a implementação.
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“Havia um ceticismo de médicos, enfermeiros e gestores” com uso da IA
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