A sócia da PLMJ Maria Zagallo considera que a maioria dos diferendos nas PPP não resulta da “qualidade” dos contratos, mas antes de “alterações unilaterais feitas pelo Estado”.
Maria Zagallo é sócia na área de Público da PLMJ. Com mais de 18 anos de experiência profissional em contratos públicos, project finance e parcerias público-privadas, tem-se dedicado à área de projetos e infraestruturas. Tem assessorado entidades públicas e privadas, com destaque para o acompanhamento de concessões e projetos nos setores rodoviário, ferroviário, aeroportuário, portuário, da saúde e da água e dos resíduos.
Mais recentemente, esteve na equipa de assessoria – juntamente com Pedro Siza Vieira – do contrato de concessão entre a Infraestruturas de Portugal e a Avan Norte para a primeira PPP no projeto do TGV Lisboa/Porto pela parte dos financiadores. Este é um dos maiores investimentos de sempre, no valor de 2,3 mil milhões de euros, assegurado pelo Banco Europeu de Investimento e por um conjunto de instituições de natureza diversa, entre bancos e companhias de seguros, que incluíram entidades nacionais, como o Novo Banco, Millennium BCP e Caixa Geral de Depósitos e Caixa BI, bancos internacionais, Natixis Corporate & Investment Banking, BBVA, La Banque Postale e Deutsche Bank.
Antes de entrar na PLMJ, Maria foi coordenadora da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, tutelada pelo Ministério das Finanças, e integrou o Conselho Superior de Obras Públicas, tendo estado envolvida no lançamento e renegociação dos principais projetos públicos. Representou o Estado Português em diversos fóruns nacionais e internacionais em matéria de PPP e grandes projetos, nomeadamente perante instituições europeias e multilaterais e no âmbito das missões e reviews do Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal.
Está responsável, na PLMJ, por uma das áreas onde se perspetiva mais investimento nos próximos anos: infraestruturas. Quais são os grandes projetos do país da próxima década?
Muitos dos grandes projetos que esperamos para a próxima década já podiam ter avançado em décadas anteriores — como o novo aeroporto, a alta velocidade, a modernização da rede ferroviária bem como o reforço do setor portuário.
Finalmente, há condições políticas, técnicas e financeiras para avançar, mas ainda existe alguma cautela por parte dos investidores devido ao histórico de hesitações, avanços e recuos.
O que importa agora é mostrar que se vai avançar e que os projetos saem do papel; precisamos de sinais claros de execução.
A concessão do Lote A da alta velocidade é um ótimo começo, mas o verdadeiro desafio é manter o ritmo e mostrar que Portugal está preparado para concluir.

Como Portugal pode atrair ainda mais investimento estrangeiro em infraestruturas?
Mesmo com toda a capacidade e empenho das empresas nacionais, sem investimento estrangeiro significativo será muito difícil concretizar os grandes projetos que temos pela frente no prazo e na escala desejados.
O desafio maior não é só atrair capital, mas conquistar e manter a confiança dos investidores internacionais (alguns dos quais a estrear-se no nosso mercado), que exigem previsibilidade, estabilidade e sinais claros de que Portugal tem condições para executar e cumprir.
Regras estáveis e bons exemplos serão essenciais. Os investidores não investem em promessas, mas em estabilidade, execução comprovada, com riscos transparentes e equilibrados.
As PPPs são um tema que vem sempre associado a uma ideia de que o Estado não é bom negociador. Verdadeiro ou falso?
Portugal tem hoje uma experiência sólida, estruturas técnicas consolidadas, como a UTAP, e muito mais know-how do que há 20 anos. O desafio é garantir que o Estado aposte nas suas equipas, mantenha talento qualificado, com recursos internos e, quando necessário, externos, para negociar em pé de igualdade com o setor privado.
O Estado negocia tão bem quanto os negociadores que consegue atrair, reter e contratar.
A maioria dos diferendos nas PPP não resulta da qualidade dos contratos, mas sim de alterações unilaterais feitas pelo Estado — seja ao contrato, seja ao seu contexto.
Quais os erros mais frequentes na negociação de contratos de PPP que levam a litígios posteriores?
Hoje, a maioria dos diferendos nas PPP não resulta da qualidade dos contratos, mas sim de alterações unilaterais feitas pelo Estado — seja ao contrato, seja ao seu contexto.
São contratos de longo prazo, tipicamente por 30 anos, e, quando o parceiro público muda de posição, gera instabilidade, aumenta o risco e eleva custos que acabam por pesar no orçamento público.
Veja-se o caso das ex-SCUT — primeiro sem portagens, depois com, e agora novamente sem cobrança. Esta falta de consistência gera custos ou perda de receitas e afeta o equilíbrio e a confiança no modelo.
Que setores têm mais potencial para novas PPP em Portugal?
Em teoria, o modelo de PPP tem uma aptidão setorial transversal, mas é especialmente vocacionado para a estruturação de grandes obras ou serviços públicos.
O que realmente importa é que o projeto seja verdadeiramente relevante para as políticas públicas e que a parceria traga real valor acrescentado.
Com base na experiência que já acumulámos, é razoável que as PPP continuem a oferecer value for money na concretização de grandes infraestruturas — em particular nos transportes, rodoviário e ferroviário, no setor portuário e da saúde, onde já temos experiência sólida e capacidade instalada, tanto no setor público como no privado.

De que forma o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) está a impulsionar novos projetos nesta área?
O PRR não tem um papel central no financiamento direto destas novas grandes infraestruturas. Esses projetos contam — ou espera-se que venham a contar — com outras fontes de financiamento de origem europeia, distintas do PRR.
Mas tem, naturalmente, o seu impacto: desbloqueia investimentos e moderniza a Administração Pública, criando um ambiente mais favorável para crescer e executar outros projetos complexos.
A IA está a mudar a gestão jurídica de infraestruturas (ex.: contratos inteligentes, due diligence automatizada)?
Sem dúvida, a inteligência artificial tem também enorme potencial na gestão jurídica, agilizando tarefas como análise documental, pesquisa e redação contratual em contratos complexos, como as PPP.
O julgamento humano é insubstituível, mais ainda em decisões críticas e na execução de contratos com impactos tão relevantes, mas a combinação da experiência com a IA traz eficiência e permite que nos foquemos no mais importante e no que realmente acrescenta valor.
Um dos maiores desafios dos grandes projetos é, porventura, o mais estrutural: a multiplicidade de interlocutores no setor público, que dificulta o consenso e cria falta de coordenação.
Quais são os aspetos que mais dificultam, do ponto de vista já da regulação, os grandes projetos?
Um dos maiores desafios é, porventura, o mais estrutural: a multiplicidade de interlocutores no setor público, que dificulta o consenso e cria falta de coordenação. Tal como o setor privado é focado e alinhado, o público precisa falar a uma só voz e agir sobre consensos estáveis quantos aos termos essenciais dos projetos, sua prioridade ou timings.
Precisamos de um setor público preparado e unido, regulação clara, ágil e estável e de coragem para tomar decisões, sem deixar que a transparência vire obstáculo à ação.
A alternância governativa tem sido uma dificuldade acrescida?
Sim, porque os contratos duram 30 anos, mas os Governos mudam, na melhor das hipóteses, de 4 em 4. Quando cada novo ciclo político reavalia tudo de novo, com base em critérios políticos e não técnicos, mina-se a previsibilidade e a confiança e disfarça-se a instabilidade política de recomeço.
Felizmente, há sinais muito positivos na nossa experiência recente: temos assistido a uma maior maturidade institucional e à manutenção de consensos e compromissos-chave, mesmo com alternância e ciclos governativos curtos. Sem essa serenidade e coerência na transição, continuaríamos à espera destes grandes projetos.

Sobre o seu percurso: a Maria não teve um caminho tão semelhante aos restantes sócios dos grandes escritórios. Foi cedo para a UTAP, ainda associada da Sérvulo e depois regressou como sócia à PLMJ. Como foi a transição de trabalhar para o Estado para um escritório com as características da PLMJ?
Sempre estive envolvida em concessões e infraestruturas e cada mudança foi encarada como uma evolução e nunca como uma rutura.
Na UTAP, tive a oportunidade de estar diretamente envolvida em decisões-chave e trabalhar em todo o portefólio nacional de PPP, em diversos setores. Para além da assessoria jurídica, liderei também a componente financeira dos projetos, o que me permitiu desenvolver valências complementares e uma visão muito mais integrada. Foi uma experiência única, difícil de adquirir num escritório, que me deu ferramentas para ser uma advogada e uma especialista mais completa.
No regresso à advocacia, a transição para a PLMJ foi muito natural e facilitada precisamente pela abertura da sociedade a integrar perfis com trajetórias menos convencionais. Isso faz parte do ADN da PLMJ: combinar excelência técnica com experiências diversas que trazem valor real aos clientes. Acredito que essa diversidade de backgrounds é uma vantagem clara, que enriquece os projetos e fortalece a resposta que damos aos desafios.
Na UTAP representou o Estado em diversos fóruns nacionais e internacionais em matéria de PPP e grandes projetos, nomeadamente perante instituições europeias e multilaterais e no âmbito das missões e reviews do Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal. Qual foi o momento mais desafiante, em particular na altura em que o país estava sob o PAF?
O período da Troika foi extremamente exigente, com enorme pressão para cumprimento dos objetivos do Memorando de Entendimento. A renegociação das PPP rodoviárias, a maior e mais complexa de sempre, foi um enorme desafio, com grande escrutínio a vários níveis, um verdadeiro case-study.
O outro período especialmente desafiante foi, naturalmente, o da pandemia da Covid-19. Foram, no fundo, dois contextos históricos claramente ímpares que tive o privilégio de viver do lado do setor público, num trabalho sem horas nem pausas, mas rodeada de uma motivação, alinhamento e espírito de missão que não esquecerei.
Lidou com vários ministros das Finanças e respetivos secretários de Estado. Vítor Gaspar, Maria Luís Albuquerque, Mário Centeno, João Leão. Qual foi o mais desafiante?
Tive o privilégio de trabalhar com equipas governamentais de grande qualidade e dedicação, tanto nas Finanças como nas Infraestruturas. É importante ultrapassar estigmas partidários e reconhecer o valor e o compromisso dos decisores e das equipas públicas. Todos beneficiamos de que a causa pública continue a motivar e a atrair talento, apesar escrutínio e dos sacrifícios pessoais que traz.
Ao longo dos meus mandatos, marcaram-me especialmente as equipas da Maria Luís Albuquerque e do Sérgio Monteiro, que lideraram no período intenso da Troika com grande alinhamento e capacidade de resposta. E, de forma mais prolongada, as equipas do Mário Centeno e do Ricardo Mourinho Félix, junto das quais encontrei sempre grande apoio institucional, confiança e independência técnica para os muitos desafios que as PPP enfrentaram nesse período.

Como sócia, lidera equipas de uma geração que é bem diferente da sua quando começou a trabalhar, saída da faculdade. Qual é a maior dificuldade?
Francamente? Acho que acertar na contratação de quem traz o melhor que esta geração mais nova tem, sem ter perdido o que a minha geração trouxe de muito valioso e que, por sua vez, aprendemos com a anterior. Não é fácil dizer isto com todas as letras, mas tentarei. Quando estamos a falar de advocacia, sobretudo a que se pratica nos grandes escritórios como a PLMJ, estamos a falar do que, para a minha geração, era uma espécie de olimpo: trabalho interessante, aprender com os melhores, ter um rendimento muito acima da média. E em troca disto, trabalhávamos muito e não estava no nosso horizonte sequer ponderar se era demais. Estávamos certos? Não sei. Acho que houve exageros. Mas havia sobretudo uma consciência de que fazia parte de começar a vida naquilo que era a realidade dos maiores escritórios do país.
Neste sentido, acho que havia mais resiliência, mais entrega, mais curiosidade, mais vontade de saber e de crescer profissionalmente. Situo o tema da resiliência especificamente neste ecossistema de escritórios porque não posso achar justo exigir o mesmo em profissões e instituições que não conseguem retribuir à altura do empenho e mérito. Diria que a grande dificuldade no dia-a-dia é, para lá do que nos é exigido como advogados, no papel de líderes, é equilibrar resiliência, imprimir motivação permanentemente, conseguir perceber o que os move e em que ponto é que estão, o que nem sempre é óbvio. Mas também dizer-lhes com coragem que ser advogado nesta liga nunca vai ser fácil, nunca vai ser descansado, nunca vai ser previsível. Mas se for disto que gostam, vai ser o melhor desafio intelectual que vão encontrar e terão uma vida confortável.
E a melhor surpresa?
Esta geração tem outras coisas que nos faltavam a nós e que eu prezo imenso: uma capacidade de se fazerem ouvir e uma segurança surpreendentes. Quando conseguimos acertar na conjugação da dimensão que a minha geração tinha mais desenvolvida e de que falei atrás e no que esta geração traz, então estamos na presença do futuro e isso é fantástico de ver.
Estou a pensar, por exemplo, no trabalho de tantos meses que tivemos agora com a assessoria aos financiadores do primeiro troço da Alta Velocidade. A equipa da PLMJ juntava mais de 20 advogados, de várias áreas. Muitos deles dessa geração que já não é a minha. Foram inexcedíveis. Implacáveis. Resilientes. Muitos começaram naquilo pela primeira vez e acabaram a parecer que sempre o tinham feito. Cresceram a fazer. E perceberam que, à escala deles, estavam a construir o país. Eles nunca se vão esquecer disto. E foi possível vislumbrar ali o futuro da advocacia em Portugal. E estamos bem entregues.

Um dos grandes desafios para a profissão e para os escritórios é o tema da retenção de talento. O que acha que funciona e o que deixou de funcionar na geração mais nova?
Um pouco na linha do que dizia atrás, os critérios e mapa de valores e de motivações alteraram-se. Nós reagíamos à evolução na carreira, reconhecimento, componente financeira, reputação. Convencíamo-nos de que o pior era o arranque e depois a coisa ia melhorando e, com esta cenoura à frente, íamos fazendo o nosso caminho. Sem que mudasse grande coisa, sejamos honestos.
Agora não chega. Não é isto. Para lá do óbvio – o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, a previsibilidade do dia-a-dia, remuneração elevada, etc. –, acho que o que funciona assenta sobretudo nos aspetos mais relacionais. Até porque os outros são muito mais fungíveis. É preciso investir muito tempo na qualidade das relações profissionais e até pessoais. É preciso gerir motivação, stress, sprints e maratonas.
Na minha geração, esse trabalho era nosso. Nesta geração esse trabalho é de cada um, mas é também de quem lidera equipas. E não faz mal. Acho que é algo que nos pode ser exigido, desde que não seja uma transferência de responsabilidade. Mas sem dúvida que liderar hoje é muito mais exigente e time-consuming do que quando comecei.
Como organização, temos de oferecer o trabalho mais interessante, as ferramentas mais inovadoras e que os desafiem, reconhecimento, perspetiva de crescimento e de futuro. Na PLMJ tem funcionado muito bem uma cultura pouco hierárquica, de proximidade, pouco formal, bastante livre e impulsionadora dessa liberdade individual. Acho que isto é algo que os mais novos prezam muito e até os surpreende quando aqui chegam. O resto, é ir tentando não falhar demasiado.
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Infraestruturas: “Precisamos de um setor público unido e com coragem para decidir”
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