José António Sousa: “Gestão de sinistros continua a ser má e terrivelmente conflituosa”

O ex-líder da Liberty em Portugal critica o setor, pensa que há mais gosto em falar dos grandes riscos futuros do que em gerir o dia a dia dos problemas de relacionamento com os clientes.

Mais conhecido pelos 15 anos em que foi CEO e presidente da Liberty em Portugal, José António Sousa percorreu México, Venezuela, Suíça, Espanha, na Gerling e na Zurich, antes de regressar a Portugal para a multinacional americana de onde se reformou em 2018. É um entusiasta dos seguros que se mantém atento ao mercado e às tendências e, como consultor independente, observa como se modernizam as estratégias, mas também como as operações no setor segurador em Portugal não evoluem como deviam. Foi entrevistado por ECOseguros.

Tem-se mantido ligado ao setor?

Apesar de andar arredado das lides quotidianas do setor, desde que em Maio de 2018 deixei o lugar de CEO e a presidência de uma seguradora multinacional, o facto é que, quem como eu, trabalhou a totalidade da sua vida profissional de mais de 40 anos num só setor de atividade, e convites para ir para outros não faltaram – desde o setor dos têxteis, o alimentar, o dos rolamentos industriais, o ensino, a banca, etc- , ou é masoquista, ou fê-lo por paixão. Como a minha vida, no tocante a tudo o que fiz e continuarei a fazer até ao fim da linha, é movida a “carburante paixão”, o famoso “pendurar de botas” não significou, de jeito algum que me tivesse desligado do setor segurador, antes pelo contrário.

Está bastante a par do que se passa…

Hoje para mim o acesso à informação é mais complexo, o ECO Seguros tem sido um valiosíssimo companheiro e amigo, porque em muitas áreas dependo de terceiros amigos ainda ativos em posições relevantes no setor segurador, mas continuo a palmilhar o mercado, a frequentar tertúlias ligadas ao setor, e a ler como um possesso. Após o processo de vacinação, com a pandemia ainda a decorrer, não deixei nunca de frequentar círculos de profissionais do setor que me dão uma excelente visão periférica sobre o que o setor segurador enfrenta hoje como grandes desafios. E não tenho que ser eu a resolvê-los. Hoje sou CEO e Presidente da minha vida pessoal, pela primeira vez desde que nasci. E estou a gostar.

Os desafios de “peccata minuta”, comezinhos, vulgares de lineu, que acompanham o setor desde o início, ainda estão longe de ser resolvidos.

Quais as principais mudanças a que assistiu nos últimos anos?

Vou desiludir aqueles que esperavam talvez uma caterva de pensamentos geniais ou fórmulas mágicas para enfrentar e resolver de uma penada os temas complexos e elaborados relativos ao setor segurador, que abundam nos estudos e análises que me vão chegando às mãos. Riscos ambientais e climáticos, economia de partilha e novas formas de mobilidade, envelhecimento demográfico, digitalização, financiamento sustentável, legislação, novas normas e requisitos regulamentares e de solvência, mudanças sociológicas, regresso da inflação – problema que pode vir a ser gravíssimo e até agora tem sido amplamente ignorado, até porque a maioria dos europeus já não sabe o que é viver em inflação -, e uma lista infindável de riscos e desafios certamente sérios e complexos, que no entanto deixarei para serem escalpelizados pelos atores ainda na ribalta do setor. Afinal de contas pagam-lhes bem para que preparem as suas organizações para o embate vitorioso contra esses riscos e desafios.

Os novos riscos são mais complexos comparados com os verificados em épocas anteriores?

Todos os riscos que mencionei não são maiores nem mais complexos do que os desafios que as gerações anteriores de seguradores tiveram que enfrentar no seu tempo. Guerras, recrudescimento do terrorismo, novos riscos complexos, como os associados à vulgarização da energia nuclear para fins pacíficos nos anos 60 do século passado, as brutais crises financeiras nos anos 80, o nascimento da internet em meados dos anos 90. A internet aterrorizou os agentes e corretores de seguros, pois havia seguradoras que acreditavam piamente naquilo que as consultoras andavam a dizer, ou seja que a internet eliminaria o intermediário da cadeia de valor dos seguros ainda antes de o século XX terminar. Depois chegou o papão do Y2K (bug do ano 2000), vendido às empresas, sobretudo ao setor financeiro, como o apocalipse final, permitindo a consultoras finas como o alho cobrar milhares de milhões à indústria seguradora para ajudar a resolver um “problema” que não se revelou como um real perigo de “apagão” e cataclismo informático, etc… E aqui continuamos todos, vivinhos da vida, a escalpelizar os novos e grandiosos riscos e desafios que surgem ao setor segurador com a evolução da sociedade atual, porque desde os primórdios da indústria seguradora, em cada época da história da Humanidade, os profissionais do setor tiveram que enfrentar uma série de desafios perfeitamente ajustados aos tempos que decorrem.

Dentro do setor financeiro, a imagem da indústria seguradora melhorou?

Se olharmos para a História, o setor segurador, pela sua postura de prudência na avaliação e precificação – o termo brasileiro para “pricing”, pois a palavra não existe em português – de riscos, sempre saiu melhor e mais robusto das crises ocorridas do que por exemplo o setor bancário, que tem uma visão diferente do risco. Os bancos tratam de evitar os riscos pelo que, quando os aceitam, muitas vezes não lhes sabem dar o preço adequado, e estouram, ou são salvos pelo Governo português. As seguradoras adoram o risco, aceitam-no porque faz parte do seu ADN, e só aquelas que não aprendem a dar o preço justo e atuarialmente correto aos riscos que assumem, vão ao charco. O setor segurador português é como Las Vegas. O que acontece no setor, resolve-se no setor. Contrariamente à banca, nunca os contribuintes portugueses foram “chamados à pedra” para salvar uma seguradora, e várias houve que desapareceram por pecar no pricing dos riscos ou por gestão danosa.

E quais acha que são os riscos ou desafios mais evidentes?

Não são os desafios grandiloquentes dos estudos das consultoras e das palestras doutrinárias em conferências do setor, mas aqueles de “peccata minuta”, comezinhos, vulgares de lineu, que acompanham o setor desde o início, e ainda estão longe de ser resolvidos.

A “porca torce o rabo” na prestação de serviço quando surgem problemas e diferendos, não necessariamente apenas em caso de sinistro, sempre que se depende de um call center ou do sistema de email da seguradora, passou a ser uma tortura.

Quer exemplificar?

Um dos boletins mais recentes do INESE (boletim espanhol de informação sobre seguros) debruçou-se sobre o “Barómetro ADECOSE 2021”. ADECOSE é uma associação independente de corretores de seguros fundada em Espanha em 1977, com o intuito de defender os interesses coletivos desses profissionais da intermediação de seguros. É uma entidade poderosa, interventora, respeitada e ouvida pelas companhias de seguros. Todos os anos fazem um balanço, mediante um inquérito aos associados, sobre os pontos fracos no relacionamento de cada um com as seguradoras com que trabalha. O curioso é que os pontos mencionados pelos intermediários de seguros do país vizinho no Barómetro ADECOSE 2021, e que para mim constituem os verdadeiros desafios do setor segurador coincidem amplamente com o rol de queixas que ouço informalmente no mercado português, quando frequento tertúlias do setor.

Não existe monitorização do sentir da mediação em Portugal?

Lamento que a APROSE, a entidade portuguesa mais parecida à ADECOSE, não produza e informe regularmente o mercado de forma aberta e transparente sobre o sentir dos seus associados no tocante ao relacionamento com as seguradoras do setor. Deixa este importante tema, que no mercado vizinho vai contribuindo fortemente a promover a melhoria das plataformas de serviço das seguradoras, e consequentemente do serviço prestado ao cliente final, ao arbítrio de conversas em tertúlias informais, e ao “diz que disse”. O setor segurador português nunca foi muito amigo da transparência…

Mas quais as conclusões de Espanha aplicáveis a Portugal?

A principal, e no fundo a mais vergonhosa para o setor, é que a prestação das seguradoras em caso de um sinistro continua a ser má e terrivelmente conflituosa, quer a seguradora trabalhe de forma direta – aí é onde ela é pior -, quer através de um intermediário que consegue acalmar o cliente ao influir positivamente na resolução dos diferendos entre cliente e seguradora. E tem vindo a piorar, ainda por cima, não obstante a digitalização do setor!

A gestão de sinistros é o grande problema?

Continua a ser o calcanhar de Aquiles do setor, a mãe de todos os desafios. Trata-se do “momento da verdade” – Moment of Truth do Jan Carlzon da SAS – do setor segurador e continua a ser aquele desafio que as seguradoras, num setor de atividade económica fundamental para o país, com centenas de anos de existência, ainda não conseguiram resolver satisfatoriamente.

A nível de serviço os indicadores apontam para um bom desempenho do setor face à Covid-19…

Dir-se-ia que a pandemia, ao atirar milhares de pessoas para longos confinamentos fora do seu habitual local de trabalho, iria causar uma séria disrupção de serviços. Mas o facto é que o grau de digitalização da maioria das seguradoras já era muito desenvolvido, e essas não tiveram problemas maiores em continuar a dar uma razoável prestação de serviço regular como envio de apólices e cartas verdes, envio de documentação de cobrança etc.). Onde “a porca torce o rabo” é na prestação de serviço quando surgem problemas e diferendos, não necessariamente apenas em caso de sinistro. Resolver um problema como estorno de prémios, alteração de matrícula ou morada do cliente, agregar uma cobertura, problema contabilístico, etc.), sempre que se depende de um call center ou do sistema de email da seguradora, passou a ser uma tortura.

O atendimento aos clientes não tem melhorado?

Há gente pouco preparada nos call centers, demoram a atender chamadas para além do que é considerado um standard de serviço normal, péssima resposta aos mails enviados, que por vezes ficam semanas de lado sem resposta, apesar de sucessivos lembretes. A que se junta um crescente e preocupante desconhecimento dos interlocutores sobre as matérias em causa, porque as seguradoras aparentemente pensam que a Inteligência Artificial e os algoritmos resolvem tudo. Só atrapalham, quando não acompanhadas de uma boa formação técnica, e do bom senso que só um humano com conhecimentos pode imprimir aos problemas enfrentados.

O atendimento ao cliente era a sua regra de ouro?

Nas companhias a que presidi ao longo da minha carreira, uma regra de ouro do serviço prestado aos nossos parceiros e clientes era : “Resposta em 24/48 horas, seja qual for o tema, e o meio pelo qual nos chegue”. Outra era: “Nenhum telefone toca mais de 3 vezes sem que alguém atenda, mesmo que não seja o “dono” da extensão”. Quem me conhece sabe que demora algum tempo a embutir estas regras no ADN das companhias, mas quem perguntar nos mercados em que trabalhei receberá certamente também a resposta de que era mesmo assim, e esporádicas e ocasionais exceções, devido à complexidade de as concretizar, apenas confirmam a regra.

E que outros problemas com clientes podiam ser ultrapassados?

A falta de diálogo e a falta de transparência nas decisões de aumento de preços, mas parabéns à nossa ASF por ter emitido recentemente uma orientação no sentido de corrigir esse aspeto profundamente negativo no relacionamento com os clientes, ou seja, atirar ao cliente com aumentos brutais e injustificados, tipo barro à parede, a ver se pegam.

Então qual a prioridade? Riscos externos ou internos?

É muito mais excitante e glamoroso falar, por exemplo, dos desafios climáticos, da mobilidade e do envelhecimento da população, mas a solução desses desafios não está dependente da ação do setor segurador. Claro que podemos ajudar com ações complementares concretas, como por exemplo não dar cobertura a empresas ou setores de atividade económica poluentes, mas a resolução desses desafios está nas mãos de uma infindável série de stakeholders na sociedade. Já nos desafios internos, que parecem comezinhos mas são a natureza e essência da prestação de serviço aos nossos clientes, não dependemos de ninguém exógeno, apenas da nossa real capacidade de boa gestão. E o setor está a falhar.

A atenção ao cliente não está ao nível que deveria?

Hoje isso não existe institucionalizado de forma sistemática no mercado, em nenhuma companhia, ou seja perdeu-se uma boa prática diferenciadora no mercado. Assim exorto os players de mercado a focalizar-se nos enormes desafios que o setor tem dentro de portas para se relacionar de maneira saudável e construtiva com os intermediários e clientes, porque são aqueles que não dependem de terceiros para enfrentar e resolver, só da aplicação de boas práticas de gestão, e de uma boa dose de bom senso.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

José António Sousa: “Gestão de sinistros continua a ser má e terrivelmente conflituosa”

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião