“No desporto temos de olhar para a equidade e não apenas para a igualdade”

Stacey Copeland ficou na história do desporto feminino, ao ser a primeira britânica a vencer o título de campeã da Commonwealth. Em entrevista a antiga atleta falou sobre igualdade de género.

No Reino Unido, é impossível falar de pessoas influentes no desporto feminino sem referir Stacey Copeland, uma atleta que não teve medo de seguir as suas paixões e fez carreira em duas modalidade repletas de homens: futebol e o pugilismo. Uma vida dedicada ao desporto: representou a Seleção de Inglaterra no futebol feminino e foi campeã da Commonwealth no pugilismo. Hoje dedica-se a combater a desigualdade de género, com o projeto “Pave the Way”.

O amor pelo pugilismo começou desde muito cedo na sua vida, com apenas 6 anos já frequentava ginásios de boxe e imitava os movimentos dos pugilistas. No entanto, a proibição de escalões femininos no boxe — que durou até 1996 no Reino Unido — levou-a outros caminhos, trocando as luvas pelas chuteiras e uma bola.

No futebol, deu nas vistas e chegou mesmo a representar as cores da Seleção de Inglaterra e a jogar na Premier League feminina. A futebolista ainda passou por Ligas de países como Estados Unidos (Lander University e St. Edward’s University) ou Suécia (Vasalunds IFC).

Após vários anos no desporto-rei, o regresso ao pugilismo foi a sua paragem seguinte. Aproveitando a legalização do boxe feminino, Stacey Copeland decidiu voltar ao seu “primeiro amor” e tentar encontrar o caminho da glória. Inicialmente, enquanto lutadora amadora, conquistou várias medalhas a nível europeu e doméstico. Já como pugilista profissional, o ponto mais alto da sua carreira foi quando venceu o título de campeã da Commonwealth, tornando-se assim a primeira mulher britânica da história a ganhar este troféu.

Hoje é locutora na rádio BBC Manchester e lidera uma plataforma de cariz social criada por si, chamada “Pave the Way“, que tem como principal objetivo combater a desigualdade de género.

Como surgiu o amor ao futebol?

Para ser honesta, não sei bem como o futebol surgiu na minha vida. Não havia ninguém na minha família que jogasse futebol. Por isso não havia uma influência óbvia. Lembro-me apenas de estar na escola primária e olhar para o parque infantil e todos os rapazes jogavam futebol e isso despertou algo em mim. Fui lá ter com eles e juntei-me a jogar e simplesmente adorei. Só me lembro de gostar mesmo muito e a partir daquele momento era tudo o que eu queria fazer.

Na altura em que começou a dar os primeiros passos, como é que era ser mulher no mundo do futebol?

Muito difícil, porque, embora a proibição do futebol feminino tivesse sido levantada neste país [Inglaterra] em 1971, a associação de futebol EFA, não a reconheceram oficialmente até 1993. Por isso, quando estava na escola primária, era estranho porque não tinham equipas ou ligas só compostas por raparigas e, além disso, também não tinham permissão para jogar com os rapazes. Por isso, é uma posição muito estranha de estar, na verdade. Joguei o meu primeiro jogo, que adorei absolutamente, pela equipa da escola. Durante esse jogo, um pai e um treinador da equipa adversária perceberam obviamente que eu era uma rapariga e começaram a gritar para mim, ao ponto de me fazerem sair do relvado. Foi uma sensação horrível. Mas por qualquer por motivo, isso não me fez desistir. Fui para casa, e disse à minha mãe: “Preciso que me cortes o cabelo curto. Ela disse: “O que queres dizer com isso?” E eu respondi: “Bem, eu preciso de jogar futebol. Por isso, preciso de fingir que sou um rapaz”. E foi isso mesmo que ela fez, cortou-me o cabelo curto para eu fingir ser um rapaz e jogar futebol descansada. Esta foi a única solução que me ocorreu na altura.

Cresci sempre a ouvir a mesma história, que não éramos tão boas. Não devíamos estar lá. O nosso lugar não era no futebol. Não era para nós, eu não tinha outra narrativa. (…) É por isso que aprecio a importância de ouvirmos todas as narrativas para que possamos desafiar estas ideias falsas sobre as mulheres.

Vê muitas diferenças na modalidade desde então?

Absolutamente! Mas é algo que não acontece num grande evento ou de repente, mas sim gradualmente. Existem definitivamente marcos que nos fazem parar e perceber o longo caminho que já foi feito. Por exemplo, nos últimos Campeonatos do Mundo de Futebol Feminino grande parte das atletas, neste preciso momento, são profissionais e não amadoras. Os padrões existentes atualmente no futebol feminino são muito melhores e, por causa disso, impulsionaram a criação de mais instalações, recursos, ciência do desporto. Tudo isto, leva ao surgimento de novas oportunidades. Quando olho para a minha experiência, quando recebi a minha primeira chamada à Seleção de Inglaterra, tinha 16 anos e trabalhava numa espécie de fábrica. Fui ter com o meu patrão para pedir uma semana de folga. Ele perguntou-me por que razão precisava de uma semana fora do trabalho. Mostrei-lhe a carta que tinha recebido da Federação de Inglaterra de que tinha sido selecionada para o Campeonato Europeu. Ele não disse realmente nada em relação ao assunto e fez inúmeras piadas, fazendo-me sentir muito pequena. O meu chefe lá acabou por aceitar o meu pedido mas esta interação fez-me sentir estúpida ao pensar que era uma grande coisa jogar não pela equipa de futebol da Inglaterra, mas pela equipa de futebol feminina da Inglaterra. A parte importante sobre isto, para mim, é que tinha crescido sempre a ouvir a mesma história, que não éramos tão boas. Não devíamos estar lá. O nosso lugar não era no futebol. Não era para nós, eu não tinha outra narrativa. Quando ele proferiu aquelas palavras, absorvi-as e acreditei, e senti-me mal. É por isso que aprecio a importância de ouvirmos todas as narrativas para que possamos desafiar estas ideias falsas sobre as mulheres.

Apesar dos significantes avanços no futebol feminino nos últimos anos, como é que se explica o notório pay gap entre homens e mulheres?

O modelo de negócio do futebol não é como qualquer outro desporto, mas baseia-se em receitas, desde a venda de bilhetes ao merchandising. Uma das razões que ainda não equilibrámos as coisas é porque o futebol feminino ainda não gera tantas receitas. Essa é a resposta óbvia. Ninguém diz que se deve obter automaticamente a mesma quantia de dinheiro. Ter 200 pessoas a assistir é diferente de ter 90 mil. Temos de olhar para a equidade e não apenas para a igualdade. Por isso, não creio que as mulheres devam ser pagas exatamente o mesmo que os homens neste momento, até que, obviamente, as receitas estejam lá. Mas há muitas razões pelas quais as receitas não estão lá. Não é porque ninguém as queira ver, por não ser bom, etc. É porque o jogo não tem tido a mesma oportunidade de se desenvolver. Não tem tido o mesmo modelo de negócio aplicado. Não tem aparecido na televisão para que as pessoas possam conhecer as jogadoras e queiram ir vê-las. Quando tudo isso estiver no seu devido lugar, então o jogo vai crescer tal como a Premier League cresceu. Antigamente, os homens não ganhavam nada parecido com o que ganham agora. Assim, quando essa equidade for abordada, então talvez haja a oportunidade para que aconteça uma mudança.

Não creio que as mulheres devam ser pagas exatamente o mesmo que os homens neste momento, até que, obviamente, as receitas estejam lá. Mas há muitas razões pelas quais as receitas não estão lá. (…) É porque o jogo não tem tido a mesma oportunidade de se desenvolver. Não tem tido o mesmo modelo de negócio aplicado.

Mas não acha estranho inúmeras marcas de renome defenderem a ideia de empowerment das mulheres em muitas das campanhas publicitárias, mas em momentos-chave, na altura de patrocinar as atletas, o mesmo não acontece?

Precisamos de deixar espaço para que essa mudança aconteça. Porque vai levar tempo. Para algumas empresas, é novo trabalhar com atletas do sexo feminino, nunca o fizeram antes. Isto demora o seu tempo, mas desde que comece a surgir na agenda e que aprendam com os erros, devemos deixar espaço para que esse progresso e essa mudança apareçam. É verdade que nunca acontece suficientemente rápido para mim, quero isso já, mas ainda assim deixo espaço para que as coisas aconteçam.

Depois de vários anos ligada ao desporto-rei, decidiu mudar-se para o pugilismo. Como surgiu esta mudança?

Adorava os dois desportos quando era criança. Cheguei a praticar pugilismo antes do futebol e até já estava pronta para competir, no entanto, o meu avô, que sempre esteve ligado a este desporto, disse-me que não podia combater porque era ilegal para mulheres. Na altura, pensei que era algo muito estranho e absurdo, porque quando pensava em alguma coisa ilegal, vinha-me à cabeça a ideia de crime. Como é que praticar desporto era contra a lei? Mas era assim que as coisas funcionavam. Por isso, nunca consegui realizar os meus sonhos no boxe. Posto isto, adorava futebol e, obviamente, acabei por entrar nesta modalidade desportiva. Na altura, as oportunidades começavam a surgir porque já haviam equipas e Ligas só compostas por raparigas. Passados uns anos mais tarde, depois de ter feito tudo o que queria fazer no futebol, que era jogar a final da Taça FA, atuar no estrangeiro e representar a Seleção de Inglaterra, decidi arriscar no boxe feminino, é claro, naquela altura já era legal (risos). E assim foi.

Houve alturas em que me lembrei de que algumas pessoas não acham que é apropriado para as mulheres combaterem, acham que não são femininas.

Num desporto que é muitas das vezes conectado à masculinidade, como foi a sua experiência no pugilismo?

Em termos do que era ser uma pugilista, era provavelmente o mesmo que ser um atleta masculino, ou seja, treinava todos os dias e estava focada no desporto. Mas fora dessa bolha, obviamente estava ciente do que me rodeava. Os meios de comunicação social nunca deixam que se esqueça. Houve alturas em que me lembrei de que algumas pessoas não acham que é apropriado para as mulheres combaterem, acham que não são femininas. Há muita gente que não se importa que as mulheres pratiquem desporto, mas não desportos de combate, devido à sua visão do que significa ser feminino. Mas é algo que nunca me impediu de continuar, estava a fazer o que amava, além disso, nunca pensei que não era feminina o suficiente. Continuo igual a mim mesma, quer esteja encaixada no estereótipo feminino, quer esteja a cuidar das minhas sobrinhas e a ser uma tia carinhosa, ou a praticar o desporto que tanto amo.

Desde que começou, o que mudou na modalidade?

Mudou imenso. Como em qualquer mudança, vemos várias fases em que o início, quando é algo novo, é muitas vezes comparado com o ridículo, particularmente se for alguém a ir contra a norma social, como aconteceu com as mulheres fazerem pugilismo. A fase de ridicularizar foi aquela que demorou mais no pugilismo feminino. Mas depois com o surgimento de mulheres pugilistas de grande qualidade, este desporto começou a criar algum buzz, pois as pessoas vão ver os combates e acabam por dizer: “Bem, eu não gosto muito do boxe feminino, mas ela é muito boa”. E assim se começou a discutir o assunto. Portanto, depois das fases de ridicularização e discussão, surgiu a aceitação, onde as pessoas passam a legitimar as pugilistas. Ainda não chegámos a esse ponto totalmente. Mas estamos muito perto.

Ao contrário do pugilismo, o UFC é um desporto de combate que desde muito cedo tem apostado na modalidade feminina. Como explica isso?

Desde já, tem sido muito interessante olhar para o caso do UFC, porque tiveram mais oportunidades para as mulheres logo desde o início. E é um desporto relativamente novo em comparação com o pugilismo. Portanto, na minha opinião, talvez o papel do homem não esteja tão enraizado como no boxe. Mas é, é ótimo de se ver. Não assisto ao UFC, mas fico contente por haver oportunidades para todos.

A saúde mental dos atletas também tem sido um dos temas mais destacados dos últimos meses, muito ampliado nos Jogos Olímpicos. Acredita que a partir de agora esta questão irá receber a atenção que merece?

Espero que tenha algum impacto, claro, porque temos agora atletas de alto nível a questionar práticas que estão enraizadas há muito tempo. Ganharam uma voz e as redes sociais ajudaram de uma forma positiva a realçar os problemas que estes atletas têm vindo a sofrer.

Penso que num ambiente de alta pressão, é necessário tratar o atleta como um ser humano, não apenas como uma máquina de conquistar medalhas.

O que pode ser feito para evitar que os atletas sofram de problemas de saúde mental?

Depende de cada atleta. Há tantas maneiras de responder a isso. Num ambiente de alta pressão, quando se trata de medalhas, é necessário tratar o atleta como um ser humano, não apenas como uma máquina de conquistar medalhas. Também é necessário um encorajamento aos atletas para praticarem atividades fora do seu desporto de eleição, para evitarem entrar numa espécie de bolha. Estes são alguns dos exemplos, mas depende muito de cada desporto e da estrutura que está por detrás.

Depois de arrumar a bola e pendurar as luvas, decidiu dar um rumo novo à sua vida e criou assim o projeto “Pave the Way“.

O “Pave the Way” começou como um projeto autofinanciado há quatro anos. Nessa altura, estava a realizar eventos, como por exemplo exposições de fotografia. No início, tratava-se apenas de raparigas e mulheres no desporto, mas no próximo ano vamos ter estatuto de caridade e iremos abranger um quadro mais amplo. Agora envolve também rapazes, raparigas, homens e mulheres, porque estas questões de desigualdade de género são coisas que afetam toda a gente e não é só no desporto. Também se verificam exemplos de desigualdade em vários aspetos das nossas vidas, como por exemplo no local de trabalho. A premissa do nosso projeto é como podemos tornar melhor o mundo em termos de igualdade de género.

Mesmo ainda sem ter estatuto de caridade, o projeto tem sido bem recebido pelo público?

Sim, absolutamente. De facto, as pessoas relacionam-se com esta temática muito mais do que imaginava, porque esta questão afeta de mais formas do que a minha perspetiva, a minha lente é através de uma mulher no desporto, mas há mais exemplos, como a perspetiva da mulher no local de trabalho, um homem na área da dança, e assim por diante. E ver isso, tem sido uma aprendizagem muito boa para mim.

Quando tudo está alinhado, podemos fazer coisas incríveis, tal como os homens, não tenham dúvidas

No futuro, o que gostaria de ver no desporto feminino?

Tantas coisas, mas principalmente a aceitação e a oportunidade, porque o talento está lá. Podem dizer o contrário, mas ele está lá. Quando tudo está alinhado, podemos fazer coisas incríveis, tal como os homens, não tenham dúvidas. Por isso, gostaria mesmo de ver oportunidades para todos de forma a conseguirmos atingir grandes feitos.

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