Paula Franco, bastonária da OCC, considera que é preciso ir mais longe nas medidas de simplificação fiscal, apontando para a criação de um número de contribuinte específico para os recibos verdes.
O Governo avançou com um pacote de simplificação fiscal, com o objetivo de reduzir os custos de cumprimento das obrigações fiscais. Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), considera, em entrevista ao ECO no âmbito do Orçamento do Estado para 2026, que “ficou muito aquém”.
Para a bastonária, é preciso haver um alívio do calendário fiscal, mas também apostar na criação de um número de contribuinte específico para os recibos verdes para facilitar a afetação de despesas no IRS à atividade profissional e melhorar o sistema associado ao IRS automático, de maneira a facilitar o cumprimento das obrigações fiscais das empresas e contribuintes.
Ainda no tema da fiscalidade, Paula Franco considera positivas algumas das propostas apresentadas pela Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuintes, mas afirma que é preciso considerar outras medidas, nomeadamente a criação da figura de um mediador entre os contribuintes e a Autoridade Tributária.
Relativamente ao pacote de simplificação fiscal, o Governo já colocou no terreno algumas medidas. Que balanço faz até ao momento das iniciativas aprovadas, sendo que muitas delas ainda não saíram do papel?
A Ordem propôs muitas medidas de simplificação. Vemos algumas incluídas, mas a maior parte ainda sem estar a ser de alguma forma operacionalizada, mas ainda assim ficou muito aquém. A redução de obrigações [fiscais] é uma das [medidas] que são mais necessárias. Temos agora este novo ministro da Reforma do Estado, que espero que consiga efetivamente concretizar medidas que simplifiquem verdadeiramente a vida das empresas e do cidadão.
Que sugestões deram nesta matéria?
Uma das sugestões que fizemos teve a ver com o número de contribuinte de quem tem atividades empresariais. O sistema da Autoridade Tributária tem vindo a melhorar. Hoje já é possível selecionar as entidades do mesmo número de contribuinte e depois o contribuinte tem a opção de a escolher, mas ainda exige esta escolha. Se houver um número de contribuinte diferenciador, com um dígito, que, aliás, era o que existia no passado, vai permitir, por exemplo, eliminar muitas destas barreiras que temos na obrigatoriedade de validação de faturas e o tempo que se perde a fazer todos estes processos.
A Ordem propôs muitas medidas de simplificação. Vemos algumas incluídas, mas a maior parte ainda sem estar a ser de alguma forma operacionalizada, mas ainda assim ficou muito aquém.
Tem novidades em relação a esta matéria?
Não temos novidades. Isto iria simplificar muito a vida ao cidadão comum que não tem um contabilista certificado, que não tem um profissional a acompanhá-lo e que tem de validar as faturas. Não estou a dizer que o ponto onde estamos agora não tem pontos muito positivos para os contribuintes. Tem. Temos um IRS automático que de alguma forma é positivo, ainda não se tem a confiança completa. Embora este sistema seja muito positivo, estamos a privilegiar o cidadão que está informado. Não é a esmagadora maioria dos portugueses que consegue acompanhar e saber bem em que é que este processo se traduz e o que é que interfere na sua liquidação final do IRS.
No final de junho, a Unidade Técnica de Avaliação Tributária e Aduaneira (Utax) entregou um relatório com uma proposta dos benefícios fiscais que devem ser eliminados. Que leitura faz desse estudo?
Os benefícios focais dão-me sempre um duplo sentimento. Acho muito positivo e gosto da existência de benefícios fiscais porque têm normalmente o objetivo de mudar comportamentos e, portanto, é utilizar a fiscalidade para levar a que as empresas adotem certos comportamentos, como incentivar o investimento. O problema dos benefícios fiscais é que tem imensos riscos. E nós, contabilistas certificados, conhecemo-los melhor que ninguém.
Que riscos são esses?
A legislação nem sempre é simples. O legislador tem uma tarefa muito grande pela frente, que é ser cada vez mais simples e objetivo quando elabora ou propõe qualquer alteração ou nova medida que tenha muitos condicionantes. E o que acontece nos benefícios fiscais, porque quer mudar comportamentos, mas também quer ser exigente em relação às empresas e aos contribuintes, é que tem muitos condicionantes. O que tem acontecido na prática é que só utiliza benefícios fiscais quem está bem assessorado por consultoras que o ajudam a interpretar esses mesmos benefícios fiscais ou contabilistas mais arrojados que de facto vão procurar aplicar [esses benefícios], mesmo sabendo que a Autoridade Tributária está constantemente a interpretar as condições de forma diferente.
Os benefícios fiscais acabam por se traduzir em risco para as empresas, em falta de confiança no sistema e isso aí faz com que eles não sejam tão aplicados quanto deveriam. Acabam por ficar num segmento de empresas e não serem transversais para todas porque as empresas têm medo – e a palavra certa é esta – medo de os aplicar porque depois vão ser corrigidos e obviamente que depois têm de devolver todos esses montantes à Autoridade Tributária.

Devia haver a eliminação de alguns desses benefícios?
Se calhar, alguns já não fazem sentido nesta altura. Mudaram comportamentos, as situações já estão assimiladas e agora temos de procurar outros. Por outro lado, a eliminação dos benefícios fiscais também acaba por ser benéfica porque reduz o risco que as empresas têm e a falta de confiança no próprio sistema. Se reduzirmos os benefícios, reduzimos a legislação complexa que está associada a esses benefícios.
Os benefícios fiscais têm muitos ‘ses’. E quando há ‘ses’, em regra, a legislação não é aplicável ou traz muitos riscos. Os últimos benefícios têm-se traduzido nisso. As empresas praticamente não os podem aplicar porque os riscos são muito grandes, os ‘ses’, a falta de clarificação na sua interpretação traz falta de confiança a todos os utilizadores e, portanto, acabam por não fazer tanto sentido.
Que outros benefícios deviam ser eliminados?
Não digo que tenham de ser eliminados. Tem é de se fazer uma reflexão sobre os benefícios fiscais e ver aqueles que ainda têm aplicação ou não. Sou das que defendo a existência de benefícios fiscais e, portanto, acho que até poderíamos ir mais além e adaptá-los às circunstâncias do mercado atual. Por exemplo, uma medida incentivadora à criação de postos de trabalho. Se calhar, já não é tão importante agora que nós até estamos em pleno emprego. Mas talvez seja importante adotar essa medida para que as empresas possam aumentar salários para reter os trabalhadores. Agora já não é um problema de contratação, é um problema de retenção.
Os benefícios fiscais têm muitos ‘ses’. E quando há ‘ses’, em regra, a legislação não é aplicável ou traz muitos riscos [para as empresas].
Recentemente foi apresentado o relatório da Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuintes. Que propostas destacaria como mais relevantes para empresas e contribuintes?
Também fomos ouvidos nessa comissão. Tem medidas importantes na simplificação, mas, claro, pode-se sempre ir mais longe. O relatório foi apresentado numa conferência e muito foi ali discutido. Mas tudo foi parar à discussão de como se elimina o contencioso, como é que podemos evitar chegar à litigância. Muita da legislação do contencioso tributário é também para evitar e garantir os direitos dos contribuintes, porque temos uma Autoridade Tributária ainda muito conservadora. Tem mudado muito positivamente em muitos aspetos, mas ainda tem um caminho a fazer no sentido de valorizar as empresas e não achar que estão todas a fugir aos impostos.
Há uma medida [no relatório da comissão], por exemplo, que é de quando se comprovar que há má fé por parte da Autoridade Tributária poder agir em função disso, mas acho que são sempre mecanismos que são muito difíceis de provar. Provar má fé é uma coisa muito difícil. Acho que se podia ter ido em alguns pontos mais além.
Que propostas destacaria como positivas?
Há um alargamento do prazo dos quatro anos para a correção dos autos de autoliquidação, de IVA e IRC, que já era, no fundo, um prazo que a Autoridade Tributária tinha, mas aos contribuintes entendia que eram dois anos, embora os tribunais já viessem a dar razão aos quatro anos. Foi a clarificação de que efetivamente são os quatro anos para os dois lados em medida de revisão do contencioso, e essa acho positiva.
Depois temos alguns mecanismos de melhoria na parte procedimental e de melhoria no diálogo entre a Autoridade Tributária e os cidadãos. São positivos. Mas acho que se podia ter ido mais além. Por exemplo, medidas que a Ordem propôs e que não vemos nesta proposta e que achamos que era muito importante. Por exemplo, a criação de uns mediadores findo um processo de inspeção. Hoje em dia, num processo de inspeção, há um direito de audição que raramente é aceite e as empresas veem-se logo na contingência de pagar as correções que a autoridade tributária faz, sem poder ter ninguém a intermediar estas situações. O processo seguinte é normalmente uma reclamação graciosa ou mesmo até ao recurso hierárquico que normalmente também não muda a decisão. Depois, as empresas têm de ir a tribunal litigar para fazer valer a sua razão.

No fundo, era a existência de um mediador na Autoridade Tributária?
O mediador não era na Autoridade Tributária, era entre partes independentes. Por exemplo, após uma inspeção, deveria haver um coletivo colegial, com três elementos, por exemplo, um da parte da Autoridade Tributária, um da parte do contribuinte e um independente. Tal como hoje temos os árbitros do Tribunal Arbitral, poderíamos ter uma listagem de pessoas idóneas, com competências, para poder intermediar. Esta equipa colegial é que decidiria se efetivamente a decisão que foi feita de correção se mantinha ou não. Isto antes de se ir para tribunal. Porque depois em tribunal tem todo um dispêndio completamente diferente de recursos.
O Governo pretende alargar a arbitragem a litígios com o Fisco acima dos 10 milhões de euros. Considera que este teto deveria ser alterado?
Acho positivo e que não deve ter limite. Acho que deve estar acessível para todos os valores e, portanto, acho que é uma medida muito positiva. Por exemplo, uma das que também sugerimos foi o alargamento a processos de Segurança Social. Não estão e agora ainda são todos tratados em sede normal e, portanto, há processos de Segurança Social que demoram 10, 15 anos.
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Pacote de simplificação fiscal “ficou muito aquém”
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