A app anti-covid não faz milagres nem provou a sua utilidade

O jornalista Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal" e esta semana analisa os resultados da aplicação de rastreio StayAway Covid.

A reação generalizada dos juristas repudiando a proposta de António Costa para obrigatoriedade da app anti-covid – incluindo João Tiago Silveira, o coordenador do último programa eleitoral do PS – indicia que a proposta poderá ter curta vida. Aliás, é uma proposta que contraria as orientações da OMS e as regras da União Europeia. O próprio Governo já diz que ficará confortável qualquer que seja a decisão do Parlamento sobre a obrigatoriedade da app. A Comissão Nacional de Proteção de Dados é frontalmente contra, o Presidente da República já deixou claro que enviaria tal iniciativa para o Tribunal Constitucional, as dúvidas sobre a sua constitucionalidade são mais que muitas, e até Rui Rio as levantou, apesar do PSD ter sido o único partido da oposição que não pôs de parte a hipótese de obrigatoriedade.

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Mesmo o criador da app lembra que esta foi concebida para utilização voluntária, e lamentou o “ruído” criado pelo primeiro-ministro ao lançar a ideia de obrigatoriedade – que, de resto, é recusada em todos os países da UE. (Se quer saber como funciona a app, este texto do Público é útil.)

A principal dúvida de Rui Rio não foi sobre legalidade ou constitucionalidade da ideia, mas outra: a eficácia da app. É uma boa dúvida, para a qual não há resposta. O mais que se pode afirmar é que não está provada a eficácia deste tipo de instrumento para prevenir novos contágios ou quebrar cadeias de transmissão. Há fortes indícios de que a eficácia é baixa. Mas há estudos científicos para todos os gostos.

A Lancet Digital Health publicou uma investigação exaustiva feita por uma equipa da University College of London a partir da revisão de mais de quatro mil estudos sobre sistemas de rastreio de contacto automáticos e semi-automáticos. Tudo o que foi escrito sobre o assunto entre janeiro de 2000 e abril deste ano foi passado a pente fino à procura de dados que possam esclarecer sobre a eficácia destes sistemas de rastreio eletrónico.

Desse manancial de 4036 papers analisados, quinze foram considerados relevantes para avaliar a potencial eficácia de aplicações como a Stayaway Covid no combate ao coronavírus.

  • Primeira conclusão: “Não foi encontrada evidência empírica da eficácia do rastreio de contacto automático”.
  • Porém, “os estudos sobre rastreio de contactos parcialmente automatizados [ou seja, conjugados com rastreio manual] resultaram em geral numa identificação de contactos e follow-up mais completos, em comparação com os sistemas [apenas] manuais”.
  • O contact tracing automatizado pode potencialmente reduzir a transmissão, desde que a adesão da população seja grande – é referida a fasquia de 3/4 da população.
  • São necessários mais estudos para se ter certezas sobre a eficácia desta tecnologia.

Se há uma frase que resume o estado da arte, é de Isobel Braithwaite, principal responsável pelo estudo: “Não podemos olhar [para as apps] como uma bala mágica“. Pode ler aqui o estudo na íntegra, ou aqui um artigo de resumo.

Sem meios humanos não há milagres

Um estudo da Universidade de Oxford e da Google Research, divulgado no início do mês, conclui que as aplicações desenvolvidas com base na tecnologia da Google e da Apple, como a StayAway Covid, podem ajudar a controlar os contágios, mesmo com um nível baixo de downloads (sim, o facto de a Google investigar a sua própria criação pode justificar algum ceticismo, que o prestígio da Universidade de Oxford talvez equilibre… – por outro lado, esse trabalho ainda não foi submetido à revisão pela comunidade científica).

De acordo com esta investigação, que trabalhou sobre diversos cenários de utilização da app, esta é sempre um instrumento útil, com “potencial para uma redução significativa de casos de coronavirus, hospitalizações e mortes”. Uma conclusão que vai de encontro ao que já dizia, há vários meses, outro estudo: não é preciso chegar à mítica fasquia de 60% de utilizadores numa população, pois as apps têm um “efeito de proteção”, e evitam mortes e infecções, mesmo com “níveis muito mais baixos” de utilização.

Segundo um dos investigadores da Universidade de Oxford, as simulações demonstram que é possível reduzir as infeções em 15% e as mortes em 11% desde que 15% da população use uma app de rastreio de contactos e exista, em simultâneo, “uma equipa robusta de rastreio de contacto manual.”

Esta é a questão: sem meios humanos suficientes para rastreio de contactos, uma app não faz milagres. Como diz o título deste artigo da MIT Technology Review, “As apps de contact tracing são só uma parte da luta contra a pandemia”.

A escassez de recursos humanos para o rastreio de contactos em Portugal é um problema desde o início da pandemia. Os estudos dizem que é preciso um rastreador por cada três mil habitantes – os dados por cá são desconhecidos, mas a realidade está a milhas dessa média. Ontem, a Saúde anunciou que vão ser recrutados estudantes de enfermagem para apoiar os médicos de saúde pública nessa tarefa (a Alemanha faz isso há meses).

A desilusão com as apps de contact tracing é bastante generalizada. Um bom exemplo é Itália: começou por ser notícia a enorme adesão popular ao Immuni, com mais de dois milhões de descargas em dez dias. Segundo um artigo desta semana do La Reppublica, oito milhões de italianos têm a app; mais de oito mil pessoas foram notificadas de que podem ter estado em contacto com um infetado; só 13 casos foram identificados graças às notificações. Luís Aguiar-Conraria fez contas e concluiu que este projeto “ficará para a história como um estudo de caso de projetos inúteis”.

Os países onde a app tem dado melhor conta do recado conjugam uma aposta forte nos dois tipos de rastreio: manual e com a ajuda de smartphones. É essa a lição de países como a Irlanda, a Alemanha ou Singapura, que foi dos primeiros territórios a lançar esta ferramenta.

Em Singapura, a app TraceTogether foi descarregada por cerca de 42% da população – não era obrigatória, mas, num regime tão musculado, bastou que as autoridades recomendassem “fortemente” a sua utilização. E era mesmo uma obrigação para alguns, como os funcionários públicos e os trabalhadores imigrantes, que vivem concentrados em dormitórios com reduzidas condições de salubridade.

Mesmo assim, o território só conseguiu ser bem sucedido graças a uma combinação de tecnologia, uma extensa rede manual de rastreio de contactos, uma política agressiva de testagem, controlo de fronteiras e uma estratégia de comunicação… digamos… impositiva. Só por um dia ultrapassou os mil contágios, tem um total de 57 mil casos, apenas 28 mortes, e está desde agosto abaixo de vinte novas infeções por milhão de habitantes (a população são 5,7 milhões).

A Europa preocupa-se mais com direitos, liberdades e garantias do que Singapura. Apesar disso, há bons exemplos de sucesso da app, por exemplo, na Alemanha e na Irlanda. Este artigo resume os três grandes conselhos dos responsáveis nacionais por essas aplicações:

  • Cada caso é importante: não vale a pena pensar que é tudo ou nada. Colm Harte, diretor da companhia que desenvolveu a aplicação irlandesa, diz que “mesmo que se quebrem poucas cadeias de transmissão com a app, isso já é um sucesso.”
  • Gerir expetativas: a app não faz milagres. “O governo alemão disse que usaria todos os instrumentos disponíveis, incluindo métodos tradicionais como testes, distanciamento social, máscaras e rastreio de contactos manual, combinados com tecnologia”, diz o líder de desenvolvimento da app alemã.
  • Trabalhar com transparência: partilhar toda a informação disponível, ao público e à comunidade científica.

Ou seja, há muito por fazer – e provavelmente com mais eficácia – antes de decretar obrigatoriedades de legalidade duvidosa.

Em todo o caso, a polémica e o “abanão” lançados por António Costa já tiveram um resultado: uma corrida (voluntária) à app, com 400 mil downloads em dois dias. Já foi descarregada por quase dois milhões de portugueses – ou seja, cerca de 20% da população, o que coloca Portugal com uma boa taxa de cobertura em comparação com outros países europeus. Tendo em conta que só 6,2 milhões de portugueses têm telemóveis compatíveis com a app (a informação é do InescTec, que desenvolveu a aplicação) o resultado é ainda melhor: 1/3 já a tem.

Se há profecias que se autocumprem – como a ideia de que não vale a pena descarregar a app porque não está suficientemente disseminada – pelos vistos também há abanões que abanam mais do que seria suposto.

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