Mais de 10 anos após o início da investigação, Sócrates vai finalmente a julgamento, acusado de 22 crimes no âmbito da Operação Marquês. Um dos mais mediáticos processos arranca dia 3 de julho.
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Em julho de 2013, o empresário Carlos Santos Silva despertou a atenção das autoridades judiciárias através de uma investigação que tinha começado em 2011. Um ano e quatro meses depois, José Sócrates foi detido em direto nas televisões, à saída do aeroporto de Lisboa, vindo de Paris. E com ele, também o amigo Carlos Santos Silva. Em novembro de 2014, o país e o mundo ficaram a conhecer o que se viria a tornar num dos processos mais mediáticos da justiça portuguesa, a “Operação Marquês”.
Inicialmente, o processo reunia 28 arguidos, entre os quais 19 pessoas singulares e nove pessoas coletivas, num total de 188 crimes. No leque de visados, além do ex-primeiro-ministro José Sócrates, que chegou a estar preso preventivamente durante cerca de dez meses e 42 dias em prisão domiciliária, estava Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, antigos quadros da então Portugal Telecom, Ricardo Salgado (BES) e Carlos Santos Silva (grupo Lena).
Neste processo, o Ministério Público (MP) reclamava aos arguidos um total de 58 milhões de euros, tendo arrestado vários bens. Segundo as contas da acusação, José Sócrates teria dado cerca de 21 milhões de euros de prejuízo ao Estado, Zeinal Bava cerca de 16 milhões, Henrique Granadeiro cerca de 14 milhões, Carlos Santos Silva três milhões e 300 mil euros, Ricardo Salgado três milhões de euros e Armando Vara 1,4 milhões de euros.
Mais de 10 anos depois, começa, a 3 de julho, o julgamento de Sócrates que está acusado de 22 crimes — três de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal. Mas será que o passar dos anos, desde o início da investigação, pode vir a resultar num impacto negativo na decisão final? Os advogados consideram que sim.
“Esta excessiva demora afeta, antes do mais, o bom nome, a honra e a dignidade do arguido que tem direito à paz jurídica. Importa sublinhar que esta demora, numa segunda linha de importância, também prejudica o Ministério Público, enquanto representante do Estado na perseguição dos criminosos”, sublinha o advogado Carlos Melo Alves.

Para o sócio fundador da Melo Alves, quase toda a prova tem de ser recriada em julgamento e, volvidos todos estes anos, os diversos intervenientes, como as testemunhas, já não têm os factos “tão vivos” para os relatarem e “assim descobrir-se a verdade material”. “O fundamento legitimador da pena é a prevenção especial e geral. Após mais de dez anos dificilmente se atinge a ressocialização do condenado, pois, este, entretanto, deu um novo rumo à sua vida sendo muito questionável a aplicação de uma pena de prisão”, acrescenta, sublinhando que a dissuasão pretendida com a condenação do arguido perde sentido decorridos vários anos após a prática dos factos.
Também a of counsel da Antas da Cunha Ecija, Ana Raquel Conceição, acredita que o decurso do tempo pode ser um risco. “É objetivo que tudo nesta vida tem um prazo e a responsabilidade criminal não é uma exceção, daí que existam prazos de prescrição do procedimento criminal e das penas”, nota.
Para a advogada, o primeiro impacto negativo que identifica é o “risco de prescrição dos crimes”, que é uma causa de extinção da responsabilidade. Por outro lado, a morosidade de um processo tem ainda um outro impacto nefasto: o esquecimento. “O decurso do tempo também leva ao esquecimento, como se costuma dizer, o tempo tudo cura, assim, a eventual prova testemunhal ou por declaração a produzir poderá perder-se pois, os factos já terão ocorrido há muito tempo e a memória dos acontecimentos já se desvaneceu”, refere. A advogada alerta ainda que o tempo decorrido permite a passagem de uma imagem à sociedade de uma justiça “demasiado lenta” e este “desacreditar no funcionamento da justiça deve sempre ser evitado”.
Como reagiu Sócrates?
No dia em que a juíza Susana Seca agendou o arranque do julgamento da “Operação Marquês” a defesa de Sócrates não marcou presença em tribunal. Ainda assim, o antigo primeiro-ministro não poupou críticas: o que “fica destes 12 anos de processo Marquês é o seu miserável rasto de abuso e de violência”.
Para Sócrates, o Estado “manipulou a distribuição do processo, vigarizou a escolha do juiz do inquérito, transmitiu a detenção no aeroporto e justificou a prisão preventiva com perigo de fuga, embora o visado estivesse a entrar no país, não a sair”. O arguido admitiu também recorrer da decisão, considerando que no processo não há “nem pronúncia nem acusação para sustentar um julgamento”.
O antigo primeiro-ministro foi acusado pelo MP, em 2017, de 31 crimes, designadamente corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal, mas na decisão instrutória, a 9 de abril de 2021, o juiz Ivo Rosa decidiu ilibar o antigo governante de 25 dos 31 crimes, pronunciando-o para julgamento apenas por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos.
Em janeiro de 2024 uma decisão da Relação recuperou quase na totalidade a acusação do MP na “Operação Marquês”, determinando a ida a julgamento de 22 arguidos por 118 crimes económico-financeiros, revogando a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, que remeteu para julgamento apenas José Sócrates, Carlos Santos Silva, o ex-ministro Armando Vara, Ricardo Salgado e o antigo motorista de Sócrates, João Perna.
Em janeiro de 2024 uma decisão da Relação recuperou quase na totalidade a acusação do MP na “Operação Marquês”, determinando a ida a julgamento de 22 arguidos por 118 crimes económico-financeiros, revogando a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, que remeteu para julgamento apenas José Sócrates, Carlos Santos Silva, o ex-ministro Armando Vara, Ricardo Salgado e o antigo motorista de Sócrates, João Perna.
Em julgamento vão também estar Carlos Santos Silva, empresário e amigo do ex-primeiro-ministro, acusado de 23 crimes; Joaquim Barroca, ex-administrador da construtora do Grupo Lena, acusado de 15 crimes; José Pinto de Sousa, empresário e primo de José Sócrates, acusado de dois crimes; Hélder Bataglia, empresário, acusado de cinco crimes; Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates, acusada de um crime.
A decisão da Relação de Lisboa de janeiro de 2024 recuperou ainda para a acusação arguidos parcial ou totalmente ilibados por Ivo Rosa, como o ex-banqueiro e presidente do BES, Ricardo Salgado, que voltou a estar acusado de corrupção; e os antigos administradores da Portugal Telecom, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro. Salgado vai responder agora por 11 crimes, dos quais três crimes de corrupção e oito de branqueamento; Bava vai responder por três crimes, um de corrupção, um de branqueamento e um de fraude fiscal; e Granadeiro por cinco crimes, um de corrupção, dois de branqueamento e dois de fraude fiscal.
A juíza Susana Seca recusou o pedido do MP para autonomizar num processo separado os factos relacionados com o empreendimento de luxo Vale do Lobo, no Algarve, em relação aos quais estão acusados o ex-ministro de Sócrates e antigo administrador da Caixa Geral de Depósitos, Armando Vara; José Diogo Gaspar Ferreira, ex-diretor executivo do empreendimento; e Rui Horta e Costa, ex-administrador dos CTT e de Vale do Lobo. Cada um deles vai responder em tribunal por dois crimes, um de corrupção e um de branqueamento de capitais.
Salgado e Vara já foram condenados, mas vão voltar a tribunal
Do processo “Operação Marquês” já dois arguidos foram a julgamento e acabaram condenados: Armando Vara e Ricardo Salgado, em dois e oito anos de prisão, respetivamente. Ainda assim, com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de janeiro de 2024, que recuperou quase na totalidade a acusação do Ministério Público (MP), os dois arguidos vão voltar a sentar-se nos bancos do tribunal.
O primeiro a saber o desfecho no processo foi o ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD), Armando Vara. A 13 de julho de 2021, o antigo ministro foi condenado a dois anos de prisão efetiva pelo crime de branqueamento de capitais. O juiz Rui Coelho afirmou que o tribunal “deu como provado quase todos os factos” da acusação do MP e que ficou “demonstrado objetivamente o circuito de dinheiro” relacionado com os dois milhões de euros que Vara colocou em contas na Suíça e que depois trouxe para Portugal.

No âmbito da “Operação Marquês”, Armando Vara cumpriu a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, de 9 de julho a 16 de outubro de 2015, totalizando três meses e sete dias o período em que esteve com medida de coação privativa da liberdade.
Agora, o ex-ministro de Sócrates e antigo administrador da CGD vai responder em tribunal por dois crimes, um de corrupção e um de branqueamento de capitais.
Oito meses depois, a 7 de março de 2022, Ricardo Salgado foi condenado a uma pena total de prisão de seis anos pelos três crimes de abuso de confiança de que estava acusado.
Mas, em maio de 2023, a pena viria a ser agravada para oito anos pelo Tribunal da Relação de Lisboa. O tribunal considerou como provados “quase todos os factos constantes da acusação”, segundo explicou o juiz Francisco Henriques. Mas “não ficou provado a questão da gestão centralizada do BES”. Quanto à doença de Alzheimer, o magistrado diz que ficou provada essa condição física de Ricardo Salgado, bem como as condições socioeconómicas do arguido.
O tribunal decidiu condenar Ricardo Salgado pela prática de um crime de abuso de confiança relativamente à transferência de 4.000.000 de euros, com origem em conta da “Espírito Santo Enterprises, S.A.” para conta da “Credit Suisse”, titulada pela sociedade em offshore “Savoices, Corp”; um crime de abuso de confiança relativamente à transferência de 2.750.000 euros, quantia proveniente de transferências da conta da “Espírito Santo Enterprises, S.A.” para uma conta titulada pela sociedade “Green Emerald Investments, Ltd.”, controlada por Hélder José Bataglia dos Santos, da conta da “Green Emerald Investments, Ltd.” para conta da “Crédit Suisse“, titulada pela sociedade em offshore “Savoices, Corp“, controlada pelo arguido.
O terceiro crime de abuso de confiança pelo qual Salgado foi condenado é relativo à transferência CHF 3.900.000,00 (3.967.611 euros) — quantia proveniente de transferências da conta da “Espírito Santo Enterprises, S.A.” para a conta da “Pictet & Cie, S.A.” titulada por Henrique Manuel Fusco Granadeiro —, da conta da “Pictet & Cie, S.A.” e com destino a conta da “Lombard Odier Daries Hentsch and Cie” titulada pela sociedade em offshore “Begolino, S.A.”, controlada pelo arguido.
Após ser condenado, Salgado vai responder agora por 11 crimes, dos quais três crimes de corrupção e oito de branqueamento. O antigo banqueiro está também a ser julgado no processo da queda do BES/GES, do qual foi dispensado pelo tribunal de comparecer às sessões, devido ao diagnóstico de Alzheimer.
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Operação Marquês: Uma década depois, Sócrates vai a julgamento
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