Pandemia, sondagens, redes sociais: aperta o cerco a Trump

Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana analisa a campanha pré-eleitoral nos EUA. A pandemia avança e os números de Trump recuam nas sondagens.

A vida não está fácil para Donald Trump. A quatro meses das eleições, o presidente norte-americano parece a Lei de Murphy com pernas: o que pode correr mal, corre mal. E isto não é só importante para ele e para os EUA. Como escreve este sábado o Jorge Almeida Fernandes no Público, o mundo está todo à espera, porque “Trump matters”.

Este sábado devia haver mais um comício de Trump, e a equipa de campanha estava a dar tudo para limpar a imagem do comício de regresso à estrada, em Tulsa, a 20 de junho, que ficou a menos de metade da lotação. Escolheu um cenário menos arriscado – um hangar de aeroporto, em que as eventuais clareiras ficariam menos à vista – mas na campanha republicana ninguém sabia o que esperar…

Na incerteza, foram salvos pelo clima. Este sábado é esperada uma tempestade tropical que atingirá o estado de New Hampshire, e o comício foi adiado. Nada que altere os planos do governador republicano do estado, que já tinha dito que não poria lá os pés. “Já não me meto no meio de multidões, com isto da Covid”, admitiu.

O comício de Tulsa, onde quase ninguém respeitou regras, pode ter-se tornado um superspreader, um evento responsável pela disseminação da doença em larga escala na comunidade. Os dados desta semana revelam que nos últimos dias foram diagnosticados centenas de casos em Tulsa (só em dois dias, cerca de 500), e o responsável pelas autoridades de saúde locais diz que, tendo em conta os prazos, “basta juntar os pontos” – este pico será consequência do comício.

Por esta e por outras, a convenção republicana, prevista para final de agosto, pode ter de ser repensada. Trump não abdica de uma convenção em registo big show, e já mudou o evento da Carolina do Norte para a Flórida, para poder fazer as coisas sem restrições. Mas a Flórida é, atualmente, um dos estados onde a pandemia mais cresce (+66% na média dos últimos 14 dias).

O azar nunca vem só

O impacto da pandemia nos EUA não pára de surpreender, com sucessivos recordes diários de novas infeções, internados a disparar, unidades de cuidados intensivos no limite e estados com o sistema de saúde à beira do colapso. A capa do Wall Street Journal que reproduzo abaixo (edição de 5ª feira) mostra como cada novo milhão de infetados demora menos tempo a atingir.

Há uma semana que o número de novos casos diários ronda os 60 mil. Sexta-feira, pela primeira vez, passou dos 65 mil. São mais de três milhões de infetados e 133 mil mortos. A primeira página do New York Times deste sábado é eloquente. O gráfico representa o crescimento de casos em vários estados depois do desconfinamento.

A economia norte-americana, determinante para as perspetivas eleitorais de Trump, começava a dar sinais de recuperação nos primeiros tempos pós-lockdown, com criação de bastantes postos de trabalho, mas são cada vez mais os locais onde as autoridades são forçadas a travar ou reverter o processo de desconfinamento.

Estas não são as únicas dores de cabeça de Trump. Na quinta-feira, o Supremo Tribunal deu-lhe uma meia vitória e uma derrota ao permitir que as suas declarações fiscais sejam analisadas pela procuradoria de Nova Iorque, com vista a eventuais procedimentos criminais por fuga ao fisco e outros ilícitos. E nas redes sociais, o seu grande instrumento de comunicação direta com a sua base eleitoral, Trump continua a sofrer reveses.

Tudo junto, não podia dar bom resultado. Joe Biden está com uma margem confortável nas sondagens nacionais.

As sondagens

São cada vez mais sombrias para Trump. Nos estudos nacionais, a média feita pela “sondagem das sondagens” do site Five Thirty Eight, uma referência na análise de sondagens, coloca Biden quase 10 pontos à frente de Trump.

Esta é a poll of polls, juntando várias sondagens. Olhando separadamente, todas as grandes sondagens das últimas semanas indicam uma vantagem robusta de Biden: Rasmussen (+10 – esta é uma das sondagens de que Trump gosta), Economist (+9), Monmouth (+12), CNBC (+8), US Today (+12), New York Times (+14). Até a última sondagem nacional da mui trumpista Fox News deixava Biden 12 pontos à frente de Trump, e o último estudo do grupo Trafalgar, também próximo dos republicanos, dava vantagem de cinco pontos a Biden.

Sim, sabemos todos que em 2016 as sondagens nacionais previam a vitória de Hillary, e Hillary ficou dois pontos percentuais e mais de três milhões de votos acima de Trump no total nacional, mas este venceu no Colégio Eleitoral. Isso obriga a olhar para as sondagens nos principais swing states, os estados que podem cair para um lado ou para outro e que irão decidir quem vence. Mas, antes disso, três notas sobre as sondagens nacionais.

  • Tradicionalmente, os estudos feitos neste momento – por volta do feriado do 4 de julho -, acertam no vencedor final.
  • A CNN analisou dados até 1940, relativos às treze eleições em que um presidente em funções foi recandidato. A diferença entre a média das sondagens publicada nesta altura do ano e o resultado final ficou, em média, nos 4,5%. A discrepância máxima identificada foi de 7%. Ou seja, uma vantagem na casa dos 10 pontos está bem acima do diferencial máximo identificado em oito décadas de sondagens e eleições.
  • Nunca, em tantas décadas, um challenger que por altura do 4 de julho estivesse com intenções de voto de 50% (como Biden) deixou de vencer.

Vamos, então, aos estados decisivos para a batalha, os battleground states. Má notícia para Trump: as sondagens estaduais colocam Biden em vantagem em quase todos esses terrenos. Há estados, como o Michigan, onde a vantagem é tão robusta como no país (+9,7), e na Pensilvânia está lá perto (+7,6). Nos outros, a margem é menor, mas Biden lidera num estado decisivo como a Flórida (+6,3), na Carolina do Norte (+3,4), no Arizona ( +3,1) e até na Geórgia (+1,7!).

O caso da Geórgia já é estranho, mas por incrível que possa parecer no Texas também há um enorme ponto de interrogação (a média das sondagens, neste momento, põe o incumbente com apenas +1,3). Como diziam há dias os political geeks do Five Thirty Eight, “se o Texas se tornar competitivo, Trump tem [mesmo!] um problema”. Está a acontecer.

Com estas sondagens, a expressão “terramoto político” voltou. Sobretudo porque a vantagem de Biden se tem revelado grande e sólida. Maio e junho podem ter sido os meses decisivos para os resultados de novembro.

Primeiro, pela péssima reação de Trump à pandemia; depois, a resposta igualmente péssima à vaga de protestos anti-raciais na sequência da morte de George Floyd. Tanto em relação à Covid como na gestão dos protestos raciais, a avaliação do desempenho de Trump é bastante negativa. A última sondagem foi divulgada esta sexta-feira, pela ABC: 67% dos inquiridos não concorda com a forma como Trump geriu o choque da pandemia, a mesma percentagem dos que discordam do seu comportamento na questão do racismo.

A avaliação geral do mandato também é muito negativa: na média de todas as sondagens, só 40% dos americanos consideram que Trump está a fazer um bom trabalho (ainda assim, melhor do que estava, na mesma altura do campeonato, George Bush, o último presidente que falhou a reeleição).

Biden, que conta com a diversidade étnica da “Obama Coalition”, está a conseguir também bons índices de apoio entre os brancos e sobretudo entre os mais idosos – eleitores que Trump não pode perder. Tudo indica que isso está a acontecer.

O site Politico tinha esta semana um artigo interessante sobre as razões porque, mesmo no círculo de conselheiros de Trump, há a consciência de que a guerra cultural, que tão bem resultou em 2016, já não terá a mesma força em 2020. Até porque há sinais de que as coisas estão mesmo a mudar. Os protestos contra o racismo e a violência policial chegaram a lugares inesperados.

Pandemia, economia e votos

O artigo do Politico também realça a centralidade que, para alguns estrategas republicanos, Trump devia dar ao relançamento económico, em vez de insistir na guerra contra o “marxismo”, o “socialismo” ou os “saqueadores”. Os estudos de sentimento económico, de resto, dizem que a confiança na economia está a crescer.

A economia era, até à chegada da pandemia, o ponto mais forte para a reeleição de Trump. A Covid-19 mudou tudo. E, má notícia para Trump, os eleitores que acham que a economia é o maior problema do país são, também, os que têm maior propensão para votar republicano.

Biden já se focou aí – esta semana, apresentou um plano económico, orçado em 700 mil milhões de dólares, que conjuga reindustrialização com combate às desigualdades, e tem um slogan que vai direto ao coração americano e ao eleitorado de Trump: “Buy american”.

A pandemia não só provocou uma enorme destruição económica como está a travar a retoma, e de forma mais intensa nalguns dos estados mais disputados. Entre os battleground states, estão alguns que têm visto disparar as novas infeções, obrigando a andar para trás no desconfinamento. Os casos mais gritantes são são o Texas e a Flórida.

Esta sexta-feira, o governador do Texas, um trumpista impenitente, disse que se a situação se mantiver, “o próximo passo terá de ser um lockdown”. Isto, dito por Greg Abbott, o home que precipitou a reabertura da economia do estado, travou mayors que queriam medidas mais rigorosas e ajudou a fazer de uma cabeleireira de Dallas uma heroína conservadora, porque desrespeitou a ordem para encerrar o seu estabelecimento…

Não são só as infeções que disparam, agora são também as mortes. Há projeções que apontam para 200 mil vítimas mortais nos EUA até ao dia das eleições. Para além dessa cifra negra, o impacto económico do atual nível de contágios e as suas consequências nas eleições de 3 de novembro pode ser decisivo.

Estados como Flórida, Michigan e Pensilvânia estão na linha da frente de altas taxas de desemprego, e conforme os subsídios terminem (a duração dos apoios sociais nos EUA não tem comparação com a realidade europeia), o drama social e económico estará à vista. Há, aliás, quem alerte já para o risco de um novo tsunami no mercado da habitação norte-americano.

A ideia de que Trump pode estar a tornar-se um ativo tóxico começa a assustar as estruturas republicanas. Em novembro também há eleições para o Congresso, e surgem sinais de que alguns candidatos do partido de Trump estão com medo de serem arrastados por uma derrocata trumpista. Ainda esta semana, o mayor de Miami, a principal cidade da Flórida, recusou-se a responder se irá votar em Trump ou Biden. Francis Suarez, uma figura ambiciosa do Partido Republicano, respondeu que antes de decidir quer ouvir “o que ambos os candidatos têm a oferecer às comunidades urbanas”…

A Flórida é um puzzle particularmente difícil. Com grande diversidade étnica (muitos latinos e negros), acolhe bastantes reformados que vão à procura de sol e calor, e tem muito eleitorado jovem. A medida da sua importância vê-se por aqui: nas últimas 14 presidenciais, só uma vez o vencedor da Flórida não chegou à Casa Branca. Se Trump perder a Flórida, provavelmente estará perdido. As sondagens condensadas no gráfico abaixo apontam para isso mesmo.

A justiça

Pode ser um exagero a afirmação, que fiz no início, de que nesta fase tudo o que pode correr mal a Trump está a correr mal. Nas investigações da Justiça e do Congresso em relação às declarações fiscais do presidente norte-americana, esta semana as coisas correram assim-assim.

Há anos que Trump se recusa a divulgar as suas declarações de impostos, numa atitude que contraria a tradição das últimas décadas. O que esconde o presidente? Bom, provavelmente a confirmação daquilo que ele próprio já disse no passado: que paga poucos impostos pois conhece as fraquezas do sistema e usa-as a seu favor. Mas pode haver mais do que isso, o que levou tanto a maioria democrata na Câmara dos Representantes como a procuradoria de Nova Iorque (onde o Grupo Trump tem o seu domicílio fiscal) a pedir acesso a esses processos.

O Supremo Tribunal (de maioria conservadora) decidiu que os congressistas tão cedo não podem ver os papéis que Trump tem escondido (por razões processuais), mas que a Procuradoria de Nova Iorque pode. Como li num jornal americano (não me lembro qual), foi uma má notícia para o cidadão Donald Trump, mas uma boa notícia para o candidato.

Má para o cidadão, porque o Supremo reafirmou que ninguém está acima da lei, por isso a Justiça pode investigá-lo e acusá-lo, se encontrar provas de evasão fiscal ou violação das leis de financiamento da campanha eleitoral (por exemplo, no caso do dinheiro pago à atriz porno Stormy Daniels, para que não falasse da relação que manteve com Trump). Boa para o candidato, porque ainda passará bastante tempo até que esses papéis vejam a luz do dia – e, nessa altura, as eleições já passaram.

Talvez revigorado por esta meia-vitória, esta sexta-feira à noite Trump desferiu mais um golpe contra o sistema de justiça, perdoando a pena aplicada ao seu velho aliado Roger Stone. O antigo homem de mão de Trump estava a dias de iniciar uma temporada de 40 meses na prisão, por ter mentido nas investigações ao presidente, obstruindo a justiça, mas o inquilino da Casa Branca mostrou que não deixa cair ninguém da famiglia.

As redes sociais

Trump respondeu à decisão do Supremo com ira, como sempre, no Twitter, como sempre. Mas o Twitter deixou de ser o recreio do presidente norte-americano desde que começou a sinalizar informações falsas, enganosas, ou discurso de ódio propagado pelo homem mais poderoso do mundo. Foi o clique para uma mudança que ainda não se sabe onde irá parar.

Depois do Twitter, também o Reddit começou a olhar com mais atenção para o discurso incendiário da bancada trumpista, e baniu um dos principais grupos de apoio a Trump nessa rede. E, esta semana, até o Facebook decidiu mexer-se e levantar uma palha – não contra Trump, mas contra Roger Stone, o grande aliado do presidente entretanto caído em desgraça (ver acima), que foi excluído do Instagram por divulgar informação “inautêntica”… Sim, tudo no Facebook vai por baby steps, pois a última coisa que Mark Zuckerberg deseja é matar a galinha dos ovos de ouro em que se transformou o negócio de divulgar, sem filtros, fake news e discurso de ódio.

Mas provavelmente vai mesmo ter de o fazer: fontes da companhia admitiram, pela primeira vez, que o Facebook está a “considerar” acabar com os anúncios políticos na rede. É bom que conclua a “consideração” rapidamente. The clock is ticking.

Agora que grandes empresas anunciantes nas redes sociais se juntaram numa campanha de boicote com o ashtag #StopHateForProfit, na qual o Facebook é o principal visado, Zuckerberg promete mudar de direção, e pediu uma análise aos procedimentos da companhia do ponto de vista do respeito pelos direitos cívicos. O resultado foi arrasador. Apesar das muitas promessas que tem feito, desde que ficou clara a responsabilidade do FB na campanha de desinformação das presidenciais de 2016, a companhia pouco ou nada mudou para travar a difusão de fake news e discursos de ódio, concluíram os auditores, ligados a movimentos de direitos cívicos.

As decisões do Facebook representam “um retrocesso para os direitos cívicos”, diz a auditoria, que aponta questões como:

  • A discriminação positiva em relação aos posts de Trump
  • A prevalência da liberdade de expressão sobre todos os outros valores
  • O desconhecimento da real dimensão do problema do discurso de ódio
  • Por outro lado, a Covid-19 provou que, querendo, o Facebbok é capaz de intervir e moderar conteúdos danosos.

A lista das grandes companhias que aderiram ao boicote continua a crescer (quase uma centena), ao contrário de outras iniciativas semelhantes no passado, por exemplo contra o Youtube, esta pode prolongar-se. No caso do Facebook, trata-se de uma pequena parte dos seus oito milhões de anunciantes, responsáveis por 98% dos 70 mil milhões de dólares de receita anual da companhia. Mas, sendo empresas da dimensão da Coca-Cola, Starbucks, Levi’s ou Verizon, não mata mas mói.

Enquanto Zuckerberg lambe as feridas e “considera”, Trump declarou guerra ao Twitter e os republicanos descobriram uma nova rede social favorita: o Parler. Cada vez mais estrelas do GOP estão a aderir a esta rede, que se compromete a ser o último bastião da “liberdade de expressão”, mesmo que isso signifique propagar mentiras ou racismo. A companhia foi criada em 2018 como resposta ao “liberal bias” do Twitter, e tem um milhão de utilizadores.

Isso é um problema: o Twitter tem 330 milhões (no caso do Facebook são 1,5 mil milhões). Só nos EUA são 64 milhões no Twitter. Trocar esta audiência pela do Parler não parece grande ideia. Mas que não tem cão caça com gato. Nas audiências que estão a conduzir no Congresso, para investigar se os gigantes de social media têm abusado da sua posição, os republicanos já anunciaram que querem ouvir John Matze, o fundador do Parler.

Entretanto, Trump abriu guerra a outra rede social, o TikTok — cujos utilizadores terão enganado a campanha republicana, empolando os pedidos de bilhetes para o comício de Tulsa, e contribuindo para esse fracasso. O inquilino da Casa Branca terá ficado furioso com a partida, e esta semana o secretário de Estado Mike Pompeo disse que os EUA estão a ponderar banir a aplicação, por receios de espionagem e utilização indevida de dados por parte da marca chinesa.

A app teve um brutal crescimento durante o Grande Confinamento, sobretudo entre os jovens – dados da SensorTower indicam que durante o primeiro trimestre deste ano, houve 315 milhões de downloads da aplicação, usada sobretudo para vídeos de música e dança. Será o maior crescimento trimestral alguma vez registado por qualquer app.

O Tiktok já foi descarregado mais de dois mil milhões de vezes em todo o mundo, e só nos Estados Unidos tem 37 milhões de utilizadores, escreve a Forbes. A mesma publicação adianta que a proibição da app pode fazer ricochete contra Trump, pois muitos dos seus utilizadores não só estão dispostos a contrariar a proibição, como isso pode incentivar a sua veia de ativismo político, até agora desconhecida…

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