Portugal continua obcecado com a corrupção. Mas o que pode mudar?

No dia internacional contra a corrupção os advogados consideram que Portugal continua ainda obcecado com a corrupção e criticam a fase de inquérito.

Buscas por suspeitas de corrupção, inúmeros acusados pelo crime de corrupção ou até a velha gíria muitas vezes usada de que “todos são uns corruptos”: o fenómeno da corrupção está diariamente presente na mente dos portugueses. Neste dia internacional contra a corrupção, os advogados consideram que Portugal continua ainda obcecado com fenómeno e garantem: a mediatização de casos de corrupção influencia a confiança nas instituições judiciais.

“É uma moda judiciária e judicial, como no passado já tivemos outras, por exemplo os cheques sem provisão, a droga, a negligência médica, os crimes ambientais, o branqueamento, a violência doméstica, as regras de segurança, mas além disso também é uma moda, e uma ferramenta, política e sociológica, que tem várias razões, e as várias vertentes da moda alimentam-se mutuamente“, refere o sócio da Morais Leitão Rui Patrício.

Três anos depois de ter respondido à Advocatus que Portugal estava obcecado com a corrupção, Rui Costa Pereira assume que “não mudaria uma vírgula do que disse” na altura. “Um diferente Governo com um diferente suporte partidário não mudou minimamente essa obsessão política, sem que haja sinais de frutos efetivos dessa escolha“, afirma o associado coordenador da MFA Legal.

A mediatização intensa tende a reduzir a confiança pública, principalmente quando as notícias revelam apenas o lado menos bom do funcionamento da justiça, ao destacar atrasos, arquivamentos ou decisões complexas sem contexto.

Ana Raquel Conceição

Of counsel da Antas da Cunha Ecija

Uma coisa é certa, os advogados consideram que a mediatização de casos de corrupção influencia a confiança nas instituições judiciais. “A mediatização intensa tende a reduzir a confiança pública, principalmente quando as notícias revelam apenas o lado menos bom do funcionamento da justiça, ao destacar atrasos, arquivamentos ou decisões complexas sem contexto, criando perceção de ineficácia”, explica a of counsel da Antas Cunha Ecija Ana Raquel Conceição.

Rui Costa Pereira alerta que um sinal evidente dessa influência é encontrado na atual composição dos parlamentos em todo o mundo. “Veja-se em que medida a crescente mediatização de tais casos foi acompanhada do crescimento dos partidos de matriz populista. A forma como as próprias instituições judiciais procuram retirar capital dessa mediatização, aliada àquele primeiro aspeto, penso que nos deveria deixar a todos, pelo menos, preocupados”, acrescenta.

Mas a mediatização dos casos, como a Operação Marquês e caso BES, podem levar a perceção de impunidade em crimes económico-financeiros. A of counsel da Antas da Cunha explica que essa perceção resulta de processos “demasiado longos”, “complexidade investigatória”, “dificuldades probatórias”, “estruturas societárias” que dificultam responsabilização e o “caráter plurilocalizado das condutas” que obriga a uma cooperação judiciária exigente.

Por outro lado, Rui Costa Pereira não considera que haja essa perceção, recordando que desde o processo Face Oculta – onde os arguidos foram condenados por todos os crimes e em penas superiores às pedidas pelo Ministério Público – o que se vem percecionando é “precisamente o oposto”. “Uma mão cada vez mais pesada dos tribunais neste tipo de casos. E num jeito um tanto um quanto paradoxal, já que quando estão em causa crimes de gravidade – constitucional e legalmente falando – superior, como são os crimes contra a vida e outros direitos fundamentais de índole pessoal e não patrimonial, há relativamente menor severidade no momento de punir”, assume.

Entre os setores mais vulneráveis à corrupção apontados pelos advogados estão o da contratação pública, saúde, autarquias, setores regulados e serviços financeiros. Mas Rui Patrício sublinha que o fenómeno da corrupção é transversal a todos os setores. “A corrupção pode acontecer em qualquer lugar, não me parece que existam terrenos imunes ou terrenos privilegiados, e tende a acontecer especialmente naqueles onde as coisas são mais burocráticas, difíceis, entravadas, e por outro lado onde haja menos escrutínio eficaz“, assume.

Fase de inquérito é um problema

Vários são os pontos do processo penal que geram atrasos sistemáticos na justiça portuguesa, mas os advogados destacam um: a fase de inquérito. “Sem dúvida a duração dos inquéritos, não haja ilusões nem se queira tapar o sol com a peneira, e também – sobretudo quando os dois fenómenos se associam – o tamanho de alguns inquéritos, que são mastodônticos e alguns cheios de soberba e de ilusão de que se vai fazer história e/ou mudar o mundo”, aponta Rui Patrício.

A fase de inquérito, por ter tendencialmente uma duração mais longa, é assim apontado com o maior entrave à celeridade processual. “A generosa amplitude como a lei processual penal e as regras de conexão de processos são interpretadas pelo Ministério Público na fase de inquérito tem permitido a criação de verdadeiros monstros processuais, ingeríveis e que muito contribuem para essa imagem de atrasos sistemáticos“, defende Rui Costa Pereira.

Ainda assim, o associado coordenador da MFA assume que, ao longo de todas as fases do processo penal, existem diversos pontos que, “todos somados”, tornam uma “situação má, pior”. Restringir a obrigatoriedade do debate instrutório, supressão da obrigatoriedade de leitura, em audiência, da decisão instrutória, limitar a possibilidade de o Ministério Público indicar, como testemunhas, agentes e membros dos órgãos de polícia criminal, ou alargar as situações onde o recurso de fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade tenha efeito meramente devolutivo são alguns dos exemplos apontados pelo advogado.

A prevenção faz-se através da educação e do aprofundamento da cidadania, é um trabalho de gerações, e não digam que isso é conversa, e que a repressão é o caminho.

Rui Patrício

Sócio da Morais Leitão

Mas o que pode ser mudado no campo da prevenção da corrupção? A lei “seguramente” que não, pelo menos na opinião do sócio da Morais Leitão Rui Patrício. “Chega de mudar leis, e o que há é mais do que suficiente“, atira.

“Podemos melhorar as instituições, e por exemplo estão a ser dados passos muito significativos no que toca ao MENAC [Mecanismo Nacional Anticorrupção], por exemplo. Mas sobretudo a prevenção faz-se através da educação e do aprofundamento da cidadania, é um trabalho de gerações, e não digam que isso é conversa, e que a repressão é o caminho. Não é, veja-se quais são os países que estão no top das boas práticas, e compare-se isso com os seus índices de educação e de cidadania”, considera o advogado.

Ana Raquel Conceição sublinha a importância do reforço da cultura institucional de integridade, destacando entre as prioridades a maior transparência proativa, o reforço da fiscalização e auditoria, a gestão rigorosa de conflitos de interesse, a profissionalização das funções de compliance, a proteção “mais robusta” dos denunciantes, e o investimento em capacitação, formação contínua e ferramentas tecnológicas para prevenção, monitorização e deteção precoce de riscos.

Assegurar maior transparência e escrutínio da atuação de todos os poderes públicos: legislativo, executivo e judicial. São ainda bastantes os meandros da atuação do poder público cuja execução é concretizada sob a manta de injustificada reserva e segredo e é, precisamente, aí, que emergem as tentações corruptivas”, sublinha Rui Costa Pereira.

Das práticas internacionais à comunicação da Justiça

No que toca ao alinhamento de Portugal com as boas práticas internacionais, como o GRECO, o Conselho da Europa ou até a OCDE, os advogados dividem-se. Rui Patrício considera que, no geral, o País está alinhado, quer na prevenção quer na repressão. “Diria que está no terreno dos países mais avançados, mais ou menos a meio da tabela. E nalguns casos até está “avançado” em exagero, criando problemas que nem se justificariam, como por vezes acontece no compliance bancário e financeiro”, explica o advogado.

Ana Raquel Conceição considera que Portugal esta “parcialmente” alinhado, admitindo que o País segue várias recomendações e tem desenvolvido estratégias nacionais de combate à corrupção. “Contudo, persistem lacunas relevantes na implementação prática dessas recomendações, sobretudo em matéria de prevenção de conflitos de interesse, de reforço dos mecanismos de transparência, de monitorização das declarações de património e de avaliação da eficácia das medidas anticorrupção. Em suma, o país está no caminho certo, mas ainda aquém dos padrões das jurisdições mais avançadas”, garante a of counsel da Antas da Cunha.

Por outro lado, Rui Costa Pereira considera que, segundo o que o público o levar a crer, Portugal não está alinhado. “Basta recordar o caso particular do GRECO e da monitorização periódica que faz sobre o grau de cumprimento das recomendações que dirige ao Estado português. Ainda em 2025 tornou público que “Portugal não implementou satisfatoriamente nenhuma das 28 recomendações constantes do Relatório do Quinto Ciclo de Avaliação”, refere.

Penso que o país teria muito a ganhar com uma comunicação do Ministério Público que fosse efetivamente mais transparente e mais humilde.

Rui Costa Pereira

Associado coordenador da MFA Legal

Uma coisa é certa, a comunicação da Justiça em Portugal, nomeadamente do Ministério Público, é alvo de críticas por parte dos advogados, que avaliam o seu desempenho mau.

“Avalio mal, ou por não existir, ou por ser pouco muito pouco clara, às vezes não sei se por inépcia, se de propósito. Aliás, o sistema de justiça tem em geral um problema de comunicação, e ainda vive no século XXI enredado em práticas e ilusões de reserva e recato, ou numa linguagem barroca, que são do século XIX, e que só geram inércia, hipocrisia e/ou más práticas, como por exemplo o joguinho da violação do segredo de justiça ou o das fugas e das frases e das palavras cirúrgicas ou dúbias”, refere Rui Patrício.

Também Rui Costa Pereira dá nota negativa à comunicação na Justiça. “A pretexto das recomendações de organismos internacionais como o GRECO, de transparência na respetiva atuação, o Ministério Público opera há muito como uma verdadeira agência noticiosa, numa atuação que tem tanto de propagandista como tem de incendiária, q.b.. (…) Penso que o país teria muito a ganhar com uma comunicação do Ministério Público que fosse efetivamente mais transparente e mais humilde“, assume.

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