Governo quer alterar a lei orgânica do TdC e dispensar o visto prévio para contratos públicos, mas a instituição está contra e alerta para riscos. Compreenda a 'batalha' de argumentos.
- • O Governo quer alterar a lei orgânica do Tribunal de Contas para reduzir ou dispensar o visto prévio em contratos públicos, privilegiando fiscalização a posteriori para acelerar decisões, proposta contestada pela instituição, que em audição parlamentar alertou para riscos acrescidos para o erário público.
- • O Executivo argumenta que o modelo português não tem paralelo na Europa e pretende generalizar o regime aplicado ao PRR, com reforma liderada por Rui Medeiros. O TdC contrapõe que cumpre prazos, há controlo prévio noutros países e o visto previne danos legais e financeiros.
- • Juristas dividem-se entre a agilidade e a responsabilização acrescida dos gestores públicos e o aumento do risco de corrupção, de perdas irreparáveis e de exigência de recursos no controlo concomitante. A proposta deverá entrar no Parlamento em janeiro e o TdC quer dialogar.
O Governo quer mudar o modelo de fiscalização utilizado pelo Tribunal de Contas nos contratos públicos, para dar primazia à fiscalização a posteriori, com o argumento de que vai permitir maior celeridade na execução. A instituição está contra, alertando para consequências nefastas para o erário público, e oferece a sua disponibilidade para “contribuir” para o processo que se irá arrastar até ao próximo ano.
A tensão na ‘batalha’ de argumentos registou na segunda-feira um novo pico, com a presença dos representantes dos dois lados em audições parlamentares autónomas: pelo Executivo, falou o ministro da Reforma do Estado, Gonçalo Saraiva Matias; pelo Tribunal de Contas, teve voz a sua presidente, Filipa Urbano Calvão. E esta, pela primeira vez e em público, mostrou-se incisiva sobre o tema.
O tema tem vindo a ganhar destaque no debate político desde que, no final de julho, o ministro da Reforma do Estado anunciou que o Governo iria avançar com alterações legislativas à organização e funcionamento do Tribunal de Contas, tal como consta do Programa de Governo. O ECO questionou na altura o Ministério tutelado por Gonçalo Saraiva Matias sobre esta matéria, mas não obteve resposta.
Mais tarde, no início de outubro, em entrevista ao Público (acesso pago), o governante revelou que as alterações iriam abranger a legislação que impõe o visto prévio do Tribunal de Contas, designadamente quanto a concursos públicos e licenciamentos, passando o crivo dos juízes para uma fase a posteriori das decisões. Uns dias mais tarde, no Parlamento, Gonçalo Saraiva Matias defendeu que as alterações visavam simplificar ou diminuir o visto prévio no sentido de acelerar decisões e evitar a “confusão” entre a função de julgar e a de administrar.
Não existe paralelo na Europa nenhum sistema deste tipo e que é altamente complexo e inibidor da decisão. Portanto, um tribunal serve para verificar a legalidade dos atos praticados. Um tribunal não serve para se substituir ao decisor político, ao decisor administrativo.
Para o advogar, socorreu-se do argumento de que “há muitos países que não têm Tribunal de Contas” e “aqueles que têm Tribunal de Contas não têm um modelo de visto prévio” como o português. “Não existe paralelo na Europa nenhum sistema deste tipo e que é altamente complexo e inibidor da decisão. Portanto, um tribunal serve para verificar a legalidade dos atos praticados. Um tribunal não serve para se substituir ao decisor político, ao decisor administrativo“, argumentou.
Neste sentido, reforçou que o Governo pretende que “o Tribunal funcione de acordo com a sua função jurisdicional”, apontando a “uma revisão da responsabilidade financeira para garantir que quem tem que decidir, decide consoante as competências que lhe são atribuídas com a função política, para que não haja violação da separação de poderes”. Ou seja, de forma a assegurar que “não há uma confusão entre a função de julgar e a função de administrar”.
Uma posição tudo menos pacífica para o Tribunal de Contas. De uma forma mais global, recentemente, no dia 21 de outubro, as mudanças que o Governo quer implementar e que passam também por alterações no código da contratação pública, foram abordadas entre representantes do Tribunal de Contas, da Inspeção-Geral das Finanças (IGF), do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção na reunião semestral de representantes destas instituições.

A alteração anunciada por Gonçalo Matias significa pôr fim a uma prática que resultou da alteração, em 2011 – durante a intervenção da Troika –, à lei orgânica do Tribunal de Contas com o objetivo precisamente de maiores restrições na contratação pública. Mas a instituição presidida por Filipa Urbano Calvão já se fez ouvir. “É a intervenção do Tribunal que garante a credibilidade financeira do Estado português“, disse a responsável numa audição parlamentar no âmbito da apreciação na especialidade do Orçamento do Estado para 2026 (OE2026).
“O que temos não é uma lentidão imposta resultante da intervenção do Tribunal, o Tribunal cumpre os prazos legais, até porque se assim não for, o que se forma, na pior das hipóteses, é um visto tácito. O Tribunal tem de lidar também com o problema que é alguma insuficiência de instrução por parte das entidades públicas”, disse.
O que temos não é uma lentidão imposta resultante da intervenção do Tribunal, o Tribunal cumpre os prazos legais, até porque se assim não for, o que se forma, na pior das hipóteses, é um visto tácito. O Tribunal tem de lidar também com o problema que é alguma insuficiência de instrução por parte das entidades públicas.
Nem uma hora antes, igualmente numa audição parlamentar sobre o OE2026, Gonçalo Saraiva Matias havia voltado a defender a importância da proposta de nova lei que vai dar entrada no Parlamento em janeiro e da “necessidade de alteração do modelo que nasce da desconfiança“. Reiterando que o visto prévio usado em Portugal “não tem paralelo na Europa“, o ministro da Reforma do Estado anunciou ainda que o professor Rui Medeiros está a liderar a reforma.
“Dá todas as garantias de qualidade, de seriedade, de ponderação, garantindo que será uma lei equilibrada e que vai pôr Portugal e o Tribunal de Contas português ao nível do que melhor se faz em toda a Europa”, afirmou o governante, rejeitando que a crítica seja à instituição, sendo sim ao “modelo” utilizado.
Na prática, o Governo quer generalizar o regime especial aplicado atualmente na fiscalização do Tribunal de Contas ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que permite que os projetos avancem com a sua execução antes de uma decisão formal do tribunal. No caso concreto das iniciativas financiadas via PRR, a fiscalização passa a ocorrer ao mesmo tempo que a execução dos projetos.

Filipa Urbano Calvão contrariou a teoria de Gonçalo Saraiva Matias. Primeiro, de forma subtil, arrancou a audição lembrando “a importância do diálogo institucional entre o Tribunal de Contas e os órgãos de soberania titulares do poder político e legislativo” e considerando que “o órgão de controlo independente das finanças públicas e da gestão pública financeira, que é o Tribunal de Contas” deve ter “um mandato alargado, integrado e forte em cumprimento dos termos previstos na Constituição”.
Depois, de forma mais aguerrida e perante as perguntas dos deputados, defendeu que “a associação que tem vindo a ser feita de burocracia na contratação pública associada à intervenção do Tribunal não tem sido a mais rigorosa”. Filipa Urbano Calvão respondia não só ao Governo, mas também ao Presidente da República, que recentemente criticou a atuação da instituição, dando como exemplo o atraso gerado na reabilitação do antigo Matadouro do Porto.
“O Tribunal de Contas entendeu que, ao verificar se era cumprida a lei, podia ir mais longe e pôr em questão porque é que era para a cultura, porque é que era aqui, porque não era noutro sítio – o que é uma competência dos autarcas“, disse Marcelo Rebelo de Sousa na altura.
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"O Tribunal de Contas entendeu que, ao verificar se era cumprida a lei, podia ir mais longe e pôr em questão porque é que era para a cultura, porque é que era aqui, porque não era noutro sítio – o que é uma competência dos autarcas.”
Neste sentido, Filipa Urbano Calvão argumentou que a intervenção da instituição a que preside “traz transparência e escrutínio” na atuação da Administração Pública, recusando desconfiar desta. “Isto não quer dizer que o Tribunal se esteja a substituir à Administração Pública ou até ao poder político, como também tive oportunidade de ouvir a propósito desse caso e de outros casos similares”, disse.
“Evidentemente que esse escrutínio, esse controle, pode ser feito por vários modos, por vários mecanismos, seja o controlo prévio, seja o controlo concomitante, seja o controlo sucessivo. E eles não consomem o mesmo tipo de recursos, é importante que tenham consciência. O controlo concomitante é muito mais exigente do ponto de vista de recursos humanos do que o controlo prévio“, apontou.

“O controlo prévio tem uma vantagem significativa relativamente às outras formas de controlo: é que previne um prejuízo efetivo para o erário público“, argumentou a presidente do Tribunal de Contas, explicando que, com este modelo, no caso de ilegalidade “ainda é possível evitar um prejuízo para o erário público que o controlo concomitante e o controle sucessivo podem não garantir, porque nem sempre o concomitante permite fazer correções atempadas de eventuais ilegalidades”.
“Acima de um determinado valor é muito difícil que um titular de um cargo público, um gestor público, consiga reintegrar o Estado nesse montante”, advogou, acrescentando que desconhece qual vai ser a mais-valia que, no final, a alteração vai significar.
Uma opinião partilhada pelo constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia. Em declarações ao ECO, o jurista defendeu que “nos maiores contratos deve haver fiscalização prévia porque a posterior é muito difícil reparar danos legais causados“, alertando ainda que aumenta “os riscos de corrupção“.
“Sou contra essa alteração e concordo com a posição do Tribunal de Contas que devia ser considerada“, disse.
Sou contra essa alteração e concordo com a posição do Tribunal de Contas que devia ser vir considerada.
Filipa Urbano Calvão garantiu ainda, na segunda-feira, que, ao contrário do que o ministro da Reforma do Estado aponta, “não é rigoroso que na Europa ou na União Europeia não haja formas de controlo prévio no contexto da contratação pública e da despesa pública”, defendendo que é um modelo jurisdicional híbrido, exemplificando com o caso de Itália ou de França.
Opinião contrária à do advogado José Luís Moreira da Silva, que, em declarações ao ECO, sublinhou que “Portugal dentro da União Europeia é o único Estado-Membro que tem visto prévio. Logo aí se vê que faz parte da nossa idiossincrasia e está desfasado do resto dos regimes vigentes“.
“Por um lado, a Administração Pública sabe que o visto do Tribunal de Contas atrasa a execução dos contratos e investimento, mas por outro lado fica muito contente porque lhe retira alguma responsabilidade“, disse este especialista em contratação pública. Ou seja, com as alterações a execução passa a ser “sem rede”, já que só no fim é que o Tribunal de Contas passa a fazer a auditoria. Embora reconhecendo que a fiscalização preventiva “tem a vantagem de permitir corrigir antes de começar a gastar”, o novo modelo dará “maior responsabilidade à Administração Pública, o que faz parte dos riscos da Administração Pública como são os de qualquer empresa privada“.
Se a Administração Pública sabe que não há visto prévio e que fica mais tarde sujeita a uma auditoria em que podem ser aplicadas multas pesadas e obrigação de pagar do próprio bolso, terá muito mais cuidado.
“Se a Administração Pública sabe que não há visto prévio e que fica mais tarde sujeita a uma auditoria em que podem ser aplicadas multas pesadas e obrigação de pagar do próprio bolso, terá muito mais cuidado“, advoga, ainda que conceda que “pode provocar alguma paralisação por receio de responsabilidade”.
Ainda assim, defende que a alteração que o Governo pretende fazer é “desejável”. “Com a complexidade dos concursos públicos [e a atual legislação] voltar atrás significa por vezes perder um ano”, considera Moreira da Silva, assinalando ainda que atualmente o visto do Tribunal já pode ser favorável, mas mais tarde uma auditoria da mesma instituição pode indicar que houve ilegalidades”.
Recentemente, também o ex-ministro das Finanças e atual membro português do Tribunal de Contas Europeu, João Leão, quanto à possibilidade de se eliminar o visto prévio do Tribunal de Contas, disse não querer pronunciar-se em concreto, mas disse que “tudo o que deve ser feito a esse nível também [é positivo], sobretudo no que toca a questões de financiamento europeu”. “Situações em que pode estar a colocar em causa recebimento de verbas por Estados-membros, deve-se procurar mecanismos mais ágeis”, sublinhou em alusão à execução das verbas do PRR.
Certo é que com o processo a correr, Filipa Urbano Calvão deixou claro que a entidade quer ser ouvida. “O Tribunal está aberto, naturalmente, a acompanhar este processo de revisão legislativa e, portanto, aberto a dialogar e contribuir na medida do que for necessário para explicar as consequências de uma ou de outra opção”, disse em jeito de recado na audição.
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‘Tensão’ entre Governo e Tribunal de Contas agudiza-se. Os argumentos, as vantagens e os riscos
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