Um dos pontos debatidos nas propostas de regulamentação do lobbying é se os advogados devem ou não ser abrangidos pelo regime, tendo em conta o sigilo profissional.
Desde 2016 que a Assembleia da República tenta regulamentar o lobbying, ou seja, regulamentar a atividade de representação profissional de interesses junto do poder político, no entanto, devido a diversas variantes, sejam questões de inconstitucionalidade ou dissolução do parlamento, acabou por nunca avançar. Mas isso pode mudar.
Segundo explica José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Legal, o que se pretende é criar um registo de interesses e tornar transparente o agendamento de quaisquer reuniões de representantes de interesses junto de órgãos do poder político. “Estas iniciativas apenas pretendem tornar mais transparentes a ação política e legislativa, algo essencial num estado moderno e democrático”, assume.
Uma coisa é certa, Portugal já tinha sido alertado pelo GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção) para o facto do lobbying continuar sem regulamentação.

Também a associada da MFA Legal, Madalena Dias Parca, considera a iniciativa legislativa “bastante positiva”, tendo destacado algumas razões como a vontade de legislar acerca de uma atividade que tem sido, “desde sempre”, exercida “sem se encontrar devidamente regulada e sem assumir caráter público”. “Existem várias formas de contactar entidades públicas e de exercer influência sobre as mesmas, sendo, por isso, essencial que se clarifique, neste contexto, o que constituem atos lícitos e atos ilícitos”, explica.
Outro dos aspetos destacados pela advogada é que ao se regular a atividade de lobbying, tornando obrigatório o registo das entidades representantes de interesses, permite-se que todas acedam, em “condições de igualdade e de transparência”, aos decisores públicos e que exista uma “efetiva oportunidade de todos os interesses serem conhecidos e ponderados”. “Os decisores públicos têm a oportunidade de conhecer os interesses relevantes, que devem presidir a sua atuação, bem como as várias perspetivas associadas a cada projeto decisório, assegurando-se o exercício igualitário do direito constitucionalmente consagrado de participação nos processos de formação de decisões públicas”, refere.
Por fim, defende que os projetos de lei agora aprovados visam reforçar a transparência do sistema político português, nomeadamente quanto aos processos decisórios das entidades públicas, em linha com as recomendações emitidas por diversos organismos da União Europeia, como o GRECO, e instituições internacionais.

Já Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha Ecija, sublinha que as medidas propostas constituem um “primeiro passo” na promoção de uma maior transparência no processo legislativo e na promoção da equidade na participação. “A inclusão no futuro diploma da obrigação de implementação de códigos de conduta e da possibilidade de aplicação de sanções contribuirá para o fortalecimento da ética e da responsabilização dos intervenientes nesse processo”, reforça.
Todos os projetos de lei aprovados apresentam definições “semelhantes” de “representação profissional de interesses” que, segundo Alexandra Mota Gomes, é “entendida como a atividade, remunerada ou não, que visa influenciar direta ou indiretamente a elaboração ou execução de políticas públicas, atos legislativos e regulamentares, bem como os processos decisórios das entidades públicas”.
Um conceito que os três advogados consideram “transversal” a todos os projetos de lei, diferindo apenas na forma de redação e em atos concretos. Ainda assim, Madalena Dias Parca deixa um alerta: “a experiência prática poderá revelar eventuais insuficiências do conceito de representação profissional de interesses, o que poderá justificar futuras adaptações do diploma que venha a ser aprovado nesta matéria”.
Segredo profissional vs. transparência: o dilema da lei do lobbying
Os projetos de lei aprovados apresentados pelo PSD, Iniciativa Liberal, Chega, PS e CDS excluem do respetivo âmbito de aplicação os atos próprios de advogados e solicitadores no exercício do mandato forense. Já o projeto do PAN não prevê essa exclusão, o que implica que estes profissionais se encontram sujeitos à aplicação do diploma. Ou seja, segundo Madalena Dias Parca, nenhum dos projetos traça, “de forma inequívoca”, as linhas e os contornos da atuação dos advogados nesta matéria.
Para José Luís Moreira da Silva esta pode ser uma das principais discussões: se a definição de lobby deveria ou não incluir os advogados e solicitadores. “A maioria não quis incluir, devido à garantia de segredo profissional: essa garantia para defesa do Estado de Direito seria incompatível com um registo de interesses que obrigasse a divulgar os clientes do advogado. Seja como for, o advogado tem sempre o direito de representar os interesses do seu cliente perante quaisquer entidades públicas, isso é próprio da profissão e do seu Estatuto”, assume.
Segundo a lei dos atos próprios do advogado, o mandato forense é o “mandato judicial conferido a advogado ou solicitador para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz”, definição que é ainda complementada com outras definições legais como a do Estatuto da Ordem dos Advogados.
“O advogado tem o direito de representar o seu cliente junto de quaisquer poderes públicos, mas pelas garantias de segredo profissional, que são um dos pilares do estado de Direito, entende-se que não pode divulgar o nome do seu cliente junto de um registo de interesses a ser criado, razão pela sua exclusão do regime do lobby, apenas”, nota o sócio da SRS Legal.
Para Alexandra Mota Gomes, a distinção entre atos próprios e atividade de lobbying assenta na finalidade e no contexto em que se desenvolve a atuação do advogado. “Os advogados quando atuem com o propósito de influenciar decisões políticas ou legislativas em representação de interesses, devem ficar sujeitos ao regime jurídico aplicável ao lobbying, assegurando-se, simultaneamente, a transparência dessas atuações e a salvaguarda dos deveres inerentes ao exercício da advocacia”, considera a sócia da Antas da Cunha Ecija.
Mas a questão impõem-se: podem ou não os advogados serem considerados lobistas caso prestem aconselhamento a entidades com interesses legislativos e políticos? José Luís Moreira da Silva considera que não, uma vez que estão legalmente excluídos do regime, mas “materialmente” farão uma representação dos interesses dos seus clientes. “Acontece que o advogado, contrariamente ao lobista, já está adstrito legalmente a regras deontológicas e a sanções que podem levar ao cancelamento da sua carteira profissional, algo que ainda não esta previsto nos projetos de regulamentação do lobby”, acrescenta.
Ainda assim, Alexandra Mota Gomes acredita que a determinação dos objetivos e do contexto da intervenção dos advogados deve constituir um “ponto central” no debate legislativo, dado que a linha entre o aconselhamento jurídico e a representação de interesses “pode ser, na prática, difícil de delimitar”.
“Deve considerar-se lobbying quando o advogado oriente, prepare ou coordene estratégias para influenciar decisões políticas, legislativas ou regulamentares, ou seja, quando o aconselhamento jurídico vise alterar ou impedir iniciativas legislativas, através de contactos com deputados, ministros ou reguladores; ou quando atue em nome de clientes empresariais, associações ou grupos económicos com o propósito de influenciar políticas públicas”, refere, sublinhando, por outro lado, que a emissão de pareceres jurídicos de natureza “estritamente técnica” e “desacompanhada” de qualquer atuação de influência direta de titulares de órgãos de decisão política deve permanecer excluída.
A advogada considera ainda que a eventual inclusão dos advogados no regime jurídico do lobbying suscita relevantes questões constitucionais, legais e deontológicas, podendo restringir direitos fundamentais, como a liberdade de exercício profissional, o princípio da confiança e o sigilo profissional. “Embora tais direitos não sejam absolutos, qualquer limitação deve obedecer aos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, com fundamento normativo claro e respeito pelo regime próprio da advocacia consagrado no Estatuto da Ordem dos Advogados”, refere.
Dos instrumentos às sanções
Todas as propostas aprovadas preveem que o registo seja acompanhado por um código de conduta e de um mecanismo que permita acompanhar toda a pegada legislativa dos diplomas. Os partidos concordam também que esse registo deve ser público, gratuito e obrigatório para todos os representantes de interesses que queiram interagir com entidades públicas, divergindo sobre onde deve estar sediado: a maioria dos partidos considera que a entidade responsável por este registo deve ser a Assembleia da República, enquanto a IL considera mais adequada a Entidade para a Transparência e o PAN quer a intervenção do Mecanismo Nacional Anticorrupção.
“A introdução da pegada legislativa e de um código de conduta nos projetos de regulamentação da atividade de lobbying em Portugal constitui uma inovação normativa relevante, com potencial para reforçar a transparência e a integridade institucional”, explica Alexandra Mota Gomes, sublinhando que a operacionalização destes instrumentos é “complexa”, especialmente em face da ausência de um modelo definitivo.
Segundo revela à Advocatus, os projetos em discussão preveem a obrigatoriedade de indicação das entidades ou pessoas que participaram em reuniões com decisores políticos ou que tenham enviado contributos formais, pareceres ou propostas de alteração e que este dever de informação deverá constar de documentos oficiais.

Sobre o Código de Conduta, a sócia da Antas da Cunha Ecija explica que prevê-se que inclua deveres como a atuação com boa-fé, transparência e lealdade, a proibição de invocação de relações privilegiadas e de ofertas de vantagens indevidas. “Aos decisores públicos, caberá o dever de registar os contactos com lobistas, recusar interações com entidades não registadas e prevenir situações de conflitos de interesses”, acrescenta.
No que toca à pegada legislativa, a advogada acredita que em Portugal poderá ser operacionalizada através de uma plataforma digital vinculada ao site da Assembleia da República, “com obrigatoriedade de registo do nome da entidade ou lobista, data do contacto ou reunião, bem como do tema e objetivo da intervenção”.
“Estas ferramentas são essenciais para garantir que a representação de interesses se desenvolva de forma legítima e transparente, evitando formas ocultas de captura política. O desafio reside em assegurar uma implementação que seja simples, fiscalizável e abrangente”, sublinha.
Apesar de considerar que por força do “ímpeto legislativo” em matéria de prevenção e combate à corrupção as entidades públicas e privadas já se encontram “bastante familiarizadas” com os códigos de conduta, Madalena Dias Parca considera relevante que sejam consagrados princípios como os da transparência, boa-fé, integridade e a igualdade de oportunidades na participação nos processos decisórios.
“Poderão ainda ser incluídas regras no sentido de proibir a oferta e aceitação de qualquer vantagem, patrimonial ou não patrimonial, com vista a influenciar o processo decisório num determinado sentido; porém, tal proibição já decorre da lei penal, que tipifica estas condutas enquanto crimes, pelo que a inclusão de regras deste género equivalerá apenas a um reforço da referida proibição”, acrescenta a associada da MFA Legal.
Madalena Dias Parca revelou ainda que todos os projetos de lei propõem a aplicação de sanções em caso de incumprimento das regras que venham a ser estabelecidas nesta matéria, designadamente a suspensão, total ou parcial, de uma entidade do registo e a criação de limitações de acesso de pessoas singulares que tenham atuado em representação dessa mesma entidade.
“O PAN propõe ainda que as entidades possam ser sancionadas com a proibição de se candidatarem a subsídios ou apoios financeiros concedidos por entidades públicas nacionais, por um período de um a três anos, podendo ainda ser impedidas de se candidatarem ou concorrerem em procedimentos de contratação pública, pelo mesmo período”, nota, sublinhando que, “pelo menos enquanto ponto de partida”, as sanções propostas são “suficientes”.
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Um novo passo no lobbying. Entre a transparência e os limites da advocacia
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