25 mil euros per capita de dívida pública

A dívida gere-se sobretudo a montante. Mas, para além de ter de ser gerida, a dívida tem mesmo de ser reembolsada.

Foi notícia esta semana o novo recorde de dívida pública atingido em Maio: 250 mil milhões de euros. Há várias formas de interpretar este número. Aqueles que veem o copo meio cheio dirão que o crescimento da dívida pública tem sido inferior ao crescimento nominal da economia. É verdade: no último ano, a dívida pública passou de 247 para 250 mil milhões de euros – uma variação de sensivelmente 1% –, sendo que no mesmo período de tempo o PIB nominal cresceu bem mais do que isso (entre 3,5% e 4%). Já aqueles que veem o copo meio vazio dirão que o aumento observado no stock de dívida pública resultará no agravamento de encargos a transmitir às gerações futuras e que no essencial Portugal continua a caminhar sob gelo fino. Mais dívida hoje, mais impostos amanhã e um novo resgate ao virar da esquina. Enfim, não exageremos, porque as duas visões, quer a do copo meio vazio quer a do copo meio cheio, são hoje válidas. Mas, em todo o caso, há que sublinhar a parte do “hoje”.

Sempre gostei da simplicidade dos argumentos e, por isso, tenho para mim que as melhores contas são aquelas que toda a gente consegue perceber. Assim, a melhor exemplificação que consigo encontrar sobre a real dimensão da dívida pública portuguesa é a ideia de que a mesma representa um ónus de 25 mil euros a cada cidadão português. É isso mesmo: 250 mil milhões de euros de dívida pública a dividir por 10 milhões de portugueses dá 25 mil euros per capita, a que devemos acrescentar as dívidas privadas de cada um. Aqui incluímos todos os cidadãos: bebés, crianças, jovens, adultos, delinquentes, incapacitados, idosos, activos e inactivos. Na realidade, se incluíssemos apenas a população activa o ónus passaria para o dobro: 50 mil euros per capita. Já estou a ver os críticos a rasgarem as vestes e a acusarem-me de demagogia. Não creio, assim como não creio que se possa argumentar, como alguns críticos fazem, no sentido de que a dívida privada seja um mal ainda maior do que a dívida pública. Não é.

Vejamos. O serviço da dívida pública, isto é, o pagamento de juros, é realizado a partir dos impostos cobrados pelo Estado português. A receita fiscal representa assim uma espécie de volume de negócios recorrente da República Portuguesa. Pelo contrário, as restantes receitas do Estado não configuram como tal. É o caso das contribuições sociais, a segunda maior fonte de receitas do Estado, que não podem ser equiparadas a volume de negócios porque, nesta relação com o cidadão, o Estado é essencialmente um depositário de contribuições – que são devolvidas na forma de prestações sociais, designadamente pensões. Ora, no Orçamento do Estado para 2018 estima-se uma receita fiscal de 50 mil milhões de euros, dos quais 7 mil milhões estão consignados ao pagamento de juros, para uma dívida pública que ascende a 250 mil milhões de euros. Temos, pois, um múltiplo de 5 vezes: por cada euro de receita fiscal há 5 euros de dívida pública. Mesmo que incluíssemos as contribuições sociais neste exercício, um equívoco conceptual, teríamos sempre um múltiplo superior a 3 vezes.

Consideremos agora a dívida privada. Começo com a dívida dos particulares que, segundo o boletim estatístico de Junho do Banco de Portugal (p. 59), ascende a cerca de 140 mil milhões de euros. Cruzando este valor com os dados constantes das contas nacionais do INE, que nos dão conta de um total de remunerações na economia portuguesa de 85 mil milhões de euros, concluímos pela existência de um múltiplo que não chega a 2 vezes. Concluímos também quão tremenda é a pressão fiscal sobre aqueles 85 mil milhões de euros. Sem surpresa, temos hoje a maior carga fiscal de que há memória. Quanto às empresas privadas (não financeiras), utilizando novamente como fonte o boletim estatístico do Banco de Portugal, temos que o montante de dívida privada é de 260 mil milhões de euros (p. 59) para um volume de negócios de sensivelmente 320 mil milhões (p. 275). Ou seja, o múltiplo de endividamento das empresas não chega sequer à unidade; a dívida é inferior ao volume de negócios. Conclui-se, portanto, que a dívida privada, seja esta das famílias ou das empresas, é manejável face à dívida pública.

Identificado o principal problema, passemos agora à análise de sustentabilidade. Eu gosto especialmente de dois indicadores: o peso dos juros da dívida pública no total de receitas fiscais, e a relação entre o custo médio da dívida pública e o crescimento nominal do PIB. Tanto num caso como no noutro, Portugal está hoje fora da zona de alerta. Os juros representam menos de 15% das receitas fiscais. E o custo médio de todo o stock da dívida pública, rondando os 3% ao ano, é inferior ao ritmo de crescimento nominal da economia. Por este caminho, o rácio de dívida pública em percentagem do PIB tenderia a diminuir. Mas a margem de segurança é curtíssima. Por um lado, temos o BCE a baixar artificialmente o custo da nossa dívida pública, o que não durará para sempre. E, por outro lado, vivemos na Europa uma conjuntura externa que é extraordinariamente positiva, como há muito não se via. Neste contexto, as vulnerabilidades estruturais de um país como Portugal continuam a ser significativas.

Todavia, estas vulnerabilidades são também internas. A este respeito, a leitura dos pareceres do Tribunal de Contas à Conta Geral do Estado é sempre recomendável. Servem para evidenciar as fragilidades e, lamentavelmente, também as ilegalidades do processo orçamental em Portugal. No último relatório escrevia-se o seguinte: “Do exame dos fluxos financeiros na tesouraria do Estado conclui-se que uma parte relevante da atividade nessa tesouraria continua a ser movimentada fora do Tesouro (por dispensa ou por incumprimento do princípio da unidade de tesouraria) e sem ser registada na respetiva contabilidade em desrespeito da lei. (…) Por isso, o Tribunal tem sublinhado a necessidade de serem tomadas todas as iniciativas pertinentes, por parte das entidades responsáveis, para integrar na tesouraria do Estado as contas movimentadas fora do Tesouro. Esta necessidade fica especialmente patente quando a DGO e o IGCP reconhecem não dispor de informação sobre montantes que deveriam estar sob gestão da tesouraria do Estado.” (Parecer à Conta Geral do Estado de 2016, p. 212).

Concluindo: o problema da dívida pública não pode ser desvalorizado de forma alguma. Bem pelo contrário: devem ser implementadas medidas que reforcem a qualidade do processo orçamental, em particular, que reforcem a gestão dos compromissos orçamentais e o controlo da tesouraria do Estado. Ter o Estado a dar o exemplo, de cumprimento da lei de enquadramento orçamental, seria seguramente um bom ponto de partida. A dívida gere-se sobretudo a montante, e não tanto a jusante. Mas, para além de ter de ser gerida, a dívida tem mesmo de ser reembolsada. Em momentos de acalmia, os investidores permitem o refinanciamento da dívida: aceitam dívida nova para pagar dívida antiga. E todos fazem como as SAD de futebol: empurram os reembolsos para o futuro. A própria linguagem do devedor torna-se perniciosa: diz-se que se vendeu dívida em vez de se dizer que se pediu emprestado. Porém, em momentos de agitação, não há lugar a refinanciamentos; há sim lugar a reembolsos. É nestes momentos que descobrimos quem foi ao mar sem calções. Convinha, portanto, não abusar da sorte. Os nossos calções continuam curtinhos.

Nota: O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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