A chover dinheiro

o sistema financeiro está novamente convertido em casino. É aqui que estamos. Aguardemos, pois, pelos próximos episódios e tenhamos o IBAN na algibeira.

Na última reunião enquanto presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi não desiludiu as expectativas. Apesar dos rumores (e certezas) quanto à falta de consenso no seio do BCE relativamente a uma nova ronda de estímulos monetários, Draghi insistiu e prevaleceu. Na despedida, meteu prego a fundo, como se diz na gíria automobilística, antes de sair do carro em andamento.

Note-se que não saltou do carro em andamento. Simplesmente saiu porque, entretanto, terminará o mandato. Draghi termina o mandato e sai em alta, mas as políticas que ele lá deixou não terminarão tão cedo, sendo até provável que um dia caiam em desgraça.

Escrevi-o há semanas (“Depois de Draghi, a internet da moeda”) e hoje volto ao mesmo assunto: a política de estímulos monetários, se reiterada, entra, a partir de certa altura, num caminho de não-retorno. Não há volta atrás. É neste caminho de não-retorno que está a zona euro. Os investidores estão viciados em acomodação monetária e os tiros do BCE são de elevado calibre. Nesta última ronda, Draghi anunciou que, a partir de Novembro, o BCE adquirirá activos ao ritmo de 20 mil milhões de euros por mês, o que, juntando ao reinvestimento de recursos provenientes de investimentos anteriores que entretanto vencerão, representará um estímulo total de 35 mil milhões de euros por mês.

Como é sabido, o BCE definiu que não deteria mais do que um terço de nenhuma emissão obrigacionista na qual se envolvesse. Mas, em face dos montantes anunciados, o BCE terá cerca de um ano até se deter novamente naquela limitação. Note-se, todavia, que se trata de uma limitação autoimposta. É um terço, mas poderia ser metade ou dois terços. Alterar a fasquia será sempre um caminho possível, sobretudo, por irónico que pareça, se a política de estímulo deixar de produzir efeito. É o tal caminho de não-retorno de que falava antes. Mais difícil seria alterar a regra da chave de capital, porque nesse caso correr-se-ia o risco de subsidiar uns países a expensas de outros. Tal como está, a política tanto beneficia Portugal como a Alemanha.

Os estudos do BCE indicam que as vantagens do programa de estímulos, designadamente a redução do custo de financiamento dos Estados e das empresas, têm superado largamente os seus custos, mormente as taxas nulas que os bancos hoje pagam aos depositantes pelos recursos captados e, cada vez mais, também a reduzida margem financeira exibida pelos bancos.

Oficialmente, a tese mantém-se: os benefícios são superiores aos custos. Mas gradualmente vai-se sabendo que os bancos centrais, não apenas o BCE, mas também outros, sobretudo os da China e da Rússia, têm vindo a adquirir ouro, que é considerado um activo de refúgio.

Nesta fase, há essencialmente dois riscos associados ao caminho seguido.

  1. Primeiro, há o risco de os depositantes retirarem os seus depósitos dos bancos caso estes comecem a aplicar taxas negativas (isto é, a imporem um custo) sobre os depósitos dos clientes.
  2. Segundo, há também o risco de todo o risco, passe a redundância, passar a transacionar com taxas negativas. Trata-se de um problema muito relevante porque, à medida que as taxas negativas se têm tornado a regra, a oportunidade para o chamado “carry-trade” – pedir dinheiro emprestado a uma taxa de juro mais baixa para investir em activos que rendem uma taxa mais alta – deixa de existir.

O problema é especialmente notório na Europa, onde dois terços de toda a dívida soberana transacciona hoje a taxas negativas. Ou seja, os investidores que antes pediam dinheiro emprestado a zero e o colocavam a render a taxas mais altas, adquirindo obrigações soberanas que apesar de tudo rendiam alguma coisa, faziam dinheiro sem grande risco. Foi uma forma de devolver rentabilidade aos bancos e, em simultâneo, de animar os mercados. Mas agora não.

Agora, os que continuam no mesmo jogo, estarão a especular porque se detiverem os activos até à maturidade perderão dinheiro. Para ganharem dinheiro, precisam de duas coisas. Que as taxas fiquem ainda mais negativas, já que no mundo das obrigações isso significa que as cotações ficaram mais altas – nas obrigações, cotações e taxas de juro variam inversamente. E também precisam de vender os títulos antes da maturidade.

O espectáculo durará até que a música pare. Mas é conhecido como acabou o espectáculo na última vez que o mesmo durou até a música parar. E, portanto, há que continuar com estilo, criando novas cenas, de preferência, com efeitos especiais. É neste contexto que surgem novas teorias quanto aos novos caminhos.

Há uma teoria que, sendo nova, é velha e que consiste em acabar com a independência dos bancos centrais em benefício do financiamento directo aos Estados soberanos. E, depois, há uma outra ideia, que deriva da primeira, mas que contém uma certa originalidade, e que consiste em dar o derradeiro salto para a frente: colocar os bancos centrais a financiar directamente toda a gente, incluindo os devedores finais.

A ideia conhecida pela expressão “going direct” foi recentemente defendida por Philip Hildebrand, antigo presidente do Banco Central da Suíça, que está agora no sector privado. Trata-se de colocar dinheiro no bolso dos agentes económicos finais – Estado, empresas e famílias – directamente a partir da máquina impressora do banco central. O grande risco, como o próprio reconhece, estará em salvaguardar a credibilidade dos bancos centrais e as pressões inflacionistas que daí venham a resultar.

Não obstante o risco, é uma ideia que tem vindo a ganhar apoiantes em diversos quadrantes do sector financeiro. Quanto às pressões inflacionistas, Christine Lagarde já sinalizou que pretende debater a forma de comunicação da meta de inflação do BCE.

O antigo presidente da Reserva Federal norte-americana, Ben Bernanke, ficou conhecido pela alcunha “Helicopter Ben”. Ganhou a fama por defender a expansão monetária agressiva em momentos de crise e acabou também por obter o proveito, ao ter implementado na altura e nas circunstâncias certas os respectivos estímulos monetários.

Draghi, um pouco mais tarde, teve a mesma sorte e, com muita sorte, sai no tempo certo. Já Lagarde corre o risco de não ter a mesma sorte porque o sistema financeiro está novamente convertido em casino. É aqui que estamos. Aguardemos, pois, pelos próximos episódios e tenhamos o IBAN na algibeira. Pode ser que alguém mande chover dinheiro. The show must go on.

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