A Constituição sobreviveu à pandemia

  • Susana Castela Graça
  • 17 Agosto 2022

Uma lei inconstitucional é uma lei intrinsecamente injusta e é com a criação de uma lei injusta que a justiça começa a correr atrás do prejuízo.

No passado dia 22 de julho, foi publicado em Diário da República o Acórdão n.º 468/2022 do Tribunal Constitucional (TC), através do qual o TC declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade parcial de uma norma, aprovada na Assembleia da República e publicada em 24 de Julho de 2020 (nº 5 do artigo 168.º na redação dada pela Lei n.º 27-A/2020 de 24 de Julho – Lei do Orçamento de Estado Suplementar), que estipulava, no âmbito das medidas adotadas para mitigação dos efeitos da pandemia de Covid-19 que, até 31 de dezembro de 2020, não seriam devidos, pelos lojistas dos centros comerciais, quaisquer valores a título de renda mínima (Lei da Isenção).

Esta decisão foi proferida no âmbito de um processo, iniciado em novembro de 2020, pela Provedora de Justiça, que requereu que fosse declarada a inconstitucionalidade da Lei da Isenção. Este passo deveria, por si só, ter servido de alerta, para o facto de a lei ser inconstitucional, como desde o primeiro momento e em uníssono argumentaram proprietários e gestores de centros comerciais em Portugal.

Apesar de todos os alertas, com particular destaque para o requerimento da Provedora de Justiça, a Assembleia da República, em fevereiro de 2021, aprova nova lei através da qual, não só mantém a lei inalterada, como estende os seus efeitos ao passado. Isto porque, como a Lei da Isenção entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja no dia 25 de julho de 2020, tal implicava que não abrangia o período entre 13 de março (data em que o país entrou em confinamento) e 24 de julho de 2020. Para ‘corrigir’ esse resultado, a Assembleia da República aprovou a Lei 4-A/2021 de 1 de fevereiro, que visava clarificar que a Lei da Isenção era afinal aplicável ao período compreendido entre 13 de março e 31 de dezembro de 2020.

Neste quadro, é importante sublinhar que: (i) esta medida, cujo alvo foram exclusivamente os centros comerciais, não tinha, nem teve, paralelo noutros países; (ii) traduz-se numa intervenção legislativa direta, num contrato celebrado apenas entre particulares, decidindo que apenas um – o proprietário do centro comercial – deve absorver os riscos advenientes da pandemia, não obstante não ter qualquer responsabilidade pela existência da mesma; (iii) não teve paralelo em situações similares, como o arrendamento de lojas de rua, o qual ficou entre as moratórias e os apoios do Estado; e (iv) foi necessário explicar o inexplicável a quem investiu nos centros comerciais em Portugal e para quem era impensável que no país onde tinham decidido investir era possível ser aprovada e vigorar uma lei contrária à Constituição e a qualquer expectativa lógica e legítima. Permanece a incerteza de que tais esforços e tentativas de explicação possam evitar desinvestimento.

Os fundamentos da declaração de inconstitucionalidade giram à volta de um eixo estrutural, da violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, numa lógica de conclusão pela existência de soluções alternativas e de um excesso, constitucionalmente inadmissível, na Lei da Isenção, na parte em que eliminou, na totalidade, o direito dos proprietários à remuneração fixa.

O TC optou, porém, por uma solução ‘fora da caixa’, declarando a inconstitucionalidade da Lei da Isenção, na parte em que ultrapassa a solução dada pela norma que, aprovada posteriormente, reuniu maior consenso entre os diretamente visados, e ‘reduzindo’ a lei inconstitucional, de modo a estabelecer que os lojistas teriam direito, não à isenção do pagamento da remuneração fixa, mas sim a uma redução proporcional à redução da faturação mensal, até ao limite de 50% do valor da remuneração fixa, quando os estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019, ou na sua falta, ao volume médio de vendas nos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República de 18 de março (que decretou o primeiro estado de emergência) ou de período inferior, se aplicável.

Com esta decisão, cujos efeitos não foram limitados e, logo, tem eficácia retroativa, é reconhecido, aos proprietários dos centros comerciais, o direito a exigir o pagamento de, pelo menos, 50% do valor das remunerações fixas que, por obediência à Lei da Isenção, creditaram a 100% no passado ou não faturaram.

Como o setor dos centros comerciais é dinâmico e evolutivo, muito avançou, entretanto, desde a publicação da Lei da Isenção. Foram alcançados acordos e entendimentos entre os proprietários e vários lojistas, sempre com o objetivo de retomar as vendas paralisadas durante a pandemia, na confluência inevitável entre quem partilha um objetivo comum. É o mercado a funcionar.

Que ‘a justiça tarda, mas não falha’ é uma das frases recorrentes que, à força de tanto se repetirem, se tornam verdades instaladas e que, claro está, voltámos a ouvir quando foi proferida a decisão do TC.

Soa a prémio de consolação. E é. Porque se a justiça tarda, é menos justa e porque os efeitos da injustiça já se produziram e o dano se instalou.

A justiça não é exclusiva dos tribunais que agem no seu tempo e modo. Uma lei inconstitucional é uma lei intrinsecamente injusta e é com a criação de uma lei injusta que a justiça começa a correr atrás do prejuízo.

O acórdão do TC obriga a reabrir processos, revisitar números e ponderar os termos em que se executará a decisão. Melhora a posição do Estado, nas ações contra o mesmo, propostas por alguns proprietários, que agora terão de alterar e reduzir o seu pedido e pressiona todos os proprietários que tenham ou pretendam interpor ações contra o Estado, uma vez que, para demonstrarem o seu prejuízo, terão de percorrer o caminho pelo pagamento dos valores que, nos termos do acórdão, têm direito a exigir. É como fazer um roque no jogo de xadrez.

  • Susana Castela Graça
  • Legal associate director da CBRE Portugal

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