As vidas paralelas: António Costa, o anti-Trump

José Miguel Júdice analisa, no Jornal das 8 da TVI, o que separa António Costa de Donald Trump, o que lhe tem permitido levar a água ao seu moinho.

Hoje vou falar de dois políticos muito diferentes: António Costa e Donald Trump. Se eu fosse Plutarco (para o que me faltam engenho e arte, como diria Camões), isto daria um capítulo extra para as “Vidas Paralelas”. Nada existirá realmente de mais diferente: Costa é politicamente manhoso, cauteloso, cerebral e, nesse sentido, previsível. Trump é politicamente brutal, aventureiro, imprudente, instintivo, imprevisível. Como o próprio disse, “a única pessoa que interessa na administração americana sou eu, pois sou eu quem decide todas as medidas políticas concretas”.

Mas Costa e Trump têm algo em comum, o que faria Plutarco salivar de prazer se tivesse de os comparar. Ambos têm egos desmesurados, são oportunistas, sabem captar votos de onde menos se espera, e são capazes de aparentar o oposto da sua realidade natural: Trump pode ser sedutor como qualquer empresário do imobiliário que se preze; Costa pode ser frio e feroz se isso for essencial para a sua sobrevivência. Alguns exemplos podem ajudar a perceber melhor o que digo.

Trump: A ameaça credível de guerra, para ganhar eleições e até se calhar fazer a paz

Tomado de uma fúria agressiva, nas últimas semanas despediu (por Twitter!) o secretário de Estado Rex Tillerson, e também o chefe da CIA John Brennan, o director adjunto do FBI Andrew McCabe (duas semanas antes de se reformar), o chefe do NSC McMaster e Gary Cohn (o seu conselheiro económico e vocal adversário de taxas aduaneiras reforçadas). Com a mesma determinação, nomeou para secretário de Estado Mike Pompeo (um falcão imperialista), para diretora da CIA Gina Haspel (que esteve envolvida em 2002 em ações de tortura a terroristas), e John Bolton para National Security Advisor (outro falcão que defende a guerra preventiva contra a Coreia do Norte e o desarmamento à força do Irão).

Tomado de idêntico frenesim, vendeu mais de um milhar de milhões de USD de armas à Arábia Saudita, lançou tarifas protecionistas que atingem fortemente, entre outros, a China; mas vai reunir em Maio com o ditador da Coreia do Norte.

Os comentadores especializados consideram que Trump criou agora um verdadeiro “war cabinet”. E recordam que John Kelly (o Chief of Staff da White House, que é uma espécie de primeiro-ministro) e Jim Mattis (o Defense Secretary), dois generais reformados, são agora os únicos moderados (calcule-se!) e não devem durar muito.

Para mim, é evidente que isto surge precisamente por causa da reunião com o líder da Coreia do Norte. Fazendo diplomacia à beira do abismo e aplicando as táticas negociais que aprendeu a comprar e a vender prédios em Nova Iorque, Trump quer que seja claro que se não houver rendição haverá guerra.
E o mesmo acontece em relação ao Irão. Em 12 de Maio, os EUA terão de renovar o “acordo nuclear” ou sair dele, reinstalando as sanções. Os efeitos podem ser devastadores se o Irão não ceder nalguns aspetos que permitirão a Trump cantar vitória.

Tudo isto pode correr bem, mas tem tudo para correr mal. E, como avisei aqui há meses, 2018 pode não acabar sem um guerra no Extremo Oriente ou até no Golfe Pérsico. Mas também pode acabar com uma vitória dos Republicanos nas eleições para o Senado e para a Câmara dos Representantes (para o que as taxas aduaneiras para as importações vão também ajudar a curto prazo).
E que se passa com António Costa?

António Costa: Levar água ao seu moinho

Aqui, gostaria de usar três exemplos:

  1. A ação de propaganda de limpeza das florestas.
  2. A entrada da Santa Casa da Misericórdia no Montepio.
  3. As anunciadas mexidas na legislação laboral.

Todos estes casos têm de comum a intenção de Costa ganhar em 2019 por maioria absoluta. E revelam a sua natureza profunda. Acho que demonstram que o slogan da sua campanha eleitoral poderá ser, como há 50 anos, “make love not war”. E que de mansinho vai levando águua ao seu moinho… Vejamos então porquê.

A limpeza da floresta como arma eleitoral. Diga-se, para começar, que Rui Rio e Jerónimo de Sousa dizem a verdade, mas não têm politicamente razão. Claro que isto foi uma ação de marketing e propaganda do governo, mas também foi uma justificada ação estratégica. Depois, a estupidez do ataque dos dois dirigentes permitiu ao Presidente da República colar-se ao Governo, com a violência verbal de que é capaz (“quem achar o contrário é porque não quer ser governo tão depressa”).

Finalmente, nenhum deles disse o óbvio: O que fez mover António Costa (para além de desviar as atenções do 2º Relatório da Comissão de Inquérito) é apostar em que no Verão de 2018 não haverá grandes fogos, e que os portugueses não pensarão que isso foi porque já ardeu tanto que não poderia ser de outro modo, mas que se convençam que foi assim por causa do que, supostamente, o Governo foi capaz de fazer. Ou seja, tudo o que Trump não faz…

A telenovela da Misericórdia a investir no Montepio

Desde Dezembro de 2016 que vinha denunciando (ao início sozinho…) a manobra de investir dinheiro dos pobres no Montepio. Há três meses, o Provedor da SCML, Edmundo Martinho, chegou a admitir de modo formal que ia investir 200 milhões de euros para ficar com 10%. Agora, sabe-se que vai investir cerca de 20 milhões de euros por 1% do capital, no que dizem ser um “investimento simbólico”.

Simbólico ou não, em todo o caso isso avalia em dois mil milhões o banco, apesar do Banco Haitong (convenientemente despedido, entretanto…) achar que vale menos de mil e seiscentos milhões.
A gravidade desta decisão não se altera com a redução do investimento. Se o Montepio vale 1,6 mil milhões de euros e é controlado quase totalmente pela Associação Mutualista, uma posição minoritária vale menos 30%, devido a não ter prémio de controlo. Ou seja 1% não pode valer mais de 11 milhões e 200 mil euros, pelo que o valor a pagar devia ser quase metade do negociado.

Isto só pode ter acontecido porque o Governo mandou que assim fosse. Como mandou que fosse possível que a associação mutualista fizesse um lucro contabilístico de 809 milhões de euros por uma espécie de passo de mágica fiscal. Muita gente crítica? Sim. E é verdade o que dizem? É. Mas não têm politicamente razão.

António Costa fez bem, à sua maneira. Esta operação “simbólica” era essencial, pois através dela o Montepio fica avaliado em mais de dois mil milhões, o que lhe permite fôlego. E com isso salvou a Associação Mutualista (que com 630 mil associados podia fazer-lhe perder as eleições se entrasse em colapso), ou ao menos adiou o problema para depois das eleições; E, pelo caminho, evitou ter de intervir no Montepio afetando o défice. E fez tudo isso delapidando “apenas” 20 milhões do dinheiro ganho com o Euromilhões e “inventando” lucros futuros que não vão acontecer pelo que nem sacrifica as cobranças em IRC…

Rui Rio, mais uma vez, fala verdade, mas não tem razão, ao cobrar uma guerra que vai perder e que ninguém lhe vai agradecer. E Costa, de mansinho, leva a água ao seu moinho, ao contrário de Trump….

As reformas laborais: o PS é o bloco central

Se nada do que acabei de dizer tivesse existido, bastaria a reforma laboral anunciada há dias para me convencer de que estou a ver bem o filme. Realmente, as mudanças anunciadas desagradam um pouco a toda a gente, mas não desagradam muitíssimo a ninguém. E conjuntamente com a escassez de procura de emprego, podem ter como efeito diminuir ainda mais a dimensão dos contratos a termo até às eleições de 2019, sendo certo que as multas que serão pagas pelas empresas se não reduzirem esses contratos só acontecem depois das eleições. Tudo bom material para a campanha… e redução quase total dos riscos.

E, mais do que isso, deste modo se posiciona o PS como um partido central, a ser criticado de um lado e do outro por razões opostas: foi quase comovente ver uma pivot no Telejornal da RTP a perguntar ao ministro Vieira da Silva se não estava preocupado em ser atacado dos dois lados e ele, com o ar mais seráfico possível, com modéstia, suavidade, bondade e mesmo ternura, a explicar que são soluções sensatas, equilibradas, boas para toda a gente. Mas fez isso não atacando ninguém, tratando afinal os partidos à esquerda e à direita e as confederações sindicais e patronais, como meros afluentes que apenas engrossam o caudal do PS.

Rui Rio, pelo seu lado, alguns dias depois ainda não fez ou deixou fazer (e curiosamente o CDS também não…) um único comentário, o que bem revela a habilidade e a manhosice da estratégia. E, mais uma vez, Costa demonstra ser o anti-Trump e continua no caminho de levar água ao seu moinho.

Claro que isto não quer dizer que esteja certo ou que a sua estratégia seja a médio prazo boa para o País. Eu sei: E sei também que Keynes apenas disse que a longo prazo estaremos todos mortos. A médio prazo, não estaremos todos mortos, mas o PS, a médio prazo, ganhou as eleições. E do resto tratarão depois…

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

As vidas paralelas: António Costa, o anti-Trump

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião