Até quando vamos admitir que o agressor seja herdeiro da vítima?

  • Maria Paula Ribeiro de Faria
  • 10 Outubro 2022

Não é excesso punitivo retirar os direitos sucessórios a quem foi condenado pelo crime de violação de alimentos ou pelo crime de violência doméstica contra o autor da sucessão.

No início de 2007, foi instaurada no tribunal de Amares, uma ação destinada a obter a declaração de indignidade sucessória de um pai, que apesar de ter sido condenado pela violação da filha aos catorze anos (que obrigou a abortar quando tinha quinze), de nunca se ter interessado por ela, ou ter provido às suas necessidades básicas, e de constantemente a insultar quando a via, não hesitou em habilitar-se à herança pela sua morte, aos vinte e nove anos, num acidente de viação.

Em sua defesa, o réu alegou que a sua conduta não integrava as hipóteses de indignidade sucessória previstas pelo art. 2034º do CC, e que esta norma, pela sua natureza excecional, não podia ser aplicada analogicamente, pelo que nada justificava o afastamento dos seus direitos sucessórios. O caso foi decidido nas várias instâncias em seu desfavor, tendo-se pronunciado no mesmo sentido o Supremo Tribunal de Justiça, que impediu de forma magistral a injustiça que se anunciava, invocando princípios éticos e jurídicos fundamentais, como o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo recorrido à figura do abuso do direito e ao art. 334º do CC para concluir que o direito invocado não se encontrava coberto pelo âmbito de proteção da norma.

O Tribunal considerou que embora o crime de violação só por si não integre o elenco das causas de indignidade sucessória previstas pelo art. 2034º, não sendo possível aplicar esta norma por analogia dada a sua natureza taxativa, contrariaria a consciência jurídica o reconhecimento do direito do réu a suceder à filha nas circunstâncias concretas do caso.

A filha não teve a possibilidade de deserdar o pai, e reconhecer ao réu capacidade sucessória na herança da filha sem nunca se ter arrependido do mal feito, ou ter sido perdoado pela vítima, consistiria em sancionar um intolerável abuso do direito do réu a suceder-lhe: “seria um atentado manifesto aos bons costumes e mesmo ao fim social e económico desse direito, o direito de suceder. E quando os limites assim impostos ao direito são dessa maneira tão manifestamente excedidos, o direito não é, o direito não existe”.

Concordando integralmente com a decisão proferida, a verdade é que a consequência que o Tribunal aqui justamente impediu, devia constituir, há muito, conteúdo de uma regra legal, já que – não tenhamos ilusões – a realidade que se apresentou à justiça neste caso, não se afigura isolada ou pontual. Uma vez que a norma prevista pelo art. 2034º do CC, tem uma natureza “quase penal”, de índole sancionatória, tem de ser formulada de forma taxativa e fechada, e não pode ser aplicada de outra forma sob pena de um sacrifício intolerável da segurança jurídica, o que significa que é tarefa do legislador resolver, em termos gerais e abstratos, a desadequação atualmente patente entre a estreiteza das suas alíneas e o sentimento jurídico geral, que naturalmente repudia que o agressor de uma vítima vulnerável possa beneficiar da respetiva herança.

Certo é que já passaram mais de dez anos desde este Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2010, sem que o legislador tenha revelado a sua intenção de resolver o problema, continuando o art. 2034º a restringir as hipóteses de indignidade sucessória aos casos de condenação pelo crime de homicídio doloso, ou tentativa de homicídio, do autor da sucessão ou do seu cônjuge, e pelo atentado ao património moral do autor da sucessão, o que permite a injustiça e a desproteção das vítimas de outros crimes graves.

Considerando que o sentido desta norma é o de vedar o benefício financeiro da herança ao autor de condutas que revelam uma danosidade social intolerável relativamente à vítima (pelo menos, no caso das alíneas a) e b)), não podemos deixar de defender que a danosidade social que impede por razões de justiça o benefício sucessório, está presente de forma evidente noutras situações. Isto não significa que o art. 2034º deva prever todas as condutas com gravidade intermédia entre o homicídio e ofensa à honra do autor da sucessão, mas a sua hipótese deve abranger os comportamentos que ferem de morte a razão de ser do próprio vínculo sucessório, i.é. a ligação familiar e o respeito e a solidariedade entre os membros de uma família.

A nossa preocupação diz sobretudo respeito às pessoas mais velhas que são agredidas e negligenciadas pelos destinatários naturais dos seus bens, embora a questão tenha contornos gerais. Não basta lembrar que estas pessoas podem deserdar os agressores, não só porque muitas delas não são livres na verdadeira aceção da palavra, estando sujeitas a inúmeras formas de coação, podendo não ter a capacidade física e mental que esta possibilidade pressupõe, mas sobretudo porque o afastamento do herdeiro nestes casos não deve depender delas e da sua vontade, mas deve partir do corpo social: é inadmissível que possa beneficiar do património da vítima quem a agrediu ou negligenciou gravemente.

Não é excesso punitivo retirar os direitos sucessórios a quem foi condenado pelo crime de violação de alimentos ou pelo crime de violência doméstica (os casos em que sobrevém a morte já estão previstos pelo art. 2034º) contra o autor da sucessão, ou por ofensas corporais dolosas ou negligentes contra este último, quando a negligência é grosseira, pelo que é obrigação do legislador pôr fim a esta situação de tolerância para com o criminoso, que constitui um convite ao crime, sobretudo ao crime que ameaça a integridade da vítima e apressa a sua morte.

Podemos admitir que o filho que atenta de forma intencional contra os bens jurídicos dos pais, em claro abuso de direito, venha a beneficiar da sua sucessão? Podemos tolerar que o filho que violenta os pais não lhes dirigindo palavra, diminuindo-os, e negligenciando-os, com consequências graves para a sua integridade física e psíquica, seja premiado com o produto do seu esforço e do seu trabalho? Cremos convictamente que esta situação tem de terminar.

  • Maria Paula Ribeiro de Faria
  • Professora Associada de Direito Penal - Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Até quando vamos admitir que o agressor seja herdeiro da vítima?

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião