Bem vindos ao sistema operativo Zuckerberg

As realidades aumentada e virtual são a base tecnológica do novo mundo que o Facebook quer construir. É um mundo em que todas as interações ocorrem dentro da bolha social.

Mark Zuckerberg deu uma entrevista sobre realidade aumentada e virtual ao podcast 411 do site The Information. A entrevista é interessantíssima, especialmente porque explica bem a visão do mundo ideal que o líder do Facebook está a preparar. E qualquer pessoa que oiça a entrevista e que não seja funcionária ou investidora da empresa deve tremer de medo com o plano do que aí vem. Assumindo que “o santo graal das experiências sociais é sentir a presença do outro com quem estamos a interagir”, Zuckerberg assume que a realidade aumentada e virtual é “o futuro da computação e das experiências sociais, e por isso a prioridade absoluta” da empresa.

O plano de Zuckerberg é simples: ter “uns óculos de aspeto normal” enquanto se está sentado em casa no sofá, interagindo com amigos e membros da família que estão presentes e os que não estão, através de avatares “teletransportados” para o mesmo sofá; e, quando se quiser, colocam-se os óculos em blackout e mergulha-se num mundo de “realidade virtual”.

Pelo meio trabalha-se e interage-se profissionalmente, especialmente através de “interfaces com os neurónios motores” que interpretam sinais do cérebro para criar “joysticks virtuais”, “como se fosse uma terceira ou quarta mão”. Para concretizar isto tudo, a empresa californiana está a investir massivamente na criação de um sistema operativo para dispensar o Android e o iOS e gerir ditatorialmente que experiências farão parte dele – para além de que está a desenvolver o seu próprio chip. É a este mundo, a que “vão aderir biliões de pessoas”, que Zuckerberg aponta. E porquê? Porque isso é a concretização absoluta da sua visão, em que nos tornamos todos meras peças do sistema operativo Zuckerberg.

Zuckerberg quer ser o intermediário do mundo. Não é só das relações sociais, é de todo o entretenimento, consumo, cultura, trabalho de cada um de nós. Este sistema operativo será um universo onde cada utilizador é um somatório de pontos de dados que opera de acordo com as subtis recomendações do sistema, que enriquece pela mera existência. Ele decidirá o que somos autorizados a consumir, com quem falamos, como trabalhamos, ao mesmo tempo que recolhe todos os dados possíveis para nos vender aquilo que quiser da forma que quiser. Como diz o próprio Zuckerberg, será precisa uma década para construir “este futuro melhorado, onde podemos ser quem queremos ser e estar onde queremos estar”. Leia-se, onde ele quer estar – que é em todo o lado.

Este é o corolário de todo o capitalismo anti-liberal nascido em Silicon Valley. É a Amazon, a Apple, a Google e o Facebook juntos num só. E é a maior ameaça à ideia de autonomia individual e à coesão social que alguma vez existiu. Em termos coletivos, isto é o equivalente da série Matrix, com a desvantagem de não ter sido desenhado por nenhuma inteligência artificial especializada em arquitetura de sistemas; no planeta Terra de 2030, o nosso equivalente divino será apenas um geek que começou a fazer uma aplicação para avaliar miúdas na universidade e depois enriqueceu a destruir a democracia, a promover genocídios e a questionar o modelo liberal construído nos últimos 250 anos. Em termos individuais, não há equivalente para esta visão – seria preciso um episódio particularmente apocalíptico de Black Mirror para demonstrar este cenário assustador.

Claro que tudo isto só acontecerá se deixarmos: se os consumidores aderirem de forma acéfala e cederem toda a sua privacidade, se os reguladores continuarem a permitir os abusos repetidos por parte da empresa, se a concorrência continuar a ser esmagada e/ou adquirida pelo peso monopolista do Facebook.

Se esta década nos ensinou alguma coisa, foi que este cenário distópico chega em pequenos incrementos e de forma subtil. Sempre argumentando com “melhorias” para o sistema, vai enredando os cidadãos em modelos que criam cada vez maiores dependências, retirando objetivamente a possibilidade de escolha e arruinando a individualidade. A única diferença face ao que aconteceu nesta última década é que agora a impunidade dos todos-poderosos lhes permite anunciar grandiosamente estas mundividências. Agora, ao menos, ninguém pode dizer que não sabe onde se está a meter.

Ler mais: Para entender o modo como hoje somos todos pontos de geração de dados num universo digital, vale a pena ler o How we became our data. O livro traça as raízes da transformação do indivíduo em números, recuando à introdução dos números de identidade e avançando até aos múltiplos pontos de dados deixados na pegada digital de hoje. E ao mesmo tempo cruza disciplinas, recolhendo conceitos dos média, da filosofia política e da economia para explicar o mundo de hoje.

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